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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
domingo, 15 de fevereiro de 2009
O MUNDO DE SOFIA de Jostein Gaarder - EXCERTOS
MUNDO DE SOFIA
(EXCERTOS)
O MUNDO DE SOFIA
DE JOSTEIN GAARDER
Cia. das Letras, São Paulo, 1998
Tradução de João Azenha Jr.
CAPÍTULO 1 – O JARDIM DO ÉDEN
Sofia Amundsen voltava da escola para casa. Percorrera a primeira parte do caminho em companhia de Jorunn, sua colega de classe. Tinham conversado sobre robôs. Jorunn considerava o cérebro humano um computador complicado. Sofia não estava bem certa se concordava com isto. O ser humano não seria algo mais do que uma máquina?
Quando passaram pelo supermercado, cada uma tomou o seu rumo. Sofia morava no final de um bairro extenso, com belas casas, e tinha que andar quase o dobro de Jorunn para voltar da escola. Sua casa parecia ficar no fim do mundo, pois atrás do quintal não havia outras casas, só a floresta.
Dobrou a rua Kløverveien. Bem no fim, a rua formava uma curva fechada, chamada de “a curva do capitão”. Só aos sábados e domingos viam-se pessoas por ali.
Era um dos primeiros dias de maio. Em alguns jardins, densas coroas de narcisos floriam sob as árvores de frutas. As bétulas pareciam vestidas de finas capas de florescências verdes. Não era curioso como nesta época do ano tudo começava a crescer e a medrar? Como se explicava que quilos e quilos da substância verde das plantas pudessem brotar da terra sem vida quando o tempo ficava mais quente e os últimos resquícios de neve desapareciam?
Sofia olhou a caixa de correio, antes de abrir o portão do jardim. Em geral havia um monte de folhetos de propaganda e alguns envelopes grandes para sua mãe. Sofia costumava colocar toda a correspondência sobre a mesa da cozinha, antes de ir para o seu quarto fazer a lição de casa.
Para o seu pai vinham às vezes só alguns extratos bancários, o que não era de se estranhar, pois afinal de contas ele não era um pai como os outros. O pai de Sofia era capitão de um petroleiro e passava quase todo o ano viajando. Quando voltava para casa por algumas semanas, ficava andando pela casa de chinelos e dedicava toda a sua atenção a Sofia e a sua mãe. Mas a proximidade desses momentos desaparecia por completo quando ele estava em serviço.
Hoje havia na grande caixa verde de correio apenas uma pequena carta — e ela era para Sofia.
“Sofia Amundsen”, estava escrito no pequeno envelope. “Kløverveien, 3.” Era tudo; não havia remetente. A carta não estava sequer selada.
Assim que Sofia entrou, abriu o envelope. Dentro encontrou apenas uma pequena folha, não maior do que o envelope que a continha. Nela estava escrito: Quem é você?
Nada mais. A mensagem não tinha qualquer fórmula de saudação, tampouco um remetente, só estas três palavras escritas a mão, seguidas de um grande ponto de interrogação. Ela olhou mais uma vez o envelope. Estava certo… a carta era mesmo para ela. Mas quem a teria colocado na caixa de correio? Sofia fechou rapidamente a porta da casa, cuja fachada era pintada de vermelho. Como de costume, o gato Sherekan conseguiu sair furtivamente do meio dos arbustos, saltar sobre o patamar da escada e enfiar-se dentro de casa, antes que Sofia conseguisse fechar a porta.
— Miau, miau, miau!
Quando a mãe de Sofia ficava irritada por algum motivo, ela às vezes dizia que sua casa parecia uma menagerie, isto é, uma espécie de zoológico particular. De fato, Sofia estava muito satisfeita com sua coleção de bichinhos. Primeiro ela ganhou um aquário com peixes ornamentais, a quem deu os nomes de Cachinhos Dourados, Chapeuzinho Vermelho e Peter, o Pretinho. Depois vieram os periquitos Tom e Jerry, a tartaruga Govinda e finalmente Sherekan, um gato malhado. Todos os bichos serviam como uma espécie de indenização por sua mãe sair sempre tão tarde do trabalho e por seu pai ficar viajando tanto pelo mundo.
Sofia jogou a mochila da escola num canto e colocou uma tigela de ração para Sherekan. Depois, segurando a carta misteriosa, largou o corpo sobre um banquinho da cozinha.
Quem é você?
Se ela soubesse! É claro que ela era Sofia Amundsen, mas quem era esta pessoa? Isto ela ainda não tinha descoberto direito.
E se tivesse outro nome? Anne Knutsen, por exemplo. Será que só por isso seria também uma outra pessoa?
De repente lembrou-se de que no começo seu pai queria que ela se chamasse Synnøve Amundsen. Sofia tentou imaginar-se estendendo a mão e apresentando-se como Synnøve Amundsen. Não, não dava. Toda vez que pensava nisso imaginava sempre outra pessoa.
Então saltou do banquinho e foi para o banheiro com a carta misteriosa na mão. Parou diante do espelho e olhou-se fixamente nos olhos.
— Sou Sofia Amundsen — disse.
Como resposta, a garota do espelho não teve a menor reação. Não importava o que Sofia fizesse, ela fazia a mesma coisa. Com um movimento rápido, Sofia tentou se antecipar à imagem do espelho; mas ela foi igualmente rápida.
— Quem é você? — perguntou Sofia.
Também desta vez não recebeu qualquer resposta; por um breve instante, porém, não teve certeza de ter sido ela ou sua imagem no espelho quem tinha feito a pergunta. Com o dedo indicador, Sofia apertou o nariz da figura do espelho e disse: — Você sou eu. E como não recebeu qualquer resposta, inverteu a sentença e disse:
— Eu sou você.
Sofia Amundsen nunca estava muito satisfeita com sua aparência. Com freqüência ouvia que tinha lindos olhos amendoados, mas provavelmente lhe diziam isto porque seu nariz era pequeno demais em relação ao tamanho da boca. O pior de tudo eram mesmo os cabelos lisos, que não tomavam forma nenhuma. Às vezes seu pai lhe acariciava os cabelos e a chamava de “a garota dos cabelos de linho”, parodiando uma composição de Claude Debussy. Para ele era fácil dizer isto; afinal, não era ele quem estava condenado a carregar a vida inteira cabelos pretos e escorridos de tão lisos. E nos cabelos de Sofia não adiantava passar nada, nem spray, nem gel.
Às vezes ela achava sua aparência tão estranha que se perguntava se não teria sido um bebê malformado. Sua mãe sempre contara que tivera um parto difícil. Mas será que era mesmo o nascimento que determinava a aparência de uma pessoa?
Não era um tanto esquisito ela não saber quem era? E também não era uma injustiça o fato de ela mesma não poder determinar sua aparência? Isto simplesmente lhe tinha sido imposto ao nascer. Seus amigos, estes sim ela talvez pudesse escolher, mas não tinha tido a chance de escolher-se a si própria. Não tinha sequer decidido ser uma pessoa.
O que era uma pessoa?
Sofia olhou de novo a moça no espelho.
— Acho que agora prefiro ir fazer minha lição de casa — disse, como que tentando se desculpar. No momento seguinte já estava no corredor.
Não, prefiro ir até o jardim, pensou.
— Miau, miau, miau!
Sofia espantou o gato para a escada de fora e fechou a porta.
Quando já estava no jardim, caminhando no passeio de saibro com a carta misteriosa na mão, experimentou subitamente uma sensação estranha. Sentiu-se como uma boneca que ganhara vida por uma varinha de condão.
Não era extraordinário estar viva naquele momento e ser personagem de uma aventura maravilhosa como a vida?
Sherekan saltou elegantemente sobre o passeio de saibro e desapareceu na groselheira, que se erguia bem ao lado. Era um gato muito vivo, cheio de uma energia vibrante que ia dos bigodes brancos até a ponta da cauda chicoteante. Ele também estava ali no jardim, mas certamente não tinha consciência disso do mesmo modo como Sofia.
Depois de pensar um pouco sobre o fato de existir, Sofia não pôde deixar de pensar também que um dia desapareceria.
Estou vivendo no mundo agora, pensou. Mas um dia terei desaparecido.
Será que havia uma vida após a morte? Também sobre esta questão o gato não fazia a menor idéia.
Há pouco tempo a avó de Sofia tinha morrido. Por mais de meio ano, Sofia sentia todos os dias a falta que sua avó lhe fazia. Não era injusto que um dia a vida tivesse um fim?
Cismada, Sofia parou um instante no passeio de saibro. Tentou concentrar todo o seu pensamento no fato de existir, a fim de esquecer que um dia deixaria de existir. Mas não conseguia. No mesmo instante em que se concentrava no fato de existir, pensava também que um dia morreria. E o mesmo ocorria ao contrário: só quando sentiu intensamente que um dia desapareceria é que pôde entender exatamente o quanto a vida era infinitamente valiosa. E quanto maior e mais clara era uma face da moeda, tanto maior e mais clara se tornava a outra. Vida e morte eram os dois lados de uma mesma coisa.
Não se pode experimentar a sensação de existir sem se experimentar a certeza que se tem de morrer, pensou. E é igualmente impossível pensar que se tem de morrer sem pensar ao mesmo tempo em como a vida é fantástica.
Sofia lembrou-se de que sua avó dissera algo semelhante no dia em que soube de sua doença. — Só agora entendo o quanto a vida é rica — foram suas palavras.
Não era triste que a maioria das pessoas tivesse primeiro que ficar doente para só então entender o quanto a vida é bela? Ou então que tivessem de encontrar uma carta misteriosa na caixa de correio?
Talvez fosse melhor verificar se não havia chegado mais alguma coisa. Sofia correu até o portão e examinou o que havia dentro da caixa de correio. E estremeceu da cabeça aos pés ao descobrir outro envelope idêntico ao primeiro. Será que ela verificara direito se a caixa estava realmente vazia da primeira vez que apanhou a correspondência?
O outro envelope também trazia o seu nome. Abriu-o e tirou uma pequena folha de papel, igual à primeira, em que estava escrito:
De onde vem o mundo?
Não faço a menor idéia, pensou Sofia. Mas também ninguém sabe! E apesar disso Sofia achou a pergunta pertinente. Pela primeira vez em sua vida ela pensava que era praticamente impossível viver num mundo sem ao menos perguntar de onde ele vinha.
Sofia estava tão perturbada com as duas cartas misteriosas que resolveu se enfiar em sua caverna. A caverna era o seu esconderijo secreto. E ela só ia para lá quando estava muito brava, muito triste ou muito alegre. Hoje ela estava muito confusa.
Capítulo 2 (Excerto)
A CARTOLA
O QUE É FILOSOFIA?
(Páginas 24-26.)
(…)
Muitas pessoas têm hobbies diferentes. Algumas colecionam moedas e selos antigos, outras gostam de trabalhos manuais, outras ainda dedicam todo o seu tempo livre a uma determinada modalidade de esporte.
Também há os que gostam de ler. Mas os tipos de leitura também são muito diferentes. Alguns lêem apenas jornais ou gibis, outros gostam de romances, outros ainda preferem livros sobre temas diversos como astronomia, a vida dos animais ou as novas descobertas da tecnologia.
Se me interesso por cavalos ou pedras preciosas, não posso querer que todos os outros tenham o mesmo interesse. Se fico grudado na televisão assistindo a todas as transmissões de esporte, tenho que aceitar que outras pessoas achem o esporte uma chatice.
Mas será que existe alguma coisa que interessa a todos? Será que existe alguma coisa que concerne a todos, não importando quem são ou onde se encontram? Sim, querida Sofia, existem questões que deveriam interessar a todas as pessoas. E é sobre tais questões que trata este curso.
Qual é a coisa mais importante da vida? Se fazemos esta pergunta a uma pessoa de um país assolado pela fome, a resposta será: a comida. Se fazemos a mesma pergunta a quem está morrendo de frio, então a resposta será: o calor. E quando perguntamos a alguém que se sente sozinho e isolado, então certamente a resposta será: a companhia de outras pessoas.
Mas, uma vez satisfeitas todas essas necessidades, será que ainda resta alguma coisa de que todo mundo precise? Os filósofos acham que sim. Eles acham que o ser humano não vive apenas de pão. É claro que todo mundo precisa comer. E precisa também de amor e de cuidado. Mas ainda há uma coisa de que todos nós precisamos. Nós temos a necessidade de descobrir quem somos e por que vivemos.
Portanto, interessar-se em saber por que vivemos não é um interesse “casual” como colecionar selos, por exemplo. Quem se interessa por tais questões toca um problema quem vem sendo discutido pelo homem praticamente desde quando passamos a habitar este planeta. A questão de saber como surgiu o universo, a Terra e a vida por aqui é uma questão maior e mais importante do que saber quem ganhou mais medalhas de ouro nos últimos Jogos Olímpicos.
O melhor meio de se aproximar da filosofia é fazer perguntas filosóficas:
Como o mundo foi criado? Será que existe uma vontade ou um sentido por detrás do que ocorre? Há vida depois da morte? Como podemos responder a estas perguntas? E, principalmente: como devemos viver?
Essas perguntas têm sido feitas pelas pessoas de todas as épocas. Não conhecemos nenhuma cultura que não se tenha perguntado quem é o ser humano e de onde veio o mundo.
Basicamente, não há muitas perguntas filosóficas para se fazer. Já fizemos algumas das mais importantes. Mas a história nos mostra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas que estamos fazendo.
É mais fácil, portanto, fazer perguntas filosóficas do que respondê-las.
Da mesma forma, hoje em dia cada um de nós deve encontrar a sua resposta para estas perguntas. Não dá para procurar numa enciclopédia se existe um Deus, ou se há vida após a morte. A enciclopédia também não nos diz como devemos viver. Mas a leitura do que outras pessoas pensaram pode nos ser útil quando precisamos construir nossa própria imagem do mundo e da vida.
A busca dos filósofos pela verdade pode ser comparada com uma história policial. Alguns acham que Andersen é o criminoso; outros acham que é Nielsen ou Jepsen. Um crime na vida real pode chegar a ser desvendado pela polícia um dia. Mas também podemos imaginar que a polícia nunca consiga solucionar determinado caso, embora a solução para ele esteja em algum lugar.
Mesmo que seja difícil responder a uma pergunta, isto não significa que ela não tenha uma – e só uma – resposta certa. Ou há algum tipo de vida depois da morte, ou não.
Muitos dos antigos enigmas foram resolvidos pela ciência ao longo dos anos. Antigamente, um grande enigma era saber como era o lado escuro da Lua. Não era possível chegar a uma resposta apenas através de discussão; a resposta ficava para a imaginação de cada um. Hoje, porém, sabemos exatamente como é o lado escuro da Lua. Não dá mais para “acreditar” que há um homem morando na Lua, nem que ela é um grande queijo, todo cheio de buracos.
Um dos grandes filósofos gregos, que viveu há mais de dois mil anos, acreditava que a filosofia era fruto da capacidade do homem de se admirar com as coisas. Ele achava que para o homem a vida é algo tão singular que as perguntas filosóficas surgem como que espontaneamente. É como o que ocorre quando assistimos a um truque de mágica: não conseguimos entender como é possível acontecer aquilo que estamos vendo diante de nossos olhos. E então, depois de assistirmos à apresentação, nos perguntamos: como é que o mágico conseguiu transformar dois lenços de seda brancos num coelhinho vivo?
Para muitas pessoas, o mundo é tão incompreensível quanto o coelhinho que um mágico tira de uma cartola que, há poucos instantes, estava vazia.
No caso do coelhinho, sabemos perfeitamente que o mágico nos iludiu. Quando falamos sobre o mundo, as coisas são um pouco diferentes. Sabemos que o mundo não é mentira ou ilusão, pois estamos vivendo nele, somos parte dele. No fundo, somos o coelhinho branco que é tirado da cartola. A única diferença entre nós e o coelhinho branco é que o coelhinho não sabe que está participando de um truque de mágica. Conosco é diferente. Sabemos que estamos fazendo parte de algo misterioso e gostaríamos de poder explicar como tudo funciona.
PS. Quanto ao coelhinho branco, talvez seja melhor compará-lo com todo o universo. Nós, que vivemos aqui, somos os bichinhos microscópicos que vivem na base dos pêlos do coelho. Mas os filósofos tentam subir da base para a ponta dos finos pêlos, a fim de poder olhar bem dentro dos olhos do grande mágico.
(…)
UMA ESTRANHA CRIATURA
(Páginas 27-31)
(…)
Eu já disse que a capacidade de nos admirarmos com as coisas é a única coisa de que precisamos para nos tornarmos bons filósofos? Se não, então digo agora: A ÚNICA COISA DE QUE PRECISAMOS PARA NOS TORNARMOS BONS FILÓSOFOS É A CAPACIDADE DE NOS ADMIRARMOS COM AS COISAS.
Todo mundo sabe que os bebês possuem essa capacidade. Depois de alguns meses na barriga da mãe, eles são empurrados para uma realidade completamente diferente. Mas depois, quando crescem, parece que esta capacidade vai desaparecendo. Como se explica isto? Será que Sofia Amundsen é capaz de responder a esta pergunta?
Vamos ver: se um bebezinho pudesse falar, na certa ele diria alguma coisa sobre o novo e estranho mundo a que chegou. Pois apesar de a criança não saber falar, podemos ver como ela olha ao seu redor e quer tocar com curiosidade todos os objetos que vê.
Quando vêm as primeiras palavras, a criança pára e diz “Au! Au!” toda vez que vê um cachorro. Podemos ver como ela fica agitada dentro do carrinho e movimenta os bracinhos dizendo “Au, au, au!”. Para nós, que já deixamos para trás alguns anos de nossas vidas, o entusiasmo da criança pode parecer até um tanto exagerado. “Sim, sim, é um au-au”, dizemos nós, os “vividos”. “Mas agora fique quietinho.” Não ficamos muito entusiasmados, pois já vimos outros cachorros antes.
Esta cena insólita talvez se repita algumas centenas de vezes, até que a criança passe por um cachorro, ou por um elefante, ou por um hipopótamo sem ficar fora de si. Mas muito antes de a criança aprender a falar corretamente – ou muito antes de ela aprender a pensar filosoficamente -, ela já se habituou com o mundo.
Uma pena, se você quer saber o que eu acho.
O que importa para mim, querida Sofia, é que você não esteja entre aqueles que consideram o mundo uma evidência. Para ter certeza disso, vamos fazer dois exercícios de raciocínio antes de começarmos com nosso curso propriamente dito.
Imagine que você está dando um passeio na floresta. De repente, no meio do caminho, você vê uma pequena nave espacial. Então, um pequeno marciano sai da nave e olha para você lá de baixo…
O que você pensaria? Bem, isto não importa. Mas será que já passou pela sua cabeça que você pode ser uma marciana?
Naturalmente, é muito pouco provável que você um dia tropece numa criatura de outro planeta. Não sabemos nem mesmo se há vida em outros planetas. Mas pode ser que você um dia tropece em si mesma. Pode ser que um belo dia você pare o que está fazendo e passe a se ver de uma forma completamente diferente. E pode ser que isto aconteça justamente durante um passeio na floresta.
“Sou uma criatura estranha”, você irá pensar. “Sou um animal misterioso…”
E então vai ser como acordar de um sono de anos. Como o da Bela Adormecida. “Quem sou eu?”, você irá se perguntar. Você sabe que viaja pelo universo num planeta. Mas o que é o universo?
Você está me acompanhando, Sofia? Então vamos fazer mais um teste de raciocínio.
Certa manhã, mamãe, papai e o pequeno Thomas – a esta altura já com dois ou três anos – estão sentados na cozinha tomando o café. De repente, mamãe se levanta, vira-se para a pia e então… bem, então papai começa a flutuar sob o teto da cozinha.
O que você acha que Thomas diria? Talvez ele apontasse o dedo para seu pai e dissesse: “Papai voando!”.
Na certa Thomas ficaria espantado, mas ficar espantado não é novidade para ele. Afinal, o papai faz tantas coisas estranhas que, a seus olhos, um pequeno vôo sobre a mesa do café da manhã não faz lá muita diferença. Todos os dias, por exemplo, seu pai faz a barba com um aparelhinho esquisito, às vezes sobe no telhado e vira a antena da TV, outras vezes enfia a cabeça no compartimento do motor do carro e sai com a cara toda preta lá de dentro.
Agora é a vez da mamãe. Ela ouviu o que Thomas disse e vira-se resoluta. Como você acha que ela reagiria à visão de seu marido voando sobre a mesa da cozinha?
Na mesma hora ela deixa cair o vidro de geléia e solta um grito de pavor. Talvez ela até precise de um médico, depois que papai voltar e sentar-se em sua cadeira. (Há muito tempo ele deveria ter aprendido a se comportar à mesa!)
Por que será que Thomas e mamãe reagem de forma tão diferente? O que você acha?
É uma questão de hábito. (Grave bem isso!) Mamãe aprendeu que as pessoas não podem voar. Thomas não. Ele ainda não tem muita certeza do que é possível e do que não é possível neste mundo.
Mas e quanto ao mundo propriamente dito, Sofia? Você acha que ele é possível? O mundo também fica pairando livremente no espaço.
O triste de tudo isto é que, à medida que crescemos, nos acostumamos não apenas com a lei da gravidade. Acostumamo-nos, ao mesmo tempo, com o mundo em si.
Ao que tudo indica, ao longo da nossa infância nós perdemos a capacidade de nos admirarmos com as coisas do mundo. Mas com isto perdemos uma coisa essencial – algo de que os filósofos querem nos lembrar. Pois em algum lugar dentro de nós, alguma coisa nos diz que a vida é um grande enigma. E já experimentamos isto, muito antes de aprendermos a pensar.
Para ser mais preciso: embora as questões filosóficas digam respeito a todas as pessoas, nem todas se tornam filósofos. Por diferentes motivos, a maioria delas é tão absorvida pelo cotidiano que a admiração pela vida acaba sendo completamente reprimida. (Elas se alojam bem no fundo do pêlo do coelho, fazem um ninho bem confortável e ficam lá embaixo pelo resto de suas vidas.)
Para as crianças, o mundo – e tudo o que há nele – é uma coisa nova; algo que desperta a admiração. Nem todos os adultos vêem a coisa dessa forma. A maioria deles vivencia o mundo como uma coisa absolutamente normal.
E precisamente neste ponto é que os filósofos constituem uma louvável exceção. Um filósofo nunca é capaz de se habituar completamente com este mundo. Para ele ou para ela o mundo continua a ter algo de incompreensível, algo até de enigmático, de secreto. Os filósofos e as crianças têm, portanto, uma importante característica comum. Podemos dizer que um filósofo permanece a sua vida toda tão receptivo e sensível às coisas quanto um bebê.
E agora você precisa se decidir, querida Sofia: você é uma criança que ainda não se “acostumou” com o mundo? Ou você é uma filósofa capaz de jurar que isto nunca vai lhe acontecer?
Se você simplesmente balança a cabeça e não se sente nem como criança, nem como filósofa, a explicação para isto é que você já se acostumou tanto com o mundo que não consegue mais se surpreender com ele. Neste caso, você corre perigo. E justamente por medida de segurança, para evitar que isto aconteça, é que você está recebendo este curso de filosofia. Eu não quero que justamente você passe a pertencer ao clube dos apáticos e indiferentes. Quero que você viva uma vida instigante.
Você receberá este curso inteiramente grátis. Assim, não haverá devolução de dinheiro, caso você desista de fazê-lo. Se você quiser interromper o curso em determinado momento, também não há problema. Você só precisa deixar uma mensagem para mim na caixa de correio. Esta mensagem pode ser, digamos, uma rã viva. De qualquer forma, tem de ser alguma coisa verde. Afinal, não vamos querer assustar o carteiro.
Vamos resumir: um coelho branco é tirado de dentro de uma cartola. E porque se trata de um coelho muito grande, este truque leva bilhões de anos para acontecer. Todas as crianças nascem bem na ponta dos finos pêlos do coelho. Por isso elas conseguem se encantar com a impossibilidade do número de mágica a que assistem. Mas conforme vão envelhecendo, elas vão se arrastando cada vez mais para o interior da pelagem do coelho. E ficam por lá. Lá embaixo é tão confortável que elas não ousam mais subir até a ponta dos finos pêlos, lá em cima. Só os filósofos têm ousadia para se lançar nesta jornada rumo aos limites da linguagem e da existência. Alguns deles não chegam a concluí-la, mas outros se agarram com força aos pêlos do coelho e berram para as pessoas que estão lá embaixo, no conforto da pelagem, enchendo a barriga de comida e bebida:
— Senhoras e senhores — gritam eles —, estamos flutuando no espaço!
Mas nenhuma das pessoas lá de baixo se interessa pela gritaria dos filósofos.
— Deus do céu! Que caras mais barulhentos! — elas dizem.
E continuam a conversar: será que você poderia me passar a manteiga? Qual a cotação das ações hoje? Qual o preço do tomate? Você ouviu dizer que a Lady Di está grávida de novo?
(…)
CAPÍTULO 3 (EXCERTO)
OS MITOS
A VISÃO MITOLÓGICA DO MUNDO
(Páginas 34-40.)
(…)
Por filosofia entendemos uma forma completamente nova de pensar, surgida na Grécia por volta de 600 a.C. Antes disso, todas as perguntas dos homens haviam sido respondidas pelas diferentes religiões. Essas explicações religiosas tinham sido passadas de geração para geração através dos mitos.
Um mito é a história de deuses e tem por objetivo explicar por que a vida é assim como é.
Ao longo dos milênios, espalhou-se por todo o mundo uma diversificada gama de explicações mitológicas para as questões filosóficas. Os filósofos gregos tentaram provar que tais explicações não eram confiáveis.
A fim de entendermos o pensamento dos primeiros filósofos, precisamos entender primeiro o que significa ter uma visão mitológica do mundo. Vamos tomar por exemplo algumas concepções mitológicas aqui mesmo do Norte da Europa. Não há necessidade de irmos muito longe para mostrar o que queremos.
Na certa você já ouviu falar de Tor e de seu martelo. Antes de o cristianismo chegar à Noruega, acreditava-se aqui no Norte que Tor cruzava os céus numa carruagem puxada por dois bodes. E quando ele agitava seu martelo, produziam-se raios e trovões. A palavra “trovão” – Thor-døn em norueguês – significa originariamente “o rugido de Tor”. Em sueco, a palavra para trovão é åska, na verdade ås-aka – que significa a jornada dos deuses no céu.
Quando troveja e relampeja, geralmente também chove. E a chuva era vital para os camponeses da era dos vikinks. Assim, Tor era adorado como o deus da fertilidade.
A resposta mitológica à questão de saber por que chovia era, portanto, a de que Tor agitava seu martelo. E quando caía a chuva, as sementes germinavam e as plantas cresciam nos campos.
Não se entendia por que as plantas cresciam nos campos e como davam frutos. Mas os camponeses sabiam que isto tinha alguma coisa a ver com a chuva. Além disso, todos acreditavam que a chuva tinha algo a ver com Tor. E isto fazia dele um dos deuses mais importantes do Norte da Europa.
Mas Tor era importante ainda por outro motivo, que tinha algo a ver com toda a ordem do mundo.
Os vikings imaginavam o mundo habitado como uma ilha, constantemente ameaçada por perigos externos. Esta parte habitada do mundo eles chamavam de Midgard, que significa “o reino que está no meio”. Em Midgard também havia Ǻsgard, a morada dos deuses. Fora de Midgard havia Utgard, isto é, o reino de fora, habitado pelos perigosos trolls, que não se cansavam de tentar destruir o mundo com toda a sorte de golpes baixos. Chamamos estes monstros malignos também de “forças do caos”. Na religião nórdica e também na maioria das outras culturas, as pessoas acreditavam que havia um equilíbrio precário entre as forças do bem e do mal.
Uma possibilidade que os trolls tinham de destruir Midgard era roubar Freyja, a deusa da fertilidade. Se conseguissem isto, nada mais cresceria nos campos e as mulheres não teriam mais filhos. Por isso era tão importante que os bons deuses mantivessem os trolls afastados.
E também nesse caso Tor era importante: seu martelo não trazia apenas chuva, mas era também uma arma na luta contra as perigosas forças do caos. O martelo emprestava a Tor um poder quase infinito. Ele podia, por exemplo, atirá-lo nos trolls e matá-los. E também não precisava ter medo de perdê-lo, pois o martelo era como um bumerangue e voltava para seu dono.
Esta era a explicação mitológica para o funcionamento da natureza e para o fato de existir sempre uma luta entre o bem e o mal.
Mas não se tratava apenas de explicações.
As pessoas não podiam simplesmente ficar sentadas de braços cruzados, esperando pela intervenção dos deuses, quando catástrofes tais como secas e epidemias as ameaçavam. As pessoas precisavam elas mesmas participar dessa luta contra o mal. E isto elas faziam através de toda a sorte de cerimônias ou rituais religiosos.
O principal ritual religioso na Antiguidade nórdica era o sacrifício. Oferecer alguma coisa em sacrifício a um deus significava aumentar o seu poder. As pessoas precisavam, por exemplo, oferecer sacrifícios aos deuses, a fim de que eles se fortalecessem o suficiente para vencer as forças do mal. Isto podia ser feito, por exemplo, sacrificando-se um animal. Presume-se que a Tor eram sacrificados sobretudo bodes. Para Odin sacrificavam-se às vezes também pessoas.
O mito mais conhecido na Noruega é narrado no poema Trymskveda. Ele nos conta que Tor adormeceu e que, quando acordou, seu martelo tinha desaparecido. Tor ficou tão furioso que suas mãos tremeram e sua barba estremeceu. Acompanhado de seu homem de confiança, Loki, Tor foi até Freyja para lhe pedir emprestadas suas asas, a fim de que Loki pudesse voar até Jotunheim e descobrir se os trolls tinham roubado o martelo de Tor. Lá chegando, Loki encontrou Trym, o rei dos trolls, que logo foi se gabando por ter enterrado o martelo cinco quilômetros debaixo da terra. E, para completar, Trym disse que os deuses só teriam o martelo de volta se Freyja se casasse com ele.
Você está acompanhando, Sofia? Subitamente, os deuses do bem estão diante de um drama jamais visto: um drama envolvendo um refém. Os trolls têm agora em seu poder a mais importante arma de defesa dos deuses, e esta situação é absolutamente inaceitável. Enquanto os trolls estiverem com o martelo de Tor, seu poder sobre os mundos dos deuses e dos homens será irrestrito. Para devolver o martelo eles exigem Freyja. Mas esta troca não é possível. Se os deuses entregarem a deusa da fertilidade, que protege todas as formas de vida, então o verde desaparecerá dos pastos, e deuses e homens acabarão morrendo. Não há, portanto, como avançar ou como retroceder nesta situação. Para você entender o que estou dizendo, imagine um grupo terrorista que ameaça explodir uma bomba atômica no centro de Londres ou de Paris, caso suas perigosas exigências não sejam cumpridas.
Continuando, o mito nos diz que Loki volta para Ǻsgard e pede a Freyja que se enfeite de noiva, pois ela terá de se casar com o troll (infelizmente, infelizmente!). Freyja fica furiosa e diz que, se ela se casar com um troll, as pessoas vão pensar que ela é louca por homens.
E então o deus Heimdal tem uma boa idéia. Ele sugere que Tor se fantasie de noiva. Prendendo os cabelos e amarrando duas pedras no lugar dos seios, ele ficaria parecido com uma mulher. É claro que Tor não fica muito entusiasmado com esta idéia, mas acaba reconhecendo que só assim os deuses teriam uma chance de reaver o martelo. No fim, Tor é fantasiado de noiva e Loki o acompanha como dama de honra. — E assim levamos não apenas uma, mas duas mulheres para os trolls — diz Loki em tom de brincadeira.
Se quisermos formular a coisa de uma forma mais moderna, podemos chamar Tor e Loki de um “comando antiterror” dos deuses. Fantasiados de mulher, eles pretendem se infiltrar na fortaleza dos trolls e reaver o martelo de Tor.
Logo que eles chegam a Jotunheim, os trolls iniciam todos os preparativos para as bodas. Na festa, porém, a noiva – isto é, Tor – come um boi inteiro, oito salmões e bebe três barris de cerveja. Trym fica admirado com o que vê. Por um triz o disfarce do comando antiterror não é descoberto. Mas Loki consegue salvá-los desse perigo. Ele conta que Freyja não comia havia oito dias, tão ansiosa que ela estava para chegar a Jotunheim.
Quando Trym ergue o véu da noiva para beijá-la, ele recua ao se deparar com o olhar severo de Tor. Mas também desta vez Loki consegue contornar a situação. Ele conta que a noiva havia sete noites não conseguia dormir de alegria com o casamento. Então Trym ordena que tragam o martelo e que ele seja colocado no colo da noiva durante a cerimônia de casamento.
Conta o mito que quando Tor viu o martelo no seu colo, ele deu uma boa risada. Primeiro matou Trym e depois todos os outros trolls de Jotunheim. E, assim, o terrível drama envolvendo um refém teve um final feliz. Mais uma vez, Tor – o Batman ou o James Bond dos deuses – tinha vencido as forças do mal.
Bem, acho que podemos parar por aqui com a história do mito, Sofia. Mas o que será que este mito em particular realmente quer nos dizer? É claro que ele não foi escrito em versos apenas para divertir. Também este mito quer explicar alguma coisa. E aqui vai uma interpretação possível:
Quando a seca assolava uma região, as pessoas precisavam de uma explicação para a total ausência de chuva. Não seria porque os trolls tinham roubado o martelo de Tor?
Podemos imaginar também que este mito tenta explicar a alternância das estações do ano: no inverno a natureza está morta, porque o martelo de Tor está em Jotunheim. Mas na primavera Tor consegue reavê-lo. E, assim, os mitos tentam explicar às pessoas algo que elas não conseguem entender.
Mas as pessoas não se contentavam apenas com explicações como esta que acabamos de ouvir. Elas também tentavam participar desses acontecimentos tão importantes para suas vidas. E o faziam através de diferentes rituais religiosos, que guardavam uma relação com os mitos. Assim, podemos imaginar que no caso de seca, ou de uma colheita ruim, as pessoas encenassem um drama que recontasse a história do mito. Talvez um homem da aldeia se fantasiasse de noiva usando pedras no lugar dos seios, a fim de reaver o martelo que estava em poder dos trolls. Era esta a forma que as pessoas viam de fazer alguma coisa para atrair chuva e fazer as sementes germinarem nos campos.
Embora não saibamos exatamente como tudo acontecia, uma coisa é certa: há muitos exemplos de outras partes do mundo que nos mostram que as pessoas encenavam um “mito das estações do ano”, a fim de acelerar os processos naturais.
O que fizemos foi apenas um breve passeio pelo mundo dos mitos nórdicos. Há inúmeros outros mitos sobre Tor e Odin, Frey e Freyja, Hod e Balder, e sobre muitas, muitas outras divindades. Visões míticas como estas existiam no mundo todo, muito antes de os filósofos começarem a questioná-las. Pois os gregos também tinham a sua visão mitológica do mundo, quando surgiram os primeiros filósofos. Ao longo dos séculos, as histórias dos deuses foram sendo passadas de geração em geração. Na Grécia, os deuses eram chamados de Zeus e Apolo, Hera e Atena, Dioniso e Asclépio, Heracles e Hefaístos, apenas para citar alguns nomes.
Por volta de 700 a.C., Homero e Hesíodo registraram por escrito boa parte do tesouro da mitologia grega. Isto levou a uma situação completamente nova. É que, a partir do momento em que os mitos foram colocados no papel, já se podia discutir sobre eles.
Os primeiros filósofos gregos criticaram a mitologia descrita por Homero, porque para eles os deuses ali representados tinham muitas semelhanças com os homens. De fato, eles eram exatamente tão egoístas e traiçoeiros como qualquer um de nós. Pela primeira vez na história da humanidade foi dito claramente que os mitos talvez não passassem de frutos da imaginação do homem.
Um exemplo dessa crítica aos mitos pode ser encontrado no filósofo Xenófanes, nascido por volta de 570 a.C. Para ele, as pessoas teriam criado os deuses à sua própria imagem e semelhança: “Os mortais acreditam que os deuses nascem, falam e se vestem de forma semelhante à sua própria… Os etíopes imaginam seus deuses pretos e de nariz achatado; os tracianos, ao contrário, os vêem ruivos e de olhos azuis… Se as vacas, cavalos ou leões tivessem mãos e com elas pudessem pintar e produzir obras como os homens, eles criariam e representariam suas divindades à sua imagem e semelhança: os deuses dos cavalos teriam feições eqüinas, os das vacas se pareceriam com elas, e assim por diante”.
Nesta época, os gregos fundaram muitas cidades-Estados na Grécia e em suas colônias no Sul da Itália e na Ásia Menor. Nelas, os escravos faziam todo o serviço braçal e os cidadãos livres podiam dedicar-se exclusivamente à política e à cultura. Sob tais condições de vida, o pensamento humano deu um salto: sem depender de nada nem de ninguém, cada indivíduo podia agora opinar sobre como a sociedade devia ser organizada. Desse modo, o indivíduo podia formular suas questões filosóficas sem ter que para isso recorrer à tradição dos mitos.
Dizemos que naquela época ocorreu a evolução de uma forma de pensar atrelada ao mito para um pensamento construído sobre a experiência e a razão. O objetivo dos primeiros filósofos gregos era o de encontrar explicações naturais para os processos da natureza.
CAPÍTULO 4 (EXCERTO)
OS FILÓSOFOS DA NATUREZA
O PROJETO DOS FILÓSOFOS
(Página 43.)
Aqui estamos nós novamente! É melhor a gente partir diretamente para a lição de hoje, sem desviar para coelhinhos brancos ou coisa parecida.
Vou contar para você, em linhas gerais, como as pessoas têm refletido sobre questões filosóficas desde a Antiguidade até os dias de hoje. E tudo isto seguindo a ordem dos acontecimentos.
Como a maioria dos filósofos viveu em outra época – e provavelmente também numa cultura completamente diferente da nossa -, vale a pena examinar o projeto de cada filósofo. Quero dizer com isto que precisamos tentar entender do que precisamente se ocuparam estes filósofos. Um filósofo pode se perguntar, por exemplo, como surgem as plantas e os animais. Outro pode querer descobrir se há um Deus ou se as plantas têm uma alma imortal.
Depois de termos definido qual é o projeto de determinado filósofo, será mais fácil acompanhar seu pensamento, pois nenhum filósofo pode se ocupar de todas as questões concernentes à filosofia.
Estou sempre falando de filósofos e de seus pensamentos, e isto tem uma razão de ser. É que também a história da filosofia está marcada pela atuação de homens. De fato, em toda a história da humanidade a mulher foi subjugada tanto como ser feminino quanto como ser pensante. E isto é ruim, pois desta forma se perderam muitas experiências importantes. Somente no nosso século [XX] é que as mulheres entram de fato para a história da filosofia.
Não vou passar lição de casa. Quer dizer, aqui você não vai ter que resolver complicadas tarefas de matemática. De vez em quando, porém, vou pedir a você um pequeno exercício.
Se você está de acordo com estas condições, podemos começar.
OS FILÓSOFOS DA NATUREZA
(Páginas 43-45.)
Os primeiros filósofos gregos são freqüentemente chamados de “filósofos da natureza”, porque se interessavam sobretudo pela natureza e pelos processos naturais.
Já tivemos oportunidade de nos perguntar de onde vêm todas as coisas. Hoje em dia muitas pessoas acreditam, umas mais, outras menos, que em algum momento tudo surgiu do nada. Este pensamento não era muito difundido entre os gregos. Por alguma razão, eles sempre partiam do fato de que sempre existiu “alguma coisa”.
A grande questão, portanto, não era saber como tudo surgiu do nada. O que instigava os gregos era saber como a água podia se transformar em peixes vivos, ou como a terra sem vida podia se transformar em árvores frondosas ou em flores multicoloridas. Tudo isto sem falar em como um bebê podia sair do corpo de sua mãe!
Os filósofos viam com seus próprios olhos que havia constantes transformações na natureza. Mas como estas transformações eram possíveis? Como uma substância podia se transformar em algo completamente diferente, numa forma de vida, por exemplo?
Os primeiros filósofos tinham uma coisa em comum: eles acreditavam que determinada substância básica estava por trás de todas essas transformações. Não é muito fácil explicar como eles chegaram a esta idéia. Sabemos apenas que ela se desenvolveu a partir da noção de que deveria haver uma substância básica, que fosse a causa oculta, por assim dizer, de todas as transformações da natureza.
Para nós, o mais interessante não é saber que respostas esses primeiros filósofos encontraram. O interessante é saber que perguntas eles fizeram e que tipo de resposta buscavam. Mais importante para nós é saber como, e não o que eles pensavam exatamente.
Sabemos que eles colocavam questões referentes às transformações que podiam observar na natureza, na tentativa de descobrir algumas leis naturais que fossem eternas. Eles queriam entender os fenômenos naturais, sem ter que para isto recorrer aos mitos. Interessava-lhes, sobretudo, tentar entender por si mesmos os processos naturais, por meio da observação da natureza. E isto era algo completamente diferente da tentativa de explicar raios e trovões, inverno e primavera por referência a acontecimentos no mundo dos deuses.
E assim a filosofia se libertou da religião. Podemos dizer que os filósofos da natureza deram os primeiros passos na direção de uma forma científica de pensar. E com isto deram o pontapé inicial para todas as ciências naturais, surgidas posteriormente.
A maior parte de tudo o que os filósofos da natureza disseram e escreveram ficou perdida para a posteridade. E a maior parte do pouco que sabemos está nos escritos de Aristóteles, que viveu duzentos anos depois dos primeiros filósofos. Mas Aristóteles apenas sintetiza os resultados a que tinham chegado os filósofos que viveram antes dele. Isto significa que nem sempre é possível sabermos como eles chegaram às suas conclusões. O que sabemos, porém, é suficiente para podermos afirmar que o projeto dos primeiros filósofos gregos englobava questões relacionadas à substância básica por detrás das transformações ocorridas na natureza.
TRÊS FILÓSOFOS DE MILETO
(Páginas 45-46.)
O primeiro filósofo de que temos notícia é Tales, da colônia grega de Mileto, na Ásia Menor. Tales foi um homem que viajou muito. Entre outras coisas, dizem que certa vez, no Egito, ele calculou a altura de uma pirâmide medindo a sombra da pirâmide no exato momento em que sua própria sombra tinha a mesma medida de sua altura. Dizem ainda que em 585 a.C. ele previu um eclipse solar.
Tales considerava a água a origem de todas as coisas. Não sabemos o que exatamente ele queria dizer com isto. Talvez ele quisesse dizer que toda forma de vida surge na água e a ela retorna quando se desfaz.
Quando esteve no Egito, certamente ele pôde observar como os campos inundados ficavam fecundos depois que as águas do Nilo retornavam ao seu delta. É possível que ele tenha observado também que, depois da chuva, apareciam rãs e minhocas.
Além disso, é muito provável que Tales tenha se perguntado como a água podia se transformar em gelo e em vapor, para depois voltar a ser água.
Segundo dizem, Tales teria afirmado que “todas as coisas estão cheias de deuses”. Também aqui só podemos tentar adivinhar o que ele queria dizer. Talvez ele tenha chegado à conclusão de que a terra escura era a origem de tudo, de flores e sementes até abelhas e baratas. E é possível, então, que ele tenha imaginado a terra cheia de pequenos e invisíveis “germens da vida”. De qualquer forma, é certo que com esta afirmação ele não estava pensando nos deuses de Homero.
O próximo filósofo de que temos notícia é Anaximandro, que também viveu em Mileto. Ele achava que nosso mundo era apenas um dos muitos mundos que surgem de alguma coisa e se dissolvem nesta alguma coisa que ele chamava de infinito. É difícil dizer o que ele entendia por infinito. Mas uma coisa é certa: ao contrário de Tales, Anaximandro não imaginou uma substância determinada. Talvez ele quisesse dizer que aquilo a partir do qual tudo surge é algo completamente diferente do que é criado. E como tudo que é criado é também finito, o que está antes e depois deste finito tem de ser infinito. É claro que, nesse sentido, a substância básica não podia ser algo tão trivial quanto a água.
Um terceiro filósofo de Mileto foi Anaxímenes (c. 550-526 a.C.). Para ele, o ar ou o sopro de ar era a substância básica de todas as coisas.
É claro que Anaxímenes conhecia a teoria da água de Tales. Mas de onde vinha a água? Para Anaxímenes, a água era o ar condensado. Podemos observar que, quando chove, o ar se comprime até virar água. Anaxímenes achava que se a água fosse ainda mais comprimida ela se transformaria em terra. Talvez ele tenha visto que depois do degelo aparecem a terra e a areia. Para ele, o fogo era o ar rarefeito. Na visão de Anaxímenes, portanto, terra, água e fogo surgiam do ar.
Da terra e da água até as plantas dos campos era só um pulinho. Talvez Anaxímenes acreditasse que a terra, o ar, o fogo e a água tivessem necessariamente que estar presentes para que a vida pudesse surgir. Mas o ponto de partida propriamente dito era o ar. Ele compartilhava, portanto, da opinião de Tales, segundo a qual uma substância básica subjazia a todas as transformações da natureza.
NADA PODE SURGIR DO NADA
(Páginas 46-47.)
Os três filósofos de Mileto acreditavam em uma – e só uma – substância primordial, a partir da qual tudo se originava. Mas como uma substância era capaz de subitamente se modificar e se transformar em algo completamente diferente? Vamos chamar este problema de o problema da transformação.
A partir de 500 a.C., aproximadamente, viveram na colônia grega de Eléia, no Sul da Itália, alguns filósofos. Esses “eleatas” interessavam-se por questões como esta que acabamos de mencionar. O mais conhecido entre eles foi Parmênides (c. 540-480 a.C.).
Parmênides acreditava que tudo o que existe sempre existiu. Este era um pensamento muito corrente entre os gregos, para quem era praticamente evidente que tudo o que existe no mundo sempre existiu. Nada pode surgir do nada, dizia Parmênides. E nada que existe pode se transformar em nada.
Mas Parmênides foi mais longe do que a maioria dos outros. Ele considerava totalmente impossível qualquer transformação real das coisas. Nada pode se transformar em algo diferente do que já é.
É claro que Parmênides sabia das constantes transformações que ocorrem na natureza. Mas ele não conseguia harmonizar isto com aquilo que sua razão lhe dizia. E quando era forçado a decidir se confiava nos sentidos ou na razão, decidia-se pela razão.
Todos nós conhecemos a frase “Só acredito vendo”. Mas Parmênides não acreditava nem quando via. Ele dizia que os sentidos nos fornecem uma visão enganosa do mundo; uma visão que não está em conformidade com o que nos diz a razão. Como filósofo, ele achava que sua tarefa consistia em desvendar todas as formas de “ilusão dos sentidos”.
Esta forte crença na razão humana é chamada de racionalismo. Um racionalista é aquele que tem grande confiança na razão humana enquanto fonte de conhecimento do mundo.
TUDO FLUI
(Páginas 47-48.)
Na mesma época de Parmênides viveu Heráclito (c. 540-480 a.C.) de Éfeso, na Ásia Menor. Para ele, as constantes transformações eram justamente a característica mais fundamental da natureza. Poderíamos talvez dizer que Heráclito, mais do que Parmênides, confiava no que os sentidos lhe diziam.
“Tudo flui”, dizia Heráclito. Tudo está em movimento e nada dura para sempre. Por esta razão, “não podemos entrar duas vezes no mesmo rio”. Isto porque quando entro pela segunda vez no rio, tanto eu quanto ele já estamos mudados.
Heráclito também nos chama a atenção para o fato de que o mundo está impregnado por constantes opostos. Se nunca ficássemos doentes, não saberíamos o que significa a saúde. Se não tivéssemos fome, não experimentaríamos a agradável sensação de saciá-la depois de uma refeição. Se nunca houvesse guerras, não saberíamos o valor da paz, e se nunca houvesse inverno, não poderíamos assistir à chegada da primavera.
Tanto o bem quanto o mal são necessários ao todo, dizia Heráclito. Sem a constante interação dos opostos o mundo deixaria de existir.
“Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, satisfação e fome”, dizia ele. Ele emprega nesta passagem a palavra “Deus”, mas é claro que com isto não se refere aos deuses de que falavam os mitos. Para Heráclito, Deus – ou o elemento divino – é algo que abrange o mundo inteiro. Para ele, Deus se manifesta na natureza em constante transformação e crivada de opostos.
No lugar da palavra “Deus” ele emprega com freqüência a palavra grega logos, que significa razão. Mesmo quando nós, homens, não pensamos da mesma forma ou não possuímos a mesma razão, deve haver – segundo Heráclito – uma espécie de “razão universal”, que dirige todos os fenômenos da natureza. Esta razão universal – ou “lei universal” – é a mesma para todos; é a partir dela que todos se orientam. E não obstante, a maioria das pessoas vive segundo sua própria razão, dizia Heráclito. Ele não considerava muito as pessoas que o cercavam. Para ele, a opinião da maioria delas não passava de “brincadeira de criança”.
Em todas as transformações e opostos da natureza Heráclito via, portanto, uma unidade, um todo. Esta “alguma coisa” que era subjacente a tudo ele chamava de “Deus” ou de “logos”.
QUATRO ELEMENTOS BÁSICOS
(Páginas 48-51.)
Sob certo aspecto, Parmênides e Heráclito pensavam de maneira totalmente oposta. A razão de Parmênides deixava claro que nada pode mudar. Mas as experiências sensoriais de Heráclito deixavam igualmente claro que a natureza está em constante transformação. Qual dos dois tinha razão? Será que devemos confiar no que nos diz a razão, ou será que devemos confiar nos sentidos?
Tanto Parmênides quanto Heráclito fazem duas afirmações:
Parmênides diz:
a) que nada pode mudar
e
b) que, por isso mesmo, as impressões dos sentidos não são dignas de confiança.
Heráclito, ao contrário, afirma:
a) que tudo se transforma (“tudo flui”)
e
b) que as impressões dos sentidos são confiáveis.
Desacordo maior não poderia haver entre dois filósofos! Mas qual dos dois tinha razão? Fica a cargo de Empédocles (c. 494-434 a.C.) apontar o caminho que tiraria a filosofia do impasse a que ela tinha chegado. Ele achava que tanto Parmênides quanto Heráclito tinham razão numa de suas afirmações, mas estavam totalmente enganados quanto à outra.
Para Empédocles, a grande discordância estava no fato de que ambos os filósofos tinham assumido como ponto de partida o fato quase inquestionável de que haveria apenas um elemento básico. Se isto fosse verdade, o abismo entre o que a razão nos diz e o que nossos sentidos percebem seria intransponível.
Naturalmente, a água não pode se transformar num peixe ou numa borboleta. A água em si não pode se transformar. Água pura será água pura por toda a eternidade. Sob este aspecto, Parmênides tinha razão quando afirmava que nada se transformava. Ao mesmo tempo, Empédocles concordava com Heráclito quando este dizia que devemos confiar no que dizem os nossos sentidos. Precisamos acreditar no que vemos, e o que vemos é justamente o fato de que a natureza está em constante transformação.
Empédocles chegou à conclusão de que a noção de um único elemento primordial tinha que ser refutada. Nem a água nem o ar, sozinhos, podiam se transformar num buquê de rosas ou numa borboleta. Para a natureza, portanto, seria impossível produzir alguma coisa a partir de um único elemento básico.
Empédocles acreditava que a natureza possuía ao todo quatro elementos básicos, também chamados por ele de “raízes”. Estes quatro elementos eram a terra, o ar, o fogo e a água.
Todas as transformações da natureza seriam resultado da combinação desses quatro elementos, que, depois, novamente se separavam um do outro. Pois tudo consiste em terra, ar, fogo e água, só que em diferentes proporções de mistura. Quando uma flor ou um animal morrem, esses quatro elementos voltam a se separar. Essas transformações podem ser percebidas a olho nu. No entanto, terra, ar, fogo e água continuam a ser o que são, inalterados, incólumes, independentes de todas as misturas de que façam parte. Não é certo, portanto, afirmar que “tudo” muda. Basicamente, nada se altera. O que acontece é que esses quatro elementos diferentes simplesmente se combinam e depois voltam a se separar para então se combinarem novamente.
Talvez possamos fazer aqui uma comparação com o trabalho de um pintor. Se ele tiver à sua disposição apenas uma cor – o vermelho, por exemplo -, não poderá pintar árvores verdes. Mas se ele tiver amarelo, vermelho, azul e preto, então poderá criar centenas de cores diferentes, porque poderá combinar as cores em diferentes proporções.
Um exemplo do que ocorre na cozinha nos mostra a mesma coisa. Se eu tiver apenas farinha, terei de ser mágico para fazer dela um bolo. Mas se eu tiver ovos, farinha, leite e açúcar, poderei assar diferentes bolos a partir desses quatro elementos básicos.
E não é por acaso que Empédocles considerava precisamente a terra, o ar, o fogo e a água as “raízes” da natureza. Antes dele, outros filósofos tinham tentado provar que o elemento básico teria de ser ou a água, ou o ar, ou ainda o fogo. Tales e Anaxímenes tinham enfatizado a importância da água e do ar como elementos da natureza. Os gregos também consideravam o fogo muito importante. Eles viam, por exemplo, a importância do Sol para todas as formas de vida na natureza e é claro que também sabiam do calor do corpo de homens e animais.
Talvez Empédocles tenha visto um pedaço de madeira queimando. Quando isto ocorre, alguma coisa se desintegra. Podemos ouvir a madeira estalar e crepitar. É a água. Alguma coisa vira fumaça. É o ar. O fogo é o que não vemos. E quando as chamas se apagam, sobra alguma coisa. São as cinzas, ou a terra.
Depois que Empédocles mostrou que as transformações da natureza surgem da combinação de quatro “raízes” que depois se separam, uma questão continuou em aberto: o que faz com que os elementos se combinem para dar origem a uma nova vida? E o que é responsável pelo fato de uma mistura – uma flor, por exemplo – voltar a se desintegrar?
Empédocles dizia que na natureza atuavam duas forças, por ele chamadas de amor e de disputa. O que une as coisas é o amor; o que as separa é a disputa.
Empédocles diferencia, portanto, elemento e força. Vale a pena gravar isto na memória. Até hoje a ciência estabelece uma diferença entre elemento básico e forças naturais. A ciência moderna acredita poder explicar todos os processos da natureza através de uma interação entre os diferentes elementos básicos e algumas poucas forças naturais.
Empédocles também refletiu um pouco sobre a questão de saber o que ocorre quando percebemos alguma coisa. Como posso “ver” uma flor, por exemplo? O que acontece neste caso? Você já pensou nisso, Sofia? Se não pensou, está aí uma boa oportunidade para fazê-lo.
Empédocles acreditava que, como todas as outras coisas da natureza, também nossos olhos são compostos de terra, ar, fogo e água. Assim, a terra contida em meus olhos perceberia o componente terra no objeto visto; o ar, o componente ar; o fogo, o componente fogo; e a água, o componente água. Se faltasse aos olhos um desses elementos, eu não poderia enxergar a natureza em sua totalidade.
UM POUCO DE TUDO EM TUDO
(Páginas 51-52.)
Outro filósofo que não se dava por satisfeito com a idéia de que determinado elemento básico – a água, por exemplo – podia se transformar em tudo o que vemos na natureza foi Anaxágoras (500-428 a.C.). Ele também não aceitava a idéia de que terra, ar, fogo ou água pudessem se transformar em ossos, pele ou cabelos.
Anaxágoras achava que a natureza era composta por uma infinidade de partículas minúsculas, invisíveis a olho nu. Tudo pode ser dividido em partes ainda menores, mas mesmo na menor das partes existe um pouco de tudo. Assim, se pele e cabelo não podem surgir de alguma outra coisa, então eles devem estar presentes também no leite que bebemos e nas comidas que comemos.
Dois exemplos atuais talvez nos mostrem o que Anaxágoras queria dizer. Hoje em dia, com a tecnologia do laser, podemos produzir os chamados hologramas. Se tomamos um holograma que representa um carro, por exemplo, e se este holograma é depois fragmentado, ainda assim continuaremos a ver a imagem do carro inteiro, mesmo que tenhamos na mão apenas a parte do holograma que antes mostrava o pára-choques. Isto porque todo o carro está presente em cada uma das minúsculas partes.
De certa forma, nosso corpo também é construído dessa forma. Se retiro uma célula da pele de meu dedo, o núcleo desta célula contém não apenas a descrição da minha pele. Na mesma célula estão também a descrição dos meus olhos, da cor da minha pele, do número e do formato dos meus dedos, etc. Em cada uma das células existe uma descrição detalhada da estrutura de todas as outras células do meu corpo. Em cada uma das células existe, portanto, “um pouco de tudo”. O todo está também na menor das partes.
Anaxágoras chamava estas partes minúsculas que traziam em si um pouco de tudo, de “sementes” ou “germens”.
Ainda nos lembramos de que Empédocles achava que o amor unia as partes para formar o todo. Anaxágoras também imaginou um tipo de força que seria responsável, por assim dizer, pela ordem e pela criação de homens, animais, flores e árvores. A esta força ele deu o nome de inteligência.
O que há de interessante ainda sobre Anaxágoras é o fato de ele ter sido o primeiro filósofo de Atenas, cuja vida conhecemos em parte. Natural da Ásia Menor, aos quarenta anos aproximadamente ele se mudou para Atenas. Ali foi acusado de ateísmo e teve que deixar novamente a cidade. Dentre outras coisas, ele disse que o Sol não era um deus, mas uma massa incandescente, maior do que a península do Peloponeso.
Anaxágoras interessava-se muito por astronomia. Ele acreditava que todos os corpos celestes eram feitos da mesma matéria que compunha a Terra. E chegou a esta convicção depois de ter examinado um meteorito. Por isto seria de se pensar que em outros planetas houvesse vida, dizia ele. Além disso, Anaxágoras explicou que a Lua não possuía luz própria, mas que tirava seu brilho da Terra. Finalmente, ele explicou como surgiam os eclipses.
CAPÍTULO 5 (EXCERTO)
DEMÓCRITO
(Páginas 57-60. Os textos entre colchetes são de Pausa para a Filosofia.)
A TEORIA ATÔMICA
Que bom poder falar com você novamente, Sofia! Hoje vou lhe contar sobre o último grande filósofo da natureza. Ele se chamava Demócrito (c. 460-370 a.C.) e era natural da cidade portuária de Abdera, na costa norte do mar Egeu. Se você conseguiu responder à pergunta sobre as peças de Lego [Por que o Lego é o brinquedo mais genial do mundo?], certamente não terá dificuldade para entender o projeto deste filósofo.
Demócrito concordava com seus antecessores num ponto: as transformações que se podiam observar na natureza não significavam que algo realmente “se transformava”. Ele presumiu, então, que todas as coisas eram constituídas por uma infinidade de pedrinhas minúsculas, invisíveis, cada uma delas sendo eterna e imutável. A estas unidades mínimas Demócrito deu o nome de átomos.
A palavra “átomo” significa “indivisível”. Para Demócrito era muito importante estabelecer que as unidades constituintes de todas as coisas não podiam ser divididas em unidades ainda menores. Isso porque se os átomos também fossem passíveis de desintegração e pudessem ser divididos em unidades ainda menores, a natureza acabaria por se diluir totalmente. Como uma sopa que vai ficando cada vez mais rala.
Além disso, as “pedrinhas” constituintes da natureza tinham que ser eternas, pois nada pode surgir do nada. Neste ponto, Demócrito concordava com Parmênides e com os eleatas. Para ele, os átomos eram unidades firmes e sólidas. Só não podiam ser iguais, pois se todos os átomos fossem iguais não haveria explicação para o fato de eles se combinarem para formar de papoulas a oliveiras, do pêlo de um bode ao cabelo humano.
Demócrito achava que existia na natureza uma infinidade de átomos diferentes: alguns arredondados e lisos, outros irregulares e retorcidos. E precisamente porque suas formas eram tão irregulares é que eles podiam ser combinados para dar origem a corpos os mais diversos. Independentemente, porém, do número de átomos e de sua diversidade, todos eles seriam eternos, imutáveis e indivisíveis.
Se um corpo – por exemplo, de uma árvore ou de um animal – morre e se decompõe, seus átomos se espalham e podem ser reaproveitados para dar origem a outros corpos. Pois se é verdade que os átomos se movimentam no espaço, também é verdade que eles possuem diferentes “ganchos” e “engates” e podem ser novamente reaproveitados na composição de outras coisas que vemos ao nosso redor.
E agora acho que você não tem mais dúvida sobre o que eu queria dizer com as peças de Lego, não é? Elas possuem aproximadamente todas as características que Demócrito descreveu para os átomos. E é exatamente por isso que se prestam tão bem à construção de qualquer coisa. Em primeiro lugar, são indivisíveis. Em segundo, diferem entre na si na forma e no tamanho, são compactas e impermeáveis. Além disso, as peças de Lego possuem ganchos e engates, por assim dizer, o que permite que sejam combinadas na construção de todo tipo de figura. Tais ligações podem ser desfeitas para que as mesmas peças possam ser reaproveitadas na construção de novos objetos.
Justamente por possibilitarem seu reaproveitamento é que as peças de Lego se tornaram tão populares. A mesma peça de Lego pode servir hoje para a construção de um carro, amanhã para um castelo. Ainda por cima, podemos dizer que são “eternas”. As crianças de hoje podem brincar com as mesmas pedras que fizeram a diversão de seus pais quando eles ainda eram crianças.
É claro que também podemos construir objetos de barro. Mas o barro nem sempre pode ser reaproveitado, pois se desfaz em partes cada vez menores, até se reduzir a pó. E estas minúsculas partículas de argila não podem ser reunidas para formar novos objetos.
Hoje em dia podemos dizer que a teoria atômica de Demócrito estava quase perfeita. De fato, a natureza é composta de diferentes átomos, que se ligam a outros para depois se separarem novamente. Um átomo de hidrogênio presente numa célula da pontinha do meu nariz pode ter pertencido um dia à tromba de um elefante. Um átomo de carbono que está hoje no músculo do meu coração provavelmente esteve um dia na cauda de um dinossauro.
Hoje em dia, porém, a ciência descobriu que os átomos podem ser divididos em partículas ainda menores, as “partículas elementares”. São elas os prótons, nêutrons e elétrons. E talvez estas partículas também possam ser divididas em outras, menores ainda. Mas os físicos são unânimes em achar que em alguma parte deve haver um limite para esta divisão. Deve haver as chamadas partículas mínimas, a partir das quais toda a natureza se constrói.
Demócrito não teve acesso aos aparelhos eletrônicos de nossa época. Na verdade, sua única ferramenta foi a sua razão. Mas a razão não lhe deixou escolha. Se aceitamos que nada pode se transformar, que nada surge do nada e que nada desaparece, então a natureza simplesmente tem de ser composta por pecinhas minúsculas, que se combinam e depois se separam.
Demócrito não acreditava numa “força” ou numa “inteligência” que pudessem intervir nos processos naturais. As unidas coisas que existem são os átomos e o vácuo, dizia ele. E como ele só acreditava no “material”, nós o chamamos de materialista.
Por detrás do movimento dos átomos, portanto, não havia determinada “intenção”. Mas isto não significa que tudo o que acontece é um “acaso”, pois tudo é regido pelas inalteráveis leis da natureza. Demócrito acreditava que tudo o que acontece tem uma causa natural; uma causa que é inerente à própria coisa. Conta-se que ele teria dito que preferiria descobrir uma lei natural a se tornar rei da Pérsia.
Para Demócrito, a teoria atômica explicava também nossas percepções sensoriais. Quando percebemos alguma coisa, isto se deve ao movimento dos átomos no espaço. Quando vejo a Lua, isto acontece porque os “átomos da Lua” tocam os meus olhos.
Mas o que acontece com a consciência? Está aí uma coisa que não pode ser composta de átomos, quer dizer, de “coisas” materiais, certo? Errado. Demócrito acreditava que a alma era composta por alguns átomos particularmente arredondados e lisos, os “átomos da alma”. Quando uma pessoa morre, os átomos de sua alma espalham-se para todas as direções e podem se agregar a outra alma, no momento mesmo em que esta é formada.
Isto significa que o homem não possui uma alma imortal. E este é um pensamento compartilhado por muitas pessoas em nossos dias. Como Demócrito, elas acreditam que a alma está intimamente relacionada ao cérebro e que não podemos possuir qualquer forma de consciência quando o cérebro deixa de funcionar e degenera.
Com sua teoria atômica, Demócrito coloca um ponto final, pelo menos temporariamente, na filosofia natural grega. Ele concorda com Heráclito em que tudo “flui” na natureza, pois as formas vão e vêm. Por detrás de tudo o que flui, porém, há algo de eterno e de imutável, que não flui. A isto ele dá o nome de átomo.
Enquanto lia, Sofia olhava constantemente pela janela para ver se o misterioso escritor daquelas páginas aparecia para colocar outra carta na caixa de correio. Agora, terminada a leitura, Sofia tinha os olhos fixos em algum ponto da rua, mergulhada em pensamentos.
Ela achou o raciocínio de Demócrito ao mesmo tempo muito simples e incrivelmente engenhoso. Ele tinha encontrado a solução para os problemas do “elemento básico” e das “transformações”. Esta questão era tão complicada que os filósofos tinham levado gerações quebrando a cabeça com ela. No fim, Demócrito resolveu todo o problema, usando para isto apenas a sua razão.
Sofia quase não conseguiu conter um sorriso. Tinha que ser verdade que a natureza era composta de partículas minúsculas que nunca se modificavam. Ao mesmo tempo, Heráclito também tinha razão ao dizer que todas a formas da natureza “fluem”. Isto porque todos os homens e todos os bichos morrem, e até mesmo uma montanha vai se desintegrando aos poucos. O importante, porém, é que até esta montanha é composta de minúsculas partes, indivisíveis, que nunca se desintegram.
Ao mesmo tempo, Demócrito colocou ainda outras questões para a reflexão. Por exemplo, ao dizer que tudo acontece mecanicamente. Ao contrário de Empédocles e Anaxágoras, ele não acreditava na interferência de forças espirituais sobre a vida. Além disso, Demócrito não acreditava que o homem possuía uma alma imortal.
Será que ela, Sofia, podia realmente dizer que Demócrito tinha razão?
Isto ela não sabia. Mas ela estava só no começo de seu curso de filosofia.
CAPÍTULO 6 (EXCERTO)
O DESTINO
O DESTINO
(Páginas 65-66.)
Bom dia mais uma vez, minha cara Sofia! Por precaução, quero dizer expressamente que você nunca deve tentar me seguir. Nós nos encontraremos algum dia, mas sou eu quem vai estabelecer quando e onde isto deve acontecer.
É isto. Você não vai querer ser desobediente, vai?
Bem, vamos retomar o tema de nossos filósofos. Vimos como eles tentaram encontrar explicações naturais para as transformações da natureza e que, antes deles, tais transformações eram explicadas pelos mitos.
Mas também em outras áreas era preciso tirar do caminho antigas superstições. E podemos constatar isto tanto no que diz respeito à saúde e doença quanto no que se refere à política. Nestes dois domínios, os gregos tinham sido absolutamente fatalistas até então.
“Ser fatalista” significa acreditar que tudo o que vai acontecer já está determinado previamente. Esta noção pode ser encontrada no mundo todo, tanto hoje quanto em qualquer outro momento da história. Aqui no Norte da Europa, as sagas de famílias islandesas, por exemplo, nos revelam uma forte crença na Providência.
Entre os gregos, bem como em outros povos, também encontramos a noção de que os homens são capazes de “ver” o seu destino através de diferentes oráculos. Isto significa que o destino de um homem ou de um Estado pode ser previsto de diferentes formas e interpretado a partir de certos “presságios”.
Até hoje, muita gente acha possível ler a sorte nas cartas do baralho, nas mãos das pessoas ou nas estrelas do céu.
Também é muito comum a “leitura da sorte” no café que sobra no fundo da xícara, depois que alguém o bebeu. Talvez este resto de café forme no fundo determinada imagem, um desenho (e é claro que, para enxergá-lo, precisamos contar com a ajuda da nossa imaginação). Se este desenho se parece com um carro, isto talvez signifique que a pessoa que bebeu o café logo vai fazer uma longa viagem de carro.
Vemos que o “adivinho” tenta adivinhar algo que de fato não pode ser adivinhado. Isto é típico da arte de prever o futuro. E justamente porque é tão vago aquilo que essas pessoas “pré-vêem”, em geral é muito difícil rebater o que o adivinho nos diz.
Quando olhamos o céu estrelado, o que vemos é um verdadeiro caos de pontinhos luminosos. Não obstante, ao longo da história muitas pessoas acreditaram que as estrelas podiam nos dizer alguma coisa sobre a nossa vida na Terra. Até hoje existem muitos políticos que pedem conselhos a astrólogos antes de tomar decisões importantes.
O ORÁCULO DE DELFOS
(Páginas 66-67.)
Os gregos acreditavam que o famoso oráculo de Delfos era capaz de lhes dizer coisas sobre seu destino. Em Delfos, o deus do oráculo era Apolo. Ele falava através de sua sacerdotisa, Pítia, que ficava sentada num banquinho colocado sobre uma fenda na terra.
Dessa fenda subiam vapores inebriantes, que colocavam Pítia numa espécie de transe. E isto era necessário para que ela se tornasse o meio pelo qual Apolo falava.
Quem vinha a Delfos fazia suas perguntas, primeiramente, para os sacerdotes locais, que depois iam consultar Pítia. A sacerdotisa do oráculo lhes dava uma resposta, que era tão incompreensível ou tão ambígua que os sacerdotes tinham que “interpretá-la” para os consulentes.
Dessa forma, os gregos podiam se valer da sabedoria de Apolo, que, para eles, era o deus que sabia de tudo, tanto do passado quanto do futuro.
Muitos chefes de Estado não ousavam entrar numa guerra ou tomar decisões importantes sem antes consultar o oráculo de Delfos. Dessa forma, os sacerdotes de Apolo eram quase como diplomatas ou conselheiros, que possuíam um profundo conhecimento do povo e do país.
No templo de Delfos havia uma famosa inscrição: CONHECE-TE A TI MESMO! E ela ficava ali para lembrar aos homens que eles não passavam de meros mortais e que nenhum homem pode fugir de seu destino.
Entre os gregos contavam-se muitas histórias de pessoas que tinham sido apanhadas por seus destinos. Ao longo do tempo, uma série de peças – as tragédias – foi escrita sobre essas “trágicas” personalidades. O exemplo mais conhecido é a história do rei Édipo, que, na tentativa de fugir de seu destino, acaba correndo ao seu encontro.
A CIÊNCIA DA HISTÓRIA E A MEDICINA
(Páginas 67-69.)
Para os antigos gregos, não apenas a vida dos indivíduos era determinada pelo destino. Eles achavam que todo o desenrolar da história do mundo também era determinado pelo destino. Assim, os gregos acreditavam, por exemplo, que o desfecho de uma guerra deveria ser atribuído a uma intervenção divina. Ainda hoje, muitas pessoas acreditam que os acontecimentos históricos são governados por Deus ou por outras forças místicas.
Mas enquanto os filósofos gregos tentavam encontrar explicações naturais para os processos da natureza, formava-se pouco a pouco uma ciência da história, cujo objetivo também era encontrar causas naturais para o curso da história universal. O fato de um Estado perder uma guerra não mais era atribuído ao desejo de vingança dos deuses. Os historiadores gregos mais conhecidos foram Heródoto (484-424 a.C.) e Tucídides (460-400 a.C.).
Os gregos dos primeiros tempos também responsabilizavam os deuses pelas doenças. Assim, as doenças contagiosas freqüentemente eram vistas como um castigo dos deuses. De outro lado, os deuses também podiam curar as pessoas, bastando para isto que lhes fosse feito o sacrifício apropriado.
Esta idéia não é típica apenas dos gregos. Em tempos mais recentes, antes que a moderna ciência da medicina se desenvolvesse, era muito comum ouvir que as enfermidades tinham uma causa sobrenatural. A palavra influenza, que empregamos até hoje, significa originariamente que alguém estava sob a “influência” maligna dos astros.
Ainda hoje, muitas pessoas no mundo todo consideram doenças como a AIDS, por exemplo, um castigo de Deus. Além disso, muitos acreditam que uma pessoa enferma possa ser curada por meios “sobrenaturais”.
Enquanto os filósofos gregos enveredavam por um caminho de reflexão absolutamente novo, surgiu também uma ciência médica grega, cujo objetivo era buscar explicações naturais para a saúde e a doença. Supõe-se que essa ciência médica grega foi fundada por Hipócrates, que nasceu na ilha de Cós por volta do ano de 460 a.C.
De acordo com a tradição médica de Hipócrates, os meios mais eficazes para prevenir as doenças eram a moderação e um modo de vida saudável. Por conseguinte, a saúde seria o estado natural do homem. Quando a doença aparece, isso significa que a natureza “saiu dos trilhos” devido a um desequilíbrio corporal ou anímico. O caminho para a saúde do homem está na moderação, na harmonia e “na mente sã em corpo são”.
Hoje em dia ainda se fala muito na “ética médica”. Isto significa que um médico deve exercer sua profissão segundo certas diretrizes éticas. Por exemplo, um médico não deve receitar a pessoas sadias medicamentos que causem dependência. Além disso, o médico deve manter o sigilo profissional, não transmitindo a outras pessoas as informações que um paciente lhe deu sobre seu estado. Todas essas idéias remontam a Hipócrates. Ele fazia seus alunos prestarem um juramento, conhecido até hoje como o juramento de Hipócrates dos médicos:
Por Apolo, o médico, e por Asclépio, por Higia e Panacea e por todos os deuses e deusas, a quem conclamo como minhas testemunhas, juro cumprir o meu dever e manter este juramento com todas as minhas forças e com todo o meu discernimento: tributarei a meu Mestre de Medicina igual respeito que a meus progenitores, repartindo com ele meus meios de vida e socorrendo-o em caso de necessidade; tratarei seus filhos como se fossem meus irmãos e, se for sua vontade aprender esta ciência, eu lhes ensinarei desinteressadamente e sem exigir recompensa de qualquer espécie. Instruirei com preceitos, lições orais e demais métodos de ensino os meus próprios filhos e os filhos de meu Mestre e, além deles, somente os discípulos que me seguirem sob empenho de suas palavras e sob juramento, como determina a praxe médica. Aviarei minhas receitas de modo que sejam do melhor proveito para os enfermos, livrando-os de todo mal e da injustiça, para o que dedicarei todas as minhas faculdades e conhecimentos. Não administrarei a pessoa alguma, ainda que isto me seja pedido, qualquer tipo de veneno nem darei qualquer conselho nesse sentido. Da mesma forma, não administrarei a mulheres grávidas qualquer meio abortivo. Guardarei sigilo e considerarei segredo tudo o que vir e ouvir sobre a vida das pessoas durante o tratamento ou fora dele.
CAPÍTULO 7 (EXCERTO)
SÓCRATES
A FILOSOFIA EM ATENAS
(Páginas 76-77.)
(…)
Vamos voltar à nossa filosofia. Já vencemos a primeira parte do curso. Refiro-me com isto à filosofia da natureza, que significou uma verdadeira ruptura com a visão mitológica do mundo. Vamos conhecer agora os três maiores filósofos da Antigüidade: Sócrates, Platão e Aristóteles. Esses três filósofos, cada um a seu modo, marcaram profundamente a civilização européia.
Os filósofos da natureza são freqüentemente chamados de pré-socráticos, pois viveram antes de Sócrates. É verdade que Demócrito morreu alguns anos depois de Sócrates, mas todo o seu pensamento está inserido no universo da filosofia natural pré-socrática. Isto porque Sócrates representa um divisor de águas não apenas do ponto de vista temporal. Nosso ponto de referência geográfico também se altera agora. É que Sócrates foi o primeiro filósofo nascido em Atenas e tanto ele quanto seus dois sucessores viveram e atuaram em Atenas. Talvez você se lembre que Anaxágoras também viveu algum tempo em Atenas, mas foi banido da cidade porque considerava o Sol uma esfera incandescente (Sócrates também não viria a ter um destino mais feliz!).
A partir da época de Sócrates, Atenas passou a constituir o centro da cultura grega. Mais importante ainda do que isto é observar que, quando passamos dos filósofos da natureza para Sócrates, verificamos também uma mudança essencial em todo o projeto filosófico.
Antes de conhecermos Sócrates, vamos falar um pouco sobre os chamados sofistas, que em sua época eram a marca registrada de Atenas.
Que se abram as cortinas, Sofia! A história do pensamento é um drama de muitos atos.
O HOMEM NO CENTRO
(Páginas 77-78.)
Por volta de 450 a.C., Atenas transformou-se no centro cultural do mundo grego. A partir dessa época, a filosofia tomou um novo rumo.
Os filósofos naturais eram sobretudo pesquisadores naturais. Eles ocupam, portanto, um lugar muito importante na história da ciência. Depois deles, o centro de interesse em Atenas se deslocou para o homem e para sua posição na sociedade.
Em Atenas desenvolvia-se pouco a pouco uma democracia com assembléias populares e tribunais. Um pressuposto para a democracia era o fato de que as pessoas recebiam educação suficiente para poder participar dos processos democráticos. Em nossos dias, podemos ver o quanto uma jovem democracia precisa de um povo esclarecido. Entre os atenienses era particularmente importante dominar a arte de bem falar, a retórica.
Não demorou para que um grupo de mestres e filósofos itinerantes, vindos das colônias gregas, se concentrasse em Atenas. Eles se autodenominavam sofistas, eram pessoas estudadas, versadas em determinado assunto, e ganhavam a vida em Atenas ensinando os cidadãos.
Os sofistas tinham um importante elemento comum com os filósofos naturais: eles também viam com olhos muito críticos a mitologia tradicional. Ao mesmo tempo, porém, os sofistas simplesmente rejeitavam tudo o que consideravam especulação filosófica desnecessária. Para eles, ainda que houvesse respostas para muitas questões filosóficas, ninguém jamais seria capaz de encontrar respostas realmente seguras e definitivas para os mistérios da natureza e do universo. Este ponto de vista é conhecido na filosofia como ceticismo.
Mas ainda que não possamos encontrar uma resposta para todos os mistérios da natureza, sabemos que somos pessoas e que precisamos aprender a conviver umas com as outras. Os sofistas resolveram, então, dedicar-se à questão do homem e de seu lugar na sociedade.
“O homem é a medida de todas as coisas”, disse o sofista Protágoras (c. 487-420 a.C.). Com isto ele queria dizer que o certo e o errado, o bem e o mal sempre tinham de ser avaliados em relação às necessidades do homem. Quando perguntado se acreditava nos deuses gregos, Protágoras dizia: “Dos deuses nada posso dizer de concreto […] pois nesse particular são muitas as coisas que ocultam o saber: a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana”. Chamamos de agnóstico aquele que não é capaz de afirmar categoricamente se existe ou não um Deus.
Via de regra, os sofistas eram homens que tinham feito longas viagens e, por isso mesmo, tinham conhecido diferentes sistemas de governo. Usos, costumes e leis das cidades-Estados podiam variar enormemente. Sob este pano de fundo, os sofistas iniciaram em Atenas uma discussão sobre o que seria natural e o que seria criado pela sociedade. Com isto, eles criaram na cidade-Estado de Atenas as bases para uma crítica social.
Eles puderam mostrar, por exemplo, que uma expressão como “sentimento natural de pudor” era algo que não se sustentava. Pois se o pudor e a vergonha fossem uma coisa natural, então eles tinham de ser características inatas. Mas será que tais características são inatas, Sofia, ou será que a sociedade as criou? Para pessoas que já viajaram muito, a resposta simplesmente seria a seguinte: o medo de se mostrar despido a outras pessoas não é uma coisa natural ou inata. O fato de se ter ou não vergonha disso está ligado sobretudo aos usos e costumes de uma sociedade.
Você pode imaginar como foram inflamadas as discussões que os sofistas incitaram na sociedade de Atenas quando afirmaram que não havia normas absolutas para o certo e o errado. Ao contrário deles, Sócrates tentou mostrar que algumas normas são realmente absolutas e de validade universal.
QUEM FOI SÓCRATES?
(Páginas 78-79.)
Sócrates (470-399 a.C.) talvez seja a personagem mais enigmática de toda a história da filosofia. Ele não escreveu uma única linha e, não obstante, está entre os que maior influência exerceram sobre o pensamento europeu. Seu fim trágico talvez seja o que o tornou famoso até mesmo entre os que conhecem pouco de filosofia.
Sabemos que Sócrates nasceu em Atenas e que ali passou toda a sua vida, sobretudo nas praças dos mercados e nas ruas, onde conversava com toda a sorte de pessoas. Sócrates dizia que a relva e as árvores do campo não podiam lhe ensinar nada. E ele era capaz de ficar horas parado, totalmente mergulhado em pensamentos.
Enquanto viveu já era visto como uma pessoa enigmática e logo depois de sua morte foi considerado o fundador das mais diversas correntes filosóficas. E justamente porque era tão enigmático e porque o que dizia podia ser interpretado de diferentes formas é que correntes filosóficas tão diferentes puderam reivindicá-lo como o precursor de seus princípios.
Uma coisa é certa: Sócrates era feio de doer. Era baixo e gordo, tinha olhos que pareciam querer saltar das órbitas e o nariz arrebitado. Mas seu interior era “absolutamente maravilhoso”, conforme diziam. E mais: diziam que se poderiam vasculhar o presente e o passado e não se encontraria ninguém comparável a ele.
Apesar disso, Sócrates foi condenado à morte por sua atividade como filósofo.
Conhecemos a vida de Sócrates sobretudo através de Platão, seu discípulo e também um dos maiores filósofos da história.
Platão escreveu muitos Diálogos, ou conversas filosóficas, nos quais Sócrates aparece.
Quando Platão dá a palavra a Sócrates, não podemos afirmar com toda a certeza que foi Sócrates quem realmente disse tais palavras. Por isso não é fácil separar os ensinamentos de Sócrates dos de Platão. O mesmo problema vale também para muitas outras personalidades da história que não nos legaram uma obra escrita. O exemplo mais conhecido é o de Jesus Cristo. Não podemos saber ao certo se o “Jesus histórico” realmente disse o que Mateus ou Lucas dizem que ele disse. Assim, será para sempre um mistério o que o “Sócrates histórico” realmente disse.
Apesar disso, não é muito importante saber quem Sócrates “realmente” foi. É sobretudo a imagem que Platão pintou dele que inspira o pensamento ocidental há quase dois mil e quatrocentos anos.
A ARTE DO DIÁLOGO
(Páginas 80-81.)
O ponto central de toda a atuação de Sócrates como filósofo estava no fato de que ele não queria propriamente ensinar as pessoas. Para tanto, em suas conversas, Sócrates dava a impressão de ele próprio querer aprender com seu interlocutor. Ao “ensinar”, ele não assumia a posição de um professor tradicional. Ao contrário, ele dialogava, discutia.
Mas Sócrates não teria se tornado um filósofo famoso se apenas tivesse prestado atenção ao que os outros diziam. E é claro que também não teria sido condenado à morte por causa disso. Geralmente, no começo de uma conversa, Sócrates só fazia perguntas, como se não soubesse de nada. Durante a conversa, freqüentemente conseguia levar seu interlocutor a ver os pontos fracos de suas próprias reflexões. Uma vez pressionado contra a parede, o interlocutor acabava reconhecendo o que estava certo e o que estava errado.
Dizem que a mãe de Sócrates era parteira, e o próprio Sócrates costumava comparar a atividade que exercia com a de uma parteira. Não é a parteira quem dá à luz o bebê. Ela só fica por perto para ajudar durante o parto. Sócrates achava, portanto, que sua tarefa era ajudar as pessoas a “parir” uma opinião própria, mais acertada, pois o verdadeiro conhecimento tem de vir de dentro e não pode ser obtido “espremendo-se” os outros. Só o conhecimento que vem de dentro é capaz de revelar o verdadeiro discernimento.
Deixe-me explicar melhor: a capacidade de dar à luz é uma característica natural. Da mesma forma, todas as pessoas podem entender as verdades filosóficas, bastando para isto usar a sua razão. Quando uma pessoa “toma juízo”, ela simplesmente traz para fora algo que já está dentro de si.
E justamente porque fingia que não sabia de nada, Sócrates forçava as pessoas a usar a razão. Sócrates era capaz de se fingir ignorante, ou de mostrar-se mais tolo do que realmente era. Chamamos a isto de ironia socrática. Foi assim que ele conseguiu expor as fraquezas do pensamento dos atenienses. E isto podia acontecer bem no meio da praça do mercado, no meio de toda a gente. Um encontro com Sócrates podia significar expor-se ao ridículo, ao riso do grande público.
Não é de espantar, portanto, que ele incomodasse e irritasse muitas pessoas, sobretudo os que detinham poder na sociedade. Sócrates dizia que Atenas era como uma égua preguiçosa e ele um mosquito que lhe picava o flanco para mostrar-lhe que ela ainda estava viva. (O que fazemos com os mosquitos, Sofia? Você pode me dizer?)
UMA VOZ DIVINA
(Páginas 81-82.)
Mas Sócrates não vivia pegando no pé das pessoas apenas porque queria atormentá-las. Havia qualquer coisa dentro dele que não lhe deixava outra saída senão esta. Ele sempre dizia que ouvia uma voz divina dentro de si. Sócrates protestava, por exemplo, contra o fato de as pessoas serem condenadas à morte. Além disso, recusava-se a denunciar seus inimigos políticos. No fim, isto lhe custou a própria vida.
No ano de 399 a.C. ele foi acusado de “corromper a juventude” e de “não reconhecer a existência dos deuses”. Por uma maioria apertada, Sócrates foi considerado culpado por um júri de cinqüenta pessoas.
Ele poderia muito bem ter pedido clemência. E poderia ter salvado sua vida se concordasse em deixar Atenas. Mas se tivesse feito isto, não teria sido Sócrates. O ponto é que ele considerava sua própria consciência – e a verdade – mais importante do que sua vida. Sócrates afirmou o tempo todo que tudo o que fizera fora para o bem do Estado. Não adiantou. Pouco depois, na presença de seus amigos mais íntimos, bebeu um cálice de cicuta.
Por quê, Sofia? Por que Sócrates teve de morrer? Até hoje as pessoas fazem esta pergunta. Mas ele não foi o único na história a ir até as últimas conseqüências e pagar suas idéias com a própria vida. Já citei aqui Jesus Cristo, e entre Jesus e Sócrates podemos estabelecer diversos paralelos. Vou mencionar apenas alguns.
Jesus e Sócrates já eram considerados pessoas enigmáticas no tempo em que viveram. Nenhum dos dois deixou qualquer registro escrito de suas idéias. Assim, não nos resta outra saída senão confiar na imagem deles que nos foi legada por seus discípulos. Uma coisa, porém, é certa: ambos eram mestres da retórica. Além disso, ambos tinham tanta autoconfiança no que diziam que podiam tanto arrebatar quanto irritar seus ouvintes. Para completar, ambos acreditavam falar em nome de uma coisa que era maior do que eles mesmos. Eles desafiavam os que detinham o poder na sociedade, porque criticavam todas as formas de injustiça e de abuso de poder. No fim, esta forma de agir lhes custou a vida.
Também há paralelos entre os processos de acusação de Jesus e de Sócrates. Ambos podiam ter pedido clemência e, com isto, ter salvado suas vidas. Mas eles acreditavam estar traindo sua missão se não fossem até as últimas conseqüências. E o fato de terem enfrentado a morte de cabeça erguida lhes garantiu a fidelidade das pessoas mesmo depois de sua morte.
Ao traçar esses paralelos entre Jesus Cristo e Sócrates, não estou querendo colocar um sinal de igual entre os dois. Quero dizer apenas que ambos tinham uma mensagem a transmitir e que esta mensagem estava indissoluvelmente associada à sua coragem pessoal.
UM CURINGA EM ATENAS
(Páginas 82-84.)
Sócrates, Sofia! Ainda não dissemos tudo o que queríamos sobre ele. O pouco que dissemos foi sobre o seu método. Mas como era o seu projeto filosófico?
Sócrates foi contemporâneo dos sofistas. Como eles, Sócrates também se ocupava das pessoas e da vida das pessoas, e não dos problemas dos filósofos naturais. Alguns séculos mais tarde, um filósofo romano – Cícero – disse que Sócrates havia trazido a filosofia do céu para a terra, transformado cidades e casas em sua morada e levado as pessoas a refletir sobre a vida e os costumes, sobre o bem e o mal.
Mas Sócrates diferia dos sofistas num ponto muito importante. Ele não se considerava um sofista, isto é, uma pessoa instruída, sábia. Ao contrário dos sofistas, ele não cobrava absolutamente nada por seus ensinamentos. Não, Sócrates se autodenominava filósofo, no sentido mais verdadeiro da palavra. Um “filo-sofo” é, na verdade, um “amante da sabedoria”, alguém cujo objetivo é chegar à sabedoria.
Você está bem acomodada, Sofia? É muito importante para o restante do curso que você entenda bem a diferença entre um sofista e um filósofo. Os sofistas cobram por suas exposições mirabolantes, e a história registra que tais “sofistas” têm aparecido e desaparecido com bastante freqüência. Estou pensando agora naqueles professores e nos sabichões que ou estão satisfeitos com o pouco que sabem, ou então vivem se gabando de que sabem um monte de coisas das quais na verdade não fazem a menor idéia. Você certamente já encontrou “sofistas” como esses em sua vida. Um verdadeiro filósofo, Sofia, é alguém completamente diferente; é o extremo oposto.
Um filósofo sabe muito bem que, no fundo, ele sabe muito pouco, justamente por isto ele vive tentando chegar ao verdadeiro conhecimento. Sócrates foi uma dessas raras pessoas. Ele sabia muito bem que nada sabia sobre a vida e o mundo. E agora é que vem o mais importante: o fato de saber tão pouco não o deixava em paz.
Um filósofo, portanto, é uma pessoa que reconhece que há muita coisa além do que ele pode entender e vive atormentado por isto. Desse ponto de vista, ele é mais inteligente do que todos que vivem se vangloriando de seus pretensos conhecimentos. “Mais inteligente é aquele que sabe que não sabe”, lembra-se? O próprio Sócrates dizia que a única coisa que sabia era que não sabia de nada. Grave bem esta afirmação, pois esta confissão é uma coisa rara mesmo entre os filósofos. Além disso, é tão perigoso fazer uma declaração dessas assim publicamente que ela pode lhe custar a vida. Os que questionam são sempre os mais perigosos. Responder não é perigoso. Uma única pergunta pode ser mais explosiva do que mil respostas.
Você já ouviu a história das roupas novas do imperador? Na verdade, o imperador estava completamente nu, mas nenhum de seus súditos ousava lhe dizer isto. De repente, uma criança gritou que o imperador estava pelado. Era uma criança corajosa, Sofia. Da mesma forma, Sócrates ousou mostrar às pessoas que elas sabiam muito pouco. Já nos referimos às semelhanças entre as crianças e os filósofos, lembra-se?
Para ser mais preciso: a humanidade está diante de questões importantes, para as quais não é fácil encontrar uma resposta adequada. E então abrem-se duas possibilidades: podemos simplesmente enganar a nós mesmos e ao resto do mundo como se soubéssemos de tudo o que vale a pena saber, ou então podemos simplesmente fechar os olhos para essas questões importantes e desistir para sempre de ir em frente. Isto divide a humanidade em duas partes. De um modo geral, as pessoas ou acham que estão cem por cento certas, ou então se mostram indiferentes. (Esses dois tipos de pessoas são aquelas que ficam se arrastando lá embaixo da pelagem do coelho!) É como separar as cartas de um baralho, Sofia. Fazemos um montinho com as cartas pretas e outro com as vermelhas. De vez em quando, porém, aparece um curinga: uma carta que não é nem de copas, nem de paus, nem de ouros, nem de espadas. Em Atenas, Sócrates era como um curinga: nem cem por cento seguro, nem indiferente. Ele sabia apenas que nada sabia, e isto o atormentava. Então tornou-se filósofo, isto é, alguém que não desiste, que busca incansavelmente chegar ao conhecimento.
Dizem que um dia um cidadão de Atenas perguntou ao oráculo de Delfos quem seria o homem mais inteligente de Atenas. O oráculo respondeu: Sócrates. Quando Sócrates ficou sabendo disso, admirou-se, para dizer o mínimo. (Acho mesmo é que ele deu boas gargalhadas, Sofia.) Imediatamente foi até a cidade e procurou um homem que ele e outras pessoas consideravam muito inteligente. Mas quando viu que este homem não era capaz de responder claramente às suas perguntas, Sócrates entendeu que o oráculo tinha razão.
Para Sócrates era importante encontrar um alicerce seguro para os nossos conhecimentos. Ele acreditava que este alicerce estava na razão humana. E porque acreditava muito na razão humana, Sócrates foi também um racionalista convicto.
O CONHECIMENTO DO QUE É CERTO
LEVA AO AGIR CORRETO
(Páginas 84-85.)
Como já disse, Sócrates acreditava ouvir uma voz divina dentro de si, e esta “consciência” lhe dizia o que era certo. Para ele, quem sabe o que é bom acaba fazendo o bem. Sócrates acreditava que o conhecimento do que é certo leva ao agir correto. E só quem faz o que é certo – assim dizia Sócrates – pode se transformar num homem de verdade. Quando agimos erroneamente, isto acontece porque não sabemos como fazer melhor. Por isso é tão importante ampliar nossos conhecimentos. Sócrates estava preocupado justamente em encontrar definições claras e válidas universalmente para o que é certo e o que é errado. Contrariamente aos sofistas, ele acreditava que a capacidade de distinguir entre o certo e o errado estava na razão, e não na sociedade.
Talvez não seja muito fácil para você digerir esta última frase, Sofia. Vou tentar novamente: Sócrates achava impossível alguém ser feliz se agisse contra suas próprias convicções. E aquele que sabe como se tornar uma pessoa feliz certamente tentará fazê-lo. Por isso é que faz a coisa certa aquele que sabe o que é certo. Pois ninguém deseja ser infeliz, não é mesmo?
O que você acha, Sofia? Será que você conseguiria ser feliz se tivesse que viver repetindo coisas que lá no fundo do seu coração você não acha certas? Há muitas pessoas que mentem o tempo todo, roubam e caluniam. Muito bem, elas sabem perfeitamente que isto não é certo – ou justo, se você preferir. Você acha que isto as deixa felizes? Sócrates achava que não.
CAPÍTULO 9 (EXCERTO)
PLATÃO
(Páginas 97-106. Os textos entre colchetes são de Pausa para a Filosofia.)
O ETERNAMENTE VERDADEIRO, ETERNAMENTE BELO E ETERNAMENTE BOM
No início deste nosso curso de filosofia, eu lhe disse que o interessante é perguntar pelo projeto de determinado filósofo. Nesse sentido, o que será que Platão queria investigar?
Para resumir em poucas palavras: Platão interessava-se pela relação entre aquilo que, de um lado, é eterno e imutável, e aquilo que, de outro, “flui”. (Exatamente como os pré-socráticos, portanto!)
Dissemos que os sofistas e o próprio Sócrates haviam se afastado das questões da filosofia natural e se interessado mais pelo homem e pela sociedade. E isto está absolutamente certo. Mas também Sócrates e os sofistas ocupavam-se de certa forma com a relação entre aquilo que, de um lado, é eterno e imutável, e aquilo que, de outro, “flui”. E tocavam neste ponto quando se tratava da moral do homem e dos ideais ou virtudes da sociedade. De modo muito geral, os sofistas achavam que a questão sobre o que era certo e errado modificava-se de cidade-Estado para cidade-Estado e de geração para geração. Para eles, portanto, essa questão de certo ou errado era “algo que fluía”. Sócrates não podia aceitar isto. Ele acreditava em regras ou normas eternas, que governavam o agir dos homens. Se usarmos apenas a nossa razão – dizia ele -, poderemos reconhecer todas essas normas imutáveis, pois a razão humana é precisamente algo eterno e imutável.
Você está acompanhando, Sofia? E agora vem Platão. Ele se interessava tanto pelo que é eterno e imutável na natureza quanto pelo que é eterno e imutável na moral e na sociedade. Sim… para Platão tratava-se, em ambos os casos, de uma mesma coisa. Ele tentava entender uma “realidade” que fosse eterna e imutável. E, para ser franco, é para isto que os filósofos existem. Eles não estão preocupados em eleger a mulher mais bonita do ano, ou os tomates mais baratos do fim de feira. (E exatamente por isso nem sempre são vistos com bons olhos!) Os filósofos não se interessam muito por essas coisas efêmeras e cotidianas. Eles tentam mostrar o que é “eternamente verdadeiro”, “eternamente belo” e “eternamente bom”.
Com isto podemos ter uma vaga idéia dos contornos do projeto filosófico de Platão. A partir de agora vamos tratar de um ponto de cada vez. Vamos tentar entender um raciocínio extraordinário, que deixou marcas profundas em toda a filosofia européia surgida depois.
O MUNDO DAS IDÉIAS
Empédocles e Demócrito já tinham nos chamado a atenção para o fato de que, apesar de todos os fenômenos da natureza “fluírem”, havia “algo” que nunca se modificava (as “quatro raízes” ou os “átomos”). Platão também se dedicou a este problema, mas de forma completamente diferente.
Platão achava que tudo o que podemos tocar e sentir na natureza “flui”. Não existe, portanto, um elemento básico que não se desintegre. Absolutamente tudo o que pertence ao “mundo dos sentidos” é feito de um material sujeito à corrosão do tempo. Ao mesmo tempo, tudo é formado a partir de uma forma eterna e imutável.
Entendeu? Tudo bem, não entendeu…
Por que todos os cavalos são iguais, Sofia? Talvez você ache que eles não são iguais. Mas existe algo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nós jamais teremos problemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o “exemplar” isolado do cavalo, este sim “flui”, “passa”. Ele envelhece e fica manco, depois adoece e morre. Mas a verdadeira “forma do cavalo” é eterna e imutável.
Para Platão, este aspecto eterno e imutável não é, portanto, um “elemento básico” físico. Eternos e imutáveis são os modelos espirituais ou abstratos, a partir dos quais todos os fenômenos são formados.
Eu explico melhor: os pré-socráticos tinham oferecido uma explicação muito plausível para as transformações da natureza, sem ter de pressupor que algo efetivamente “se transformava”. Eles achavam que no ciclo da natureza havia partículas mínimas, eternas e constantes, que não se desintegravam. Muito bem, Sofia! Eu disse muito bem! Só que eles não tinham uma explicação aceitável de como estas partículas mínimas, que um dia tinham se juntado para formar um cavalo, se juntavam novamente quatrocentos ou quinhentos anos mais tarde para formar outro cavalo, novinho em folha! Ou um elefante, ou um crocodilo. O que Platão quer dizer é que os átomos de Demócrito nunca podem se juntar para formar um “crocofante” ou um “eledilo”. E foi isto, precisamente, que colocou em marcha suas reflexões filosóficas.
Se você já entendeu o que estou dizendo, pode pular este parágrafo. Caso não tenha entendido, vou tentar ser mais claro: digamos que você pegue uma caixa cheia de peças de Lego e construa um cavalo. Depois você desmancha o que fez e recoloca as peças de volta na caixa. Você não pode esperar obter outro cavalo apenas chacoalhando a caixa de peças. Afinal, como é que as peças de Lego podem produzir um cavalo por si mesmas? Não… você é que tem que montar o cavalo novamente, Sofia. E se você conseguir, isto significa que na sua cabeça você tem uma imagem do que seja um cavalo. O cavalo de Lego foi formado, portanto, a partir de uma imagem padrão que permanece inalterada de cavalo para cavalo.
Você não chegou a uma conclusão semelhante sobre os cinqüenta bolos iguais? [Página 92: “Meu nome é Platão, e eu gostaria de propor quatro tarefas para você. Primeiro, gostaria que você refletisse sobre como um padeiro consegue assar cinqüenta bolos exatamente iguais.”] Vamos imaginar agora que você caia do espaço na Terra e nunca tenha visto uma padaria. Então você passa pela vitrine muito convidativa de uma padaria e vê sobre um tabuleiro cinqüenta broas exatamente iguais, todas em forma de anõezinhos. Suponho que, nessas condições, você vá coçar a cabeça e se perguntar como todas aquelas broas podem ser iguais. E é bem possível que você perceba que um anãozinho está sem um braço, o outro perdeu um pedaço da cabeça e um terceiro tem uma barriga maior que a dos outros. Contudo, depois de pensar bem, você chega à conclusão de que todas as broas em forma de anãozinho têm um denominador comum. Embora nenhum deles seja absolutamente perfeito, você suspeita que eles devem ter uma origem comum. E chega à conclusão de que todos foram assados na mesma fôrma.
E mais ainda, Sofia: isto desperta em você o desejo de ver esta fôrma, pois fica claro que ela deve ser indescritivelmente mais perfeita e, de certa forma, mais bonita do que uma de suas frágeis e imperfeitas cópias.
Se você resolveu esta questão sozinha, então você conseguiu resolver um problema filosófico exatamente da mesma maneira que Platão. Como a maioria dos filósofos, ele também “caiu do espaço na Terra”, por assim dizer. (Ele foi lá para a pontinha dos finos pêlos do coelho.) [Página 26: “PS. Quanto ao coelhinho branco, talvez seja melhor compará-lo com todo o universo. Nós, que vivemos aqui, somos os bichinhos microscópicos que vivem na base dos pêlos do coelho. Mas os filósofos tentam subir da base para a ponta dos finos pêlos, a fim de poder olhar bem dentro dos olhos do grande mágico.”] Platão ficou admirado com a semelhança entre todos os fenômenos da natureza e chegou, portanto, à conclusão de que “por cima” ou “por trás” de tudo o que vemos à nossa volta há um número limitado de formas. A estas formas Platão deu o nome de idéias. Por trás de todos os cavalos, porcos e homens existe a “idéia cavalo”, a “idéia porco” e a “idéia homem”. (E é por causa disto que a citada padaria pode fazer broas em forma de porquinhos ou de cavalos, além de anõezinhos. Pois uma padaria que se preze geralmente tem mais que uma fôrma. Só que uma única fôrma é suficiente para todo um tipo de broa.)
Conclusão: Platão acreditava numa realidade autônoma por trás do “mundo dos sentidos”. A esta realidade ele deu o nome de mundo das idéias. Nele estão as “imagens padrão”, as imagens primordiais, eternas e imutáveis, que encontramos na natureza. Esta notável concepção é chamada por nós de a teoria das idéias de Platão.
O VERDADEIRO CONHECIMENTO
Até aqui acho que você está me acompanhando, minha cara Sofia. Mas talvez você esteja se perguntando se Platão estava realmente falando sério. Será que ele acreditava mesmo que tais fenômenos pudessem existir numa realidade totalmente diferente?
Certamente ele não pensou literalmente desta forma durante toda a sua vida, mas a leitura de alguns de seus diálogos deixa claro que é assim que ele quer ser entendido. Vamos tentar acompanhar sua linha de argumentação.
Como dissemos, um filósofo tenta entender algo que é eterno e imutável. Teria pouco sentido, por exemplo, escrever todo um tratado de filosofia sobre a existência de determinada bolha de sabão. Em primeiro lugar, porque se teria pouca chance de examiná-la cuidadosamente antes que ela desaparecesse. Em segundo, porque dificilmente se conseguiria vender um tratado filosófico sobre algo que ninguém viu e que existiu por apenas alguns segundos.
Platão achava que tudo o que vemos ao nosso redor na natureza, tudo o que podemos tocar pode ser comparado a uma bolha de sabão. Pois nada do que existe no mundo dos sentidos é duradouro. Você concorda que todas as pessoas e todos os animais mais cedo ou mais tarde morrem e desaparecem, não é mesmo? Até um bloco de mármore aos poucos vai se desfazendo e se desintegrando. (A Acrópole de hoje não passa de ruínas, Sofia. Uma coisa escandalosa, se você quer saber a minha opinião. Mas a vida é essa…) Platão é da opinião de que nunca podemos chegar a conhecer verdadeiramente algo que se transforma. Sobre as coisas do mundo dos sentidos, coisas tangíveis, portanto, não podemos ter senão opiniões incertas. E só podemos chegar a ter um conhecimento seguro daquilo que reconhecemos com a razão.
Sim, sim, Sofia, vou explicar melhor: retornando ao exemplo da broa em forma de anãozinho, pode muito bem acontecer de alguma coisa dar errado enquanto o padeiro está fazendo a massa, ou então enquanto a broa está crescendo ou assando, de tal modo que, no fim, não seja possível dizer que formato aquela broa tem. Mas depois de eu ter visto vinte, trinta broas em forma de anãozinho, pois mais imperfeitas que elas sejam, posso ter uma idéia clara do formato que possui a fôrma em que elas foram assadas. E posso chegar a esta conclusão mesmo sem nunca ter visto a fôrma. Aliás, nada garante que seria melhor ver a fôrma com os próprios olhos, isto porque nem sempre podemos confiar em nossos sentidos. A faculdade de visão pode variar de pessoa para pessoa. De outra parte, podemos confiar no que a razão nos diz, pois a razão é a mesma para todas as pessoas.
Se você está numa sala de aula com trinta alunos e o professor pergunta qual a cor mais bonita do arco-íris, certamente ele ouvirá muitas respostas diferentes. Mas se ele perguntar quanto é três vezes oito, a classe inteira deve chegar ao mesmo resultado. É que neste caso é a razão quem julga; e a razão é, de certa forma, o extremo oposto de achar e sentir. Podemos dizer que a razão é eterna e universal, justamente porque ela só se manifesta sobre dados que são eternos e universais.
Platão interessou-se muito por matemática, exatamente porque os dados matemáticos nunca se alteram. Por isso podemos chegar a um conhecimento seguro no que diz respeito à matemática. Mas vamos dar um exemplo: imagine que você encontre na floresta uma pinha redonda. Talvez você diga que “acha” a pinha perfeitamente redonda, mas pode ser que [sua amiga] Jorunn afirme que a pinha está um pouco amassada de um lado. (E aí vocês começam a discutir!) Só que não dá para vocês chegarem a um conhecimento seguro sobre aquilo que vêem com os olhos. Por outro lado, vocês sabem que a soma dos ângulos de um círculo é exatamente 360°. Neste caso, porém, vocês estão falando de um círculo ideal, que não existe na natureza, mas que vocês conseguem visualizar perfeitamente com os “olhos de dentro”. (Vocês estão falando sobre o formato oculto da fôrma, e não sobre uma broa específica, casual, que está sobre a mesa da cozinha.)
Para resumir brevemente: não podemos ter senão opiniões incertas sobre tudo o que sentimos ou percebemos sensorialmente. Mas podemos chegar a um conhecimento seguro sobre aquilo que reconhecemos com nossa razão. A soma dos ângulos de um triângulo é 180°. E será assim por toda a eternidade. Da mesma forma, a “idéia” de que um cavalo terá sempre quatro patas continuará válida, ainda que todos os cavalos do mundo dos sentidos fiquem mancos de uma perna.
UMA ALMA IMORTAL
Vimos que, para Platão, a realidade se dividia em duas partes.
A primeira parte é o mundo dos sentidos, do qual não podemos ter senão um conhecimento aproximado ou imperfeito, já que para tanto fazemos uso de nossos cinco (aproximados e imperfeitos) sentidos. Nesse mundo dos sentidos, tudo “flui” e, conseqüentemente, nada é perene. Nada é no mundo dos sentidos; nele, as coisas simplesmente surgem e desaparecem.
A outra parte é o mundo das idéias, do qual podemos chegar a ter um conhecimento seguro, se para tanto fizermos uso de nossa razão. Este mundo das idéias não pode, portanto, ser conhecido através dos sentidos. Em compensação, as idéias (ou formas) são eternas e imutáveis.
Para Platão, portanto, o homem também é um ser dual. Temos um corpo, que “flui” e que está indissoluvelmente ligado ao mundo dos sentidos, compartilhando do mesmo destino de todas as outras coisas presentes neste mundo (por exemplo, uma bolha de sabão). Todos os nossos sentidos estão ligados a este corpo e, conseqüentemente, não são inteiramente confiáveis. Mas também possuímos uma alma imortal, que é a morada da razão. E justamente porque a alma não é material, ela pode ter acesso ao mundo das idéias.
Já estou quase no fim. Mas há algo mais, Sofia. ALGO MAIS!
Platão também achava que a alma já existia antes de vir habitar nosso corpo. E ela existia no mundo das idéias. (Ela ficava junto com as fôrmas de bolo lá no alto da prateleira.) Entretanto, no momento mesmo em que a alma passa a habitar o corpo humano, ela se esquece das idéias perfeitas. E então tem início um processo extraordinário: quando as pessoas entram em contato com as formas da natureza, aos poucos uma vaga lembrança vai emergindo dentro de sua alma. O homem vê um cavalo, mas um cavalo imperfeito (ou uma broa em forma de cavalinho!). E isto é suficiente para despertar na sua alma a vaga lembrança do cavalo ideal que ela conheceu um dia no mundo das idéias. Ao mesmo tempo em que ocorre, isto desperta no homem um anseio de retornar à verdadeira morada da alma. Platão chamava este anseio, esta saudade, de Eros, que significa amor. A alma experimenta, portanto, um “anseio amoroso” de retornar à sua verdadeira morada. A partir de então, ela passa a perceber o corpo e tudo o que é sensorial como imperfeito e supérfluo. Nas asas do amor, a alma deseja voar “de volta para casa”, para o mundo das idéias. [Veja na Bíblia, em Lc 15.11-32, a parábola do filho pródigo.] Ela quer se libertar do cárcere do corpo.
Devo dizer sem demora que Platão descreve aqui o desenrolar ideal de uma vida, pois é claro que nem todas as pessoas liberam suas almas para que elas possam empreender uma jornada de volta ao mundo das idéias. A maioria das pessoas apega-se aos “reflexos” das idéias no mundo dos sentidos. Elas vêem um cavalo, e outro, e depois outro. Mas não conseguem ver aquilo de que o cavalo é apenas uma imitação grosseira. (Elas entram na cozinha e “atacam” as broas, sem se perguntar de onde elas surgiram.) O que Platão descreve é o caminho percorrido pelo filósofo. Podemos considerar sua filosofia a descrição da atividade de um filósofo.
Quando você vê uma sombra, Sofia, na mesma hora você pensa que alguma coisa deve estar projetando esta sombra. Por exemplo, pode acontecer de você ver a sombra de um animal. Talvez a de um cavalo, mas você não está bem certa. Então você se vira e vê o animal verdadeiro, que, naturalmente, é muito mais bonito e de contornos mais nítidos do que a imprecisa sombra. É POR ISSO QUE PLATÃO CONSIDERA TODOS OS FENÔMENOS DA NATUREZA MEROS REFLEXOS DAS FORMAS ETERNAS, OU IDÉIAS. Só que a maioria das pessoas está satisfeita com sua vida em meio a esses reflexos sombreados. Elas acreditam que as sombras são tudo o que existe, e por isso não as vêem como sombras. Com isto, esquecem-se também da imortalidade de suas almas.
DEIXANDO PARA TRÁS AS TREVAS DA CAVERNA
Platão nos conta uma parábola que ilustra bem esta reflexão. Nós a conhecemos por alegoria da caverna. Vou contá-la com minhas próprias palavras.
Imagine um grupo de pessoas que habitam o interior de uma caverna subterrânea. Elas estão de costas para a entrada da caverna e acorrentadas no pescoço e nos pés, de sorte que tudo o que vêem é a parede da caverna. Atrás delas ergue-se um muro alto e por trás desse muro passam figuras de formas humanas sustentando outras figuras que se elevam para além da borda do muro. Como há uma fogueira queimando atrás dessas figuras, elas projetam sombras bruxuleantes na parede da caverna. Assim, a única coisa que as pessoas da caverna podem ver é este “teatro de sombras”. E como essas pessoas estão ali desde que nasceram, elas acham que as sombras que vêem são a única coisa que existe.
Imagine agora que um desses habitantes da caverna consiga se libertar daquela prisão. Primeiramente ele se pergunta de onde vêm aquelas sombras projetadas na parede da caverna. Depois consegue se libertar dos grilhões que o prendem. O que você acha que acontece quando ele se vira para as figuras que se elevam para além da borda do muro? Primeiro, a luz é tão intensa que ele não consegue enxergar nada. Depois, a precisão dos contornos das figuras, de que ele até então só vira as sombras, ofusca a sua visão. Se ele conseguir escalar o muro e passar pelo fogo para poder sair da caverna, terá mais dificuldade ainda para enxergar devido à abundância de luz. Mas depois de esfregar os olhos, ele verá como tudo é bonito. Pela primeira vez verá cores e contornos precisos; verá animais e flores de verdade, de que as figuras na parede da caverna não passavam de imitações baratas. Suponhamos, então, que ele comece a se perguntar de onde vêm os animais e as flores. Ele vê o Sol brilhando no céu e entende que o Sol dá vida às flores e aos animais da natureza, assim como também era graças ao fogo da caverna que ele podia ver as sombras refletidas na parede.
Agora, o feliz habitante das cavernas pode andar livremente pela natureza, desfrutando da liberdade que acabara de conquistar. Mas as outras pessoas que ainda continuam lá dentro da caverna não lhe saem da cabeça. E por isso ele decide voltar. Assim que chega lá, ele tenta explicar aos outros que as sombras na parede não passam de trêmulas imitações da realidade. Mas ninguém acredita nele. As pessoas apontam para a parede da caverna e dizem que aquilo que vêem é tudo o que existe. Por fim, acabam matando-o.
O que Platão nos mostra com esta alegoria da caverna é o caminho que o filósofo percorre das noções imprecisas para as idéias reais que estão por trás dos fenômenos da natureza. Na certa Platão também estava pensando em Sócrates, que tinha sido morto pelos “habitantes da caverna” por ter colocado em dúvida as noções a que eles estavam habituados e por querer lhes mostrar o caminho do verdadeiro conhecimento. Desta forma, a alegoria da caverna é uma imagem da coragem e da responsabilidade pedagógica do filósofo.
Platão defende o ponto de vista de que a relação entre as trevas da caverna e a natureza fora dela corresponde à relação entre as formas da natureza e o mundo das idéias. Ele não acha a natureza em si sombria e triste, mas acha sim que ela é sombria e triste em relação à clareza das idéias. A foto de uma bela jovem não é sombria e triste. Ao contrário. Só que não deixa de ser uma foto.
CAPÍTULO 11 (EXCERTO)
ARISTÓTELES
FILÓSOFO E CIENTISTA
(Páginas 121-122.)
Querida Sofia! Certamente você ficou impressionada com a teoria das idéias, de Platão. E você não é a primeira. Não sei se você aceitou tudo sem maiores problemas, ou se tem algum comentário crítico a fazer. Mas se você fez críticas à teoria de Platão, saiba que estas mesmas críticas já foram feitas por Aristóteles (384-322 a.C.). Durante vinte anos ele foi aluno da Academia de Platão.
Aristóteles não nasceu em Atenas. Ele era natural da Macedônia e veio para a Academia quando Platão tinha sessenta e um anos. Seu pai era um médico de renome; um cientista da natureza, portanto. Este pano de fundo já diz alguma coisa sobre o projeto filosófico de Aristóteles. Seu maior interesse estava justamente na natureza viva. Ele não foi apenas o último grande filósofo grego; foi também o primeiro grande biólogo da Europa.
Exagerando um pouco, podemos dizer que Platão estava tão mergulhado nas formas eternas, no mundo das “idéias”, que quase não registrou as mudanças da natureza. Aristóteles, ao contrário, interessava-se justamente pelas mudanças, por aquilo que hoje chamamos de processos naturais.
Exagerando mais ainda, podemos dizer que Platão se apartou do mundo dos sentidos e que só percebia muito superficialmente tudo aquilo que vemos ao nosso redor. (É que ele queria escapar da caverna para espiar o eterno mundo das idéias!) Aristóteles fez exatamente o contrário: ele saiu ao encontro da natureza e estudou peixes e rãs, anêmonas e papoulas.
Você bem poderia dizer que enquanto Platão usou apenas sua razão, Aristóteles – ao contrário – usou também seus sentidos.
Mas há nítidas diferenças entre eles, até mesmo na forma de escrever. Enquanto Platão era poeta e criador de mitos, os escritos de Aristóteles são sóbrios e pormenorizados como os verbetes de uma enciclopédia. Em compensação, muito do que ele escreveu estava baseado em estudos naturais realizados com extrema diligência.
Registros da Antigüidade dão conta de não menos que cento e setenta títulos assinados por Aristóteles. Destes, quarenta e sete chegaram até nossos dias. Não se tratava de livros completos. A maior parte dos escritos de Aristóteles compõe-se de apontamentos feitos para suas aulas. Também na época de Aristóteles, a filosofia era essencialmente uma atividade oral.
A importância de Aristóteles para a cultura européia está também no fato de ele ter criado uma linguagem técnica usada ainda hoje pelas mais diversas ciências. Ele foi o grande sistematizador, o homem que fundou e ordenou as várias ciências.
Como Aristóteles escreveu sobre todas as ciências, vou me limitar a tratar aqui sobre algumas das áreas mais importantes.
E como me detive tanto em Platão, quero falar a você primeiramente sobre os argumentos de Aristóteles contra a teoria das idéias de Platão. Na seqüência, veremos como ele formulou sua própria filosofia natural. Afinal, Aristóteles resumiu o que os filósofos naturais haviam dito antes dele. Veremos também como ele tenta colocar em ordem nossos conceitos e funda a lógica como ciência. Por fim, vou falar um pouco sobre a visão que Aristóteles tinha do homem e da sociedade.
Se você aceita este roteiro, então só nos resta arregaçar as mangas e começar.
AS IDÉIAS NÃO SÃO INATAS
(Páginas 122-124.)
Assim como os filósofos que o antecederam, Platão também queria encontrar algo de eterno e de imutável em meio a todas as mudanças. Foi assim que ele chegou às idéias perfeitas, que estão acima do mundo sensorial. Além disso, Platão considerava essas idéias mais reais do que os próprios fenômenos da natureza. Primeiro vinha a idéia “cavalo” e depois todos os cavalos do mundo dos sentidos, trotando como sombras projetadas sobre a parede de uma caverna. A idéia “galinha” vinha, portanto, antes da galinha e do ovo.
Aristóteles achava que Platão tinha virado tudo de cabeça para baixo. Ele concordava com seu mestre em que o exemplar isolado do cavalo “flui”, passa, e que nenhum cavalo vive para sempre. Ele também concordava que, em si, a forma do cavalo era eterna e imutável. Mas a “idéia” cavalo não passava para ele de um conceito criado pelos homens e para os homens, depois de eles terem visto um certo número de cavalos. A “idéia” ou a “forma” cavalo não existia, portanto, antes da experiência vivida. Para Aristóteles, a “forma” cavalo consiste nas características do cavalo, ou seja, naquilo que chamaríamos de espécie.
Vou explicar melhor: Aristóteles entendia por “forma” aquilo que todos os cavalos têm em comum. E aqui a imagem da fôrma de fazer broas perde a sua validade, pois as fôrmas de fazer broas existem independentemente de cada broa em particular. Aristóteles não acreditava que houvesse na natureza um armário, por assim dizer, com fôrmas desse tipo. Para ele, as “formas” estavam dentro das próprias coisas; as “formas” das coisas eram suas características próprias.
Aristóteles também não concordava com Platão no que se refere ao fato de a “idéia” galinha vir antes da galinha propriamente dita. Aquilo que Aristóteles chama de a “forma” galinha está em todas as galinhas e são as características que distinguem as galinhas. Por exemplo, o fato de elas botarem ovos. Assim, a galinha em si e a “forma” galinha são duas coisas tão inseparáveis quanto o corpo e a alma.
Com isto resumimos a essência das críticas de Aristóteles à teoria das idéias de Platão. Mas você deve atentar bem para o fato de estarmos falando de uma dramática mudança de pensamento. Para Platão, o grau máximo de realidade está em pensarmos com a razão. Para Aristóteles, ao contrário, era evidente que o grau máximo de realidade está em percebermos ou sentirmos com os sentidos. Platão considera tudo o que vemos ao nosso redor na natureza meros reflexos de algo que existe no mundo das idéias e, por conseguinte, também na alma humana. Aristóteles achava exatamente o contrário: o que existe na alma humana nada mais é do que reflexos dos objetos da natureza. Para Aristóteles, Platão foi prisioneiro de uma visão mítica do mundo, que confundia as idéias dos homens com a realidade do mundo.
Aristóteles nos chama a atenção para o fato de que não existe nada na consciência que já não tenha sido experimentado antes pelos sentidos. Platão poderia ter dito que não existe nada na natureza que não tivesse existido antes no mundo das idéias. Aristóteles achava que, desta forma, Platão estava duplicando o número de coisas. Ele tinha explicado o exemplar isolado do cavalo fazendo referência à “idéia” cavalo. Mas que tipo de explicação é esta, Sofia? Quero dizer, de onde saiu a “idéia cavalo”? Será que, nessa linha de raciocínio, não poderia existir ainda um terceiro cavalo, de que a “idéia” cavalo não fosse senão uma imitação?
Aristóteles achava que todas as nossas idéias e pensamentos tinham entrado em nossa consciência através do que víamos e ouvíamos. Mas nós também temos uma razão inata. Temos uma capacidade inata de ordenar em diferentes grupos e classes todas as nossas impressões sensoriais. É assim que surgem conceitos como os de “pedra”, “planta”, “animal” e “homem”. É assim que surgem os conceitos de “cavalo”, “lagosta” e “canarinho”.
Aristóteles não negava que o homem tivesse uma razão inata. Muito pelo contrário: para ele, a razão era precisamente a característica mais importante do homem. Só que nossa razão permanece “vazia” enquanto não percebemos nada. Uma pessoa, portanto, não possui “idéias” inatas.
AS FORMAS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DAS COISAS
(Páginas 124-125.)
Após ter marcado bem a sua posição em relação à teoria das idéias de Platão, Aristóteles constatou que a realidade consiste em várias coisas isoladas, que representam uma unidade de forma e substância. A “substância” é o material de que a coisa se compõe, ao passo que a “forma” são as características peculiares da coisa.
Uma galinha bate as asas na sua frente, Sofia. A “forma” da galinha é precisamente o bater de asas, o cacarejar e a postura de ovos. Assim, a “forma” da galinha são as características próprias da espécie. Em outras palavras, a “forma” da galinha é aquilo que ela faz. Quando a galinha morre – e, portanto, pára de cacarejar -, a “forma” da galinha também deixa de existir. A única coisa que resta é a “substância” da galinha (que triste, não, Sofia?). Mas aquilo não é mais uma galinha.
Como já disse, Aristóteles se interessava pelas mudanças da natureza. A substância sempre encerra a possibilidade de vir a adquirir determinada forma. Podemos dizer que a substância se esforça por concretizar uma possibilidade que lhe é inerente. Assim, para Aristóteles, toda mudança observada na natureza é uma transformação, ocorrida na substância, de uma possibilidade para uma realidade.
Sim, sim, Sofia… vou explicar melhor. E vou tentar fazê-lo contando a você uma história engraçada. Era uma vez um escultor que vivia debruçado sobre um grande bloco de granito. Todos os dias ele dava umas batidinhas naquela pedra amorfa. Um dia, um jovem veio visitá-lo. – O que você está procurando? – perguntou o jovem. – Espere e verá – respondeu o escultor. Depois de alguns dias o jovem voltou e o escultor tinha “tirado da pedra” um belo cavalo. Surpreso, o jovem ficou um longo tempo parado diante do cavalo, até que perguntou ao escultor: - Como é que você sabia que ele estava lá dentro?
Sim, como é que ele sabia? De certa forma, o escultor tinha visto a forma do cavalo no bloco de granito, pois precisamente este bloco de granito encerrava a possibilidade de se transformar num cavalo. Aristóteles achava que todas as coisas da natureza encerram a possibilidade de concretizar determinada forma.
Vamos voltar ao ovo e à galinha. Um ovo de galinha encerra a possibilidade de se transformar numa galinha. Isto não significa que todos os ovos de galinha chegam a se transformar em galinhas; afinal, muitos deles acabam na mesa do café da manhã como ovos fritos, mexidos ou como omelete, sem que a forma inerente ao ovo chegue a se concretizar. Do mesmo modo, porém, também é claro que um ovo de galinha jamais irá se transformar num ganso. Esta possibilidade não é inerente ao ovo de galinha. A forma de uma coisa, portanto, diz tanto sobre as suas possibilidades quanto sobre suas limitações.
Quando Aristóteles fala de “forma” e “substância”, ele não está pensando apenas em organismos vivos. Assim como a “forma” de uma galinha é cacarejar, bater as asas e pôr ovos, a “forma” de uma pedra é voltar ao chão quando atirada para o alto. Assim como a galinha não pode deixar de cacarejar, também a pedra não consegue deixar de cair no chão. É claro que você pode apanhar uma pedra e jogá-la bem para o alto, mas como é da natureza da pedra voltar a cair no chão, você não vai conseguir jogá-la na Lua. (Tome cuidado ao fazer este experimento, pois a pedra pode se vingar. Ela pode querer voltar para a Terra o mais rapidamente possível, e pobre daquele que estiver no seu caminho!)
A CAUSA FINAL, OU DA FINALIDADE
(Páginas 126-127.)
Antes de deixarmos de lado o fato de que todas as coisas vivas e mortas têm uma forma que diz alguma coisa sobre as possibilidades dessas coisas, devo acrescentar ainda que Aristóteles tinha uma notável visão das relações de causa e efeito na natureza.
No nosso dia-a-dia, quando falamos das “causas” disso ou daquilo, referimo-nos a como as coisas acontecem. A vidraça se quebra, porque Peter atirou uma pedra. Um sapato passa a existir porque um sapateiro costurou alguns pedaços de couro. Mas Aristóteles acreditava que na natureza havia diferentes tipos de causas. É importante saber, sobretudo, o que ele entendia por aquilo que chamou de causa da finalidade.
No caso da janela quebrada, também seria pertinente perguntar por que Peter atirou a pedra. Estamos perguntando, portanto, que intenção ele tinha, que objetivo ele perseguia. Também não há dúvida de que a intenção ou a finalidade desempenham um papel importante no caso da manufatura do sapato. Mas Aristóteles também partia de uma tal causa da finalidade para explicar alguns processos vivos da natureza. Vamos citar apenas um exemplo.
Por que chove, Sofia? Na certa você aprendeu na escola que chove porque o vapor d’água esfria nas nuvens e condensa na forma de gotas de chuva que, por causa da força da gravidade, caem no chão. Aristóteles também teria acenado com a cabeça em sinal de concordância. Mas ele teria acrescentado que, até agora, você só citou três causas. A “causa substancial” ou causa material, que é o fato de o vapor d’água em questão (as nuvens) estar ali bem na hora em que o ar esfriou; a “causa atuante” ou causa eficiente, que é o fato de o vapor d’água esfriar, e a causa formal, que é o fato de ser inerente à “forma” ou à natureza da água cair no chão. Se você não tivesse dito mais nada, Aristóteles teria acrescentado que chove porque as plantas e os animais precisam da água da chuva para crescer. É isto que ele chama de a causa final, ou da finalidade. Como você pode ver, de repente Aristóteles atribuiu às gotas de chuva uma espécie de tarefa vital, um “propósito”.
Nós provavelmente inverteríamos as coisas e diríamos que as plantas crescem porque há umidade. Você está vendo a diferença, Sofia? Aristóteles acreditava que por trás de tudo na natureza havia um propósito, uma finalidade. Chove para que as plantas cresçam e as laranjas e as uvas possam crescer e servir de alimento aos homens.
Hoje em dia a ciência não pensa mais assim. Dizemos que os alimentos e a água são condições para que homens e animais possam existir. Sem essas condições nós não existiríamos. Mas não é intenção das laranjas ou da água nos alimentar.
No que se refere à sua teoria das causas, podemos nos sentir tentados a afirmar que Aristóteles se enganou. Mas não vamos nos apressar demais. Muitas pessoas acreditam que Deus criou o mundo para que homens e animais possam nele viver. Deste ponto de vista, podemos naturalmente afirmar que a água corre nos rios porque homens e animais precisam de água para viver. Só que neste caso estamos falando do propósito ou da intenção de Deus. Não que as gotas de chuva ou a água dos rios gostem de nós e queiram nos proteger.
LÓGICA
(Páginas 127-129.)
A diferença entre “forma” e “substância” também é muito importante quando Aristóteles descreve como o homem reconhece as coisas do mundo.
Quando reconhecemos as coisas, nós as ordenamos em diferentes grupos ou categorias. Por exemplo, vejo um cavalo hoje, outro amanhã e outro depois de amanhã. Os cavalos não são exatamente iguais, mas há alguma coisa que é comum a todos os cavalos. E esta coisa que é comum a todos os cavalos é a “forma” do cavalo. Tudo o que é distintivo ou individual pertence à “substância” do cavalo.
E assim vamos nós pelo mundo, colocando as coisas em gavetas diferentes. Colocamos vacas no curral, cavalos no estábulo, porcos no chiqueiro e galinhas no galinheiro. O mesmo acontece quando Sofia Amundsen limpa o seu quarto. Ela coloca os livros na estante, os cadernos na mochila e as revistas na gaveta da escrivaninha. As roupas são cuidadosamente dobradas: peças íntimas são colocadas numa gaveta, malhas de lã em outra e meias em outra. Veja que fazemos o mesmo nas nossas cabeças: estabelecemos a diferença entre coisas que são feitas de pedra, coisas de algodão e coisas de borracha. Distinguimos coisas vivas de coisas mortas, e “plantas” de “animais” e de “seres humanos”.
Você está acompanhando, Sofia? Aristóteles queria, portanto, arrumar o quarto da jovem natureza. Ele tentou mostrar que todas as coisas na natureza pertenciam a diferentes grupos e subgrupos. (Hermes é um ser vivo. Ou melhor, um animal. Ou melhor, um animal vertebrado. Ou melhor, um mamífero. Ou melhor, um cachorro. Ou melhor, um labrador. Ou melhor, um labrador macho.)
Vá até o seu quarto, Sofia. Pegue qualquer objeto que estiver no chão. Qualquer um, não importa. Você verá que o objeto que você pegou está inserido numa ordem superior. Quando encontramos uma coisa que não conseguimos classificar, levamos um verdadeiro choque. Por exemplo, se você se depara com uma pequena coisa e não sabe dizer ao certo se esta coisa pertence ao reino animal, vegetal ou mineral, acho que você não ousaria tocá-la.
Reino animal, vegetal ou mineral. Foi isto o que eu disse. Estou pensando naquele jogo de salão em que um pobre coitado é mandado para fora da sala enquanto os outros ficam pensando no que o pobre coitado terá de adivinhar quando voltar. Os outros decidem pensar em Mons, o gato do vizinho que nessa hora está no jardim. Então o pobre coitado entra de novo na sala e começa a adivinhar. Os outros só podem responder com “sim” e “não”. Se o pobre coitado for um bom aristotélico – e neste caso não seria um pobre coitado -, o diálogo entre ele e os demais bem que poderia ser este: É concreto? (Sim!) Pertence ao reino mineral? (Não!) É vivo? (Sim!) Pertence ao reino vegetal? (Não!) É um animal? (Sim!) É um pássaro? (Não!) É um mamífero? (Sim!) Isto é tudo sobre o bicho? (Sim!) É um gato? (Sim!) É Mons? (Siiiimm! Risadas…).
Foi Aristóteles, portanto, quem inventou esta brincadeira. A Platão atribuímos a honra de ter inventado o “esconde-esconde”; e a Demócrito, a honra de ter inventado as pedrinhas de Lego.
Aristóteles foi um organizador, um homem extremamente meticuloso, que queria pôr ordem nos conceitos dos homens. De fato, ele também fundou a ciência da lógica, e estabeleceu uma série de normas rígidas para que conclusões ou provas pudessem ser consideradas logicamente válidas. Vamos ver um exemplo: se constato primeiramente que “todas as criaturas vivas são mortais” (primeira premissa), e depois constato que “Hermes é uma criatura viva” (segunda premissa), então posso tirar a elegante conclusão de que “Hermes é mortal”.
O exemplo nos mostra que a lógica de Aristóteles trata da relação entre conceitos; neste caso, “criatura viva” e “mortal”. Mesmo que tenhamos que concordar com Aristóteles em que a conclusão tirada é cem por cento correta, temos de admitir que ele não nos diz nada de novo. Afinal de contas, nós já sabíamos que Hermes é “mortal”. (Ele é um cachorro, e todos os cachorros são “criaturas vivas” e, portanto, “mortais” por oposição às pedras da montanha.) Sim, Sofia, já sabíamos disso. Mas nem sempre a relação entre grupos ou coisas nos parece tão evidente. De vez em quando pode ser necessário pôr certa ordem em nossos conceitos.
Vou citar apenas um exemplo: será que realmente é verdade que um filhotinho de rato, minúsculo, pode mamar tal como um carneiro ou um porco? Isto parece muito estranho, mas vamos raciocinar um pouco: ratos não botam ovos (onde é que já se viu um ovo de rato?). Isto significa que seus filhotes são criaturas que já nascem vivas, exatamente como os porcos e os carneiros. Chamamos de mamíferos os animais que dão à luz filhotes vivos, e os mamíferos são animais que mamam o leite de suas mães. Chegamos, assim, aonde queríamos. A resposta já estava dentro de nós, só que precisávamos primeiro pensar um pouco. Na pressa tínhamos nos esquecido de que os ratos realmente mamam o leite de suas mães. Talvez isto se deva ao fato de nós nunca termos visto um ratinho mamando. E isto, por sua vez, se explica pelo fato de que os ratos têm um pouco de vergonha dos homens quando estão amamentando seus filhotes.
A ESCADA DA NATUREZA
(Páginas 129-131.)
No seu projeto de “colocar ordem” na vida, Aristóteles chama a atenção primeiramente para o fato de que tudo o que ocorre na natureza pode ser dividido em dois grupos principais. De um lado, temos as coisas inanimadas tais como pedras, gotas de água e torrões de terra. Essas coisas não encerram em si uma potencialidade de transformação. Segundo Aristóteles, elas só podem se transformar sob a ação de agentes externos. De outro lado, temos as criaturas vivas, que possuem dentro de si uma potencialidade de transformação.
Para Aristóteles, a natureza progride paulatinamente das coisas inanimadas para as criaturas vivas. Ao reino das coisas inanimadas segue-se primeiramente o reino das plantas, que, “em relação ao reino das coisas inanimadas, parece quase animado, e em relação ao reino dos animais parece quase inanimado”. Finalmente, Aristóteles divide o reino das criaturas vivas em dois subgrupos, o dos animais e o do homem.
Não podemos deixar de reconhecer que esta divisão, apesar da nítida insegurança em relação às plantas, é clara e simples. Há uma grande diferença entre as coisas vivas e as não vivas. Também entre as plantas e os animais existe uma enorme diferença; por exemplo, entre uma rosa e um cavalo. E também quero dizer que há uma grande diferença entre um cavalo e um homem. Mas onde estão exatamente essas diferenças? Será que você é capaz de me responder?
Infelizmente não tenho tempo de esperar que você escreva a sua resposta e a coloque num envelope cor-de-rosa junto com um torrão de açúcar [P. 75: “No momento seguinte, um enorme cão labrador entrou no esconderijo vindo do lado da floresta. Na boca ele trazia um grande envelope amarelo, que deixou cair aos pés de Sofia. (…) Aquele era o mensageiro! Sofia respirou aliviada. Por isso é que as bordas dos envelopes estavam sempre úmidas. Por isso, também, é que os envelopes tinham aquelas marcas. Marcas de dentes, agora ela sabia. Como ela não tinha pensado nisso antes? Agora sim fazia sentido a orientação que o filósofo lhe dera de colocar no envelope um docinho ou um torrão de açúcar quando quisesse mandar uma carta para ele.”]. Por isso prefiro responder eu mesmo e agora. Quando Aristóteles divide os fenômenos da natureza em diferentes grupos, ele parte das características das coisas; melhor dizendo, daquilo que elas são capazes ou daquilo que elas fazem.
Tudo o que vive (plantas, animais e pessoas) tem a capacidade de se alimentar, crescer e se multiplicar. Os animais e os homens têm, além disso, a capacidade de perceber o mundo que os cerca e de se locomover na natureza. E todas as pessoas têm, somada a tudo isto, a capacidade de pensar – ou melhor, a capacidade de ordenar suas impressões sensoriais em diferentes grupos e classes.
Desta forma, não existem na natureza divisões realmente estanques. Podemos perceber uma transição gradual de vegetais simples para plantas mais complexas, de animais simples para animais mais complexos. Bem no alto desta “escada” está o homem, que, para Aristóteles, vive a plenitude da vida da natureza. O homem cresce e se alimenta como as plantas, tem sentimentos e capacidade de locomoção como os animais, mas possui além de tudo isto uma característica muito especial, que só ele tem: a capacidade de pensar racionalmente.
Por isso, Sofia, o homem possui uma centelha da razão divina. Isso mesmo… eu disse “divina”. Em algumas passagens, Aristóteles explica que deve haver um Deus que colocou em marcha todos os movimentos da natureza. E, assim, Deus passa a assumir o cume absoluto da escada da natureza.
Para Aristóteles, os movimentos das estrelas e dos planetas comandavam os movimentos aqui na Terra. Mas devia haver alguma coisa que fazia os corpos celestes se movimentarem. Esta coisa Aristóteles chamava de o primeiro impulsor, ou Deus. Este primeiro impulsor não se movimenta, mas é a causa primordial de todos os movimentos dos corpos celestes e, por conseqüência, dos movimentos na natureza.
ÉTICA
(Páginas 131-132.)
Vamos voltar ao homem, Sofia. Para Aristóteles, a “forma” do homem se define por ele possuir tanto uma “alma vegetal” quanto uma “alma animal” e uma “alma racional”. E Aristóteles pergunta: como o homem deve viver? Do que o homem precisa para viver uma boa vida?
Posso responder resumidamente: o homem só é feliz se puder desenvolver e utilizar todas as suas capacidades e possibilidades.
Aristóteles acreditava em três formas de felicidade: a primeira forma de felicidade é uma vida de prazeres e satisfações. A segunda forma de felicidade é uma vida como cidadão livre, responsável. E a terceira forma de felicidade é a vida como pesquisador e filósofo.
Aristóteles sublinha o fato de que é preciso integrar essas três formas a fim de que o homem possa levar uma vida realmente feliz. Ele recusa, portanto, toda e qualquer decisão unilateral. Se Aristóteles vivesse hoje, talvez ele dissesse que a vida de uma pessoa que só cultiva o corpo é tão unilateral – e portanto tão lacunosa – quanto a vida de outra que só usa a cabeça. Ambos os extremos são expressões de um modo errado de viver a vida.
Também no que concerne às virtudes, Aristóteles chama a atenção para um “meio-termo de ouro”. Não devemos ser nem covardes, nem audaciosos, mas corajosos. (Coragem de menos significa covardia e coragem demais significa audácia.) Também não devemos ser nem avarentos, nem extravagantes, mas generosos. (Generosidade de menos é avareza e generosidade demais é extravagância.)
O mesmo vale para a alimentação. Comer de menos é perigoso, mas comer demais também o é. A ética de Platão e de Aristóteles lembra a ciência médica grega: só através do equilíbrio e da moderação é que podemos nos tornar pessoas felizes ou “harmônicas”.
POLÍTICA
(Página 132.)
A visão de sociedade de Aristóteles também expressa essa necessidade de moderação, esse abandono do exagero. Ele chama o homem de um “ser político”. Aristóteles acha que sem a sociedade ao nosso redor não somos pessoas no verdadeiro sentido do termo. Nesse contexto, a família e a cidade satisfazem nossas necessidades vitais primárias, como a comida e o calor, o casamento e a criação de filhos. Mas a forma mais elevada do convívio humano, para Aristóteles, só pode ser o Estado.
E aqui surge a pergunta de como o Estado deve ser organizado. (Você ainda se lembra do Estado dos filósofos de Platão?) Aristóteles cita diversas boas formas de Estado. Uma delas é a monarquia, ou seja, aquela em que há um único chefe de Estado. Mas para que esta forma de Estado seja boa, ela não pode degenerar em “tirania”, na qual o único soberano comanda e dirige o Estado em proveito próprio. Outra boa forma de Estado é a aristocracia. Aqui, um grupo maior ou menor de soberanos governa o Estado. Esta forma de Estado deve cuidar para não acabar virando o governo de uns poucos, que dirigem o Estado em prol de seus próprios interesses. Seria mais ou menos o que chamaríamos hoje de “oligarquia”. Uma terceira boa forma de Estado é a democracia. Mas também esta forma de Estado tem o seu lado negativo. Uma democracia pode facilmente desvirtuar e se transformar no chamado domínio da plebe. (Ainda que o tirano Hitler não tivesse se tornado o chefe de Estado da Alemanha, uma multidão de pequenos nazistas teria conseguido instituir um terrível “domínio da plebe”.)
A VISÃO DA MULHER
(Páginas 132-133.)
Para concluir, precisamos dizer alguma coisa sobre a visão que Aristóteles tinha da mulher. Infelizmente, ela não era tão animadora quanto a de Platão. Fundamentalmente, Aristóteles achava que faltava alguma coisa à mulher. Para ele, a mulher era “um homem incompleto”. Na reprodução, a mulher é passiva e receptora, enquanto o homem é ativo e produtivo. Por esta razão é que – segundo Aristóteles – o filho do casal herdava apenas as características do pai. Aristóteles acreditava que todas as características da criança já estavam presentes no sêmen do pai. Para ele, a mulher era apenas o solo que acolhia e fazia germinar a semente que vinha do “semeador”, ou seja, do homem. Para colocarmos a coisa em termos verdadeiramente aristotélicos: o homem dá a “forma”; a mulher, a “substância”.
É surpreendente e mesmo lamentável que um homem como Aristóteles, tão inteligente para tantos assuntos, pudesse se enganar desse jeito no que se refere à relação entre os sexos. Mas isto nos mostra duas coisas: primeiro, que Aristóteles não deve ter tido muita experiência prática na vida com mulheres e crianças; em segundo lugar, que uma série de coisas pode dar errado quando são apenas os homens que reinam supremos na filosofia e na ciência.
A visão distorcida que Aristóteles tinha da mulher surtiu efeitos particularmente danosos, pois foi ela – e não a visão de Platão – que predominou durante toda a Idade Média. Desta forma, a Igreja herdou uma visão da mulher para a qual não há qualquer fundamento na Bíblia. Afinal de contas, Jesus certamente não foi um inimigo das mulheres!
Vou ficando por aqui. Mas você logo vai ter notícias minhas.
CAPÍTULO 12 (EXCERTO)
O HELENISMO
O HELENISMO
(Páginas 144-145.)
É bom rever você, Sofia! Você já viu alguma coisa sobre os filósofos da natureza, Sócrates, Platão e Aristóteles. Com isto você já conhece as bases da filosofia européia. Daqui para a frente vamos nos poupar aqueles envelopinhos brancos com perguntas introdutórias. Suponho que na escola você já tenha lições e provas suficientes.
Vou lhe contar um pouco sobre o longo período que separa Aristóteles, no final do século IV a.C., do começo da Idade Média, por volta de 400 d.C. Note que escrevemos “antes” e “depois de Cristo”, isto porque o cristianismo foi precisamente um dos fatores mais importantes, e também mais misteriosos, deste período.
Aristóteles morreu no ano de 322 a.C., e nesse meio tempo Atenas tinha perdido a sua posição de hegemonia. Isto estava relacionado, entre outras coisas, com as grandes transformações políticas que vieram em decorrência das conquistas de Alexandre Magno (356-323 a.C.).
Alexandre Magno era rei da Macedônia. Aristóteles também era natural da Macedônia e por algum tempo chegou mesmo a ser professor do jovem Alexandre. Foi Alexandre quem conseguiu a derradeira e decisiva vitória sobre os persas. E mais ainda, Sofia: com suas muitas campanhas bélicas, ele uniu o Egito e todo o Oriente, até a Índia, à civilização grega.
Começou então uma era completamente nova na história da humanidade. Surgiu uma comunidade internacional, na qual a cultura e a língua gregas desempenhavam papel preponderante. Este período, que durou cerca de trezentos anos, é freqüentemente chamado de helenismo. Por helenismo entendemos a cultura predominantemente grega vigente nos três grandes reinos helênicos, a Macedônia, a Síria e o Egito.
A partir do ano de 50 a.C., aproximadamente, Roma passou a assumir o predomínio militar. Esta nova grande potência foi conquistando um a um todos os reinos helênicos, e a cultura romana, bem como a língua latina, passaram a predominar da Espanha, no Ocidente, até o extremo da Ásia. Começou então o período romano, por nós também conhecido como o final da Antigüidade. Mas há aqui uma coisa importante que você precisa gravar: antes de os romanos conquistarem o mundo helênico, a própria Roma tinha sido uma província da cultura grega. Não é de estranhar, portanto, que a cultura grega – e a filosofia grega – tenha continuado a desempenhar um papel importante, muito tempo depois de a importância política dos gregos já ter sido esquecida.
RELIGIÃO, FILOSOFIA E CIÊNCIA
(Páginas 145-147.)
O helenismo foi marcado pelo desaparecimento das fronteiras entre os diferentes países e culturas. Anteriormente, gregos, romanos, egípcios, babilônios, sírios e persas tinham adorado seus deuses dentro dos limites de suas próprias religiões. Agora, todas essas diferentes culturas foram misturadas num caldeirão, por assim dizer, de concepções religiosas, filosóficas e científicas.
Talvez não seja exagero dizer que a praça do mercado municipal foi substituída pela arena mundial. Antes desta época, também se ouvia nas praças uma confusão de vozes oferecendo ora diferentes mercadorias, ora diferentes pensamentos e idéias. A novidade agora era que as praças dos mercados estavam cheias de mercadorias e idéias do mundo inteiro. E esta “confusão de vozes” acontecia agora em diferentes línguas.
Já dissemos que a cosmovisão dos gregos tinha ultrapassado em muito as fronteiras da antiga Grécia. Com o tempo, porém, muitas divindades orientais também passaram a ser adoradas em toda a região do Mediterrâneo. Surgiram várias religiões novas, que tomavam emprestadas de diferentes culturas antigas suas concepções religiosas. Falamos aqui de uma mistura de religiões, ou de um sincretismo religioso.
Anteriormente a isto, as pessoas tinham experimentado um sentimento de afinidade muito forte com seu próprio povo e com sua própria cidade-Estado. À medida que tais fronteiras e linhas divisórias foram sendo paulatinamente apagadas, elas passaram a experimentar uma sensação de dúvida e de incerteza em relação à sua filosofia de vida. O final da Antigüidade foi marcado predominantemente por dúvidas religiosas, dissolução cultural e pessimismo. Dizia-se que o mundo “tinha envelhecido”.
As novas religiões surgidas durante o helenismo tinham em comum o fato de pretenderem ensinar a seus fiéis como obter salvação para a morte. Muitos desses ensinamentos eram mantidos em segredo. Mediante a iniciação em determinados círculos secretos e mediante o cumprimento de certos rituais, o homem podia ter esperança na imortalidade da alma e numa vida eterna. Nesse sentido, certa iniciação na verdadeira natureza do universo podia ser tão importante para a salvação da alma quanto os rituais religiosos.
De modo geral, podemos dizer que a filosofia do helenismo não teve nada de muito original. Não apareceu outro Platão, nem outro Aristóteles. Mas os três grandes filósofos de Atenas se transformaram em fonte de inspiração para diferentes correntes filosóficas, que vou tentar resumir a seguir.
Também a ciência do helenismo foi marcada pela mistura de diferentes experiências culturais. Nesse particular, a cidade de Alexandria, no Egito, desempenhava um papel-chave como ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente. Enquanto Atenas, com as escolas filosóficas deixadas por Platão e Aristóteles, continuou sendo a capital da filosofia, Alexandria transformou-se na metrópole da ciência. Com sua grande biblioteca, esta cidade passou a ser o centro da matemática, astronomia, biologia e medicina.
A cultura helênica pode muito bem ser comparada com o mundo de hoje. O século XX também é marcado por uma comunidade internacional cada vez mais aberta. À semelhança do que ocorreu no mundo helênico, também em nossa época este fato tem gerado grandes transformações na religião e nas visões de mundo. Do mesmo modo como podíamos encontrar em Roma, no início do calendário cristão, concepções religiosas gregas, egípcias e orientais, também agora, no final do século XX, podemos encontrar em todas as cidades européias de porte médio concepções religiosas oriundas de todas as partes do mundo.
Outro dado interessante é o fato de, em nossa época, vermos como a mescla de religiões novas e antigas, filosofia e ciência pode criar as bases para novas ofertas no “mercado de visões de mundo”.
Grande parte deste “conhecimento novo” é, na verdade, herança de um pensamento antigo, cujas raízes remontam ao helenismo, entre outros períodos.
Como já dissemos, a filosofia do helenismo continuou a investigar os problemas levantados por Sócrates, Platão e Aristóteles. O ponto comum entre eles era o desejo de responder às perguntas sobre qual seria a melhor maneira de o homem viver e morrer. Assim, a ética também foi colocada na ordem do dia e se transformou no mais importante projeto filosófico da nova comunidade internacional. A questão era saber em que consistia a verdadeira felicidade e como ela podia ser alcançada.
Vamos estudar brevemente quatro dessas correntes filosóficas.
OS CÍNICOS
(Páginas 147-148.)
Conta-se que, um dia, Sócrates parou diante de uma tenda do mercado em que estavam expostas diversas mercadorias. Depois de algum tempo, ele exclamou: “Vejam quantas coisas o ateniense precisa para viver!”. Naturalmente ele queria dizer com isto que ele próprio não precisava de nada daquilo.
Esta postura de Sócrates foi o ponto de partida para a filosofia cínica, fundada em Atenas por Antístenes – um discípulo de Sócrates -, por volta de 400 a.C.
Os cínicos diziam que a verdadeira felicidade não depende de fatores externos como o luxo, o poder político e a boa saúde. Para eles, a verdadeira felicidade consistia em se libertar dessas coisas casuais e efêmeras. E justamente porque a felicidade não estava nessas coisas ela podia ser alcançada por todos. E, uma vez alcançada, não podia mais ser perdida.
O cínico mais importante foi Diógenes, discípulo de Antístenes. Conta-se que ele vivia dentro de um barril e não possuía mais do que uma túnica, um cajado e um embornal de pão. (Desse jeito não era nada fácil roubar dele sua felicidade!) Um dia, quando estava sentado ao sol junto ao seu barril, recebeu a visita de Alexandre Magno. Alexandre aproximou-se do sábio, perguntou-lhe se ele tinha algum desejo e disse-lhe que, caso tivesse, seu desejo seria imediatamente satisfeito. Ao que Diógenes respondeu: “Sim, desejo que te afastes da frente do meu sol”. Com isto Diógenes mostrou que era mais rico e mais feliz que o grande conquistador. Ele tinha tudo o que desejava.
Os cínicos achavam que as pessoas não precisavam se preocupar com a saúde, nem mesmo com o sofrimento e com a morte. E elas também não deveriam se atormentar com o sofrimento dos outros. Hoje em dia, quando empregamos as palavras “cínico” e “cinismo” estamos nos referindo, na maioria das vezes, a apenas este aspecto: o da impudência, da insensibilidade ao sentir e ao sofrer do outro.
OS ESTÓICOS
(Páginas 148-149.)
Os cínicos foram de grande importância para a filosofia estóica, que surgiu em Atenas por volta de 300 a.C. Seu fundador foi Zenão, originário da ilha de Chipre, que se transferiu para Atenas depois de ter sobrevivido a um naufrágio. Ele reunia seus ouvintes debaixo de um pórtico. O substantivo estóico vem da palavra grega para “pórtico” (stoa). O estoicismo teria mais tarde grande importância para a cultura romana.
Assim como Heráclito, os estóicos diziam que todas as pessoas eram parte de uma mesma razão universal, ou “logos”. Eles consideravam cada pessoa um mundo em miniatura, um “microcosmo”, que era reflexo do “macrocosmo”.
Isto levou à idéia de um direito universalmente válido, o assim chamado direito natural. O direito natural baseia-se na razão atemporal do homem e do universo e, por isso mesmo, não se modifica no tempo e no espaço. Nesse sentido, os estóicos colocam-se ao lado de Sócrates contra os sofistas.
O direito natural vale para todas as pessoas, inclusive para os escravos. Para os estóicos, as legislações dos diferentes Estados não passavam de imitações imperfeitas de um direito cujas bases estavam na própria natureza.
Assim como apagavam a diferença entre o indivíduo e o universo, os estóicos também negavam a oposição entre “espírito” e “matéria”. Para eles existia apenas uma natureza. Chamamos tal concepção de monismo (em oposição, por exemplo, ao claro dualismo, à bipartição da realidade, de Platão).
Os estóicos eram marcadamente “cosmopolitas”, o que significa que eram filhos legítimos de sua época. Sendo cosmopolitas eram mais abertos para a cultura contemporânea do que os “filósofos de barril” (os cínicos). Os estóicos chamavam a atenção para a convivência entre as pessoas, interessavam-se por política, e alguns deles chegaram até mesmo a ser estadistas atuantes, como o imperador romano Marco Aurélio (121-180), por exemplo. Graças a esses homens, e sobretudo ao orador, filósofo e político Cícero (106-43 a.C.), a cultura e a filosofia gregas conquistaram terreno em Roma. Foi Cícero quem cunhou o conceito de humanismo enquanto cosmovisão na qual o homem ocupa o ponto central. Alguns anos depois, o estóico Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) escreveu que “para a humanidade, a humanidade é sagrada”. Esta afirmação ficou para a posteridade como uma espécie de slogan do humanismo.
Além disso, os estóicos diziam que todos os processos naturais – por exemplo, a enfermidade e a morte – eram regidos pelas constantes leis da natureza. Por esta razão, o homem deveria aprender a aceitar o seu destino. Nada acontece por acaso, diziam os estóicos. Tudo acontece porque tem de acontecer e de nada adianta alguém lamentar a sorte quando o destino bate à sua porta. Também as coisas felizes da vida devem ser aceitas pelo homem com grande tranqüilidade. Vemos aqui a proximidade dos estóicos com os cínicos, que viam com total indiferença todos esses eventos exteriores. Ainda hoje falamos de uma “tranqüilidade estóica” quando queremos nos referir a uma pessoa que não se deixa inflamar por seus sentimentos.
OS EPICUREUS
(Páginas 149-151.)
Como vimos, Sócrates queria descobrir como o homem podia levar uma boa vida. Na interpretação de Sócrates feita pelos cínicos e estóicos, isto estava na necessidade de o homem se libertar de todo o luxo material. Mas Sócrates também teve um aluno chamado Aristipo. Para ele, o objetivo da vida seria obter dos sentidos o máximo possível de satisfação. Aristipo dizia que o prazer era o bem supremo, e a dor, o mal supremo. Assim, seu objetivo maior era desenvolver uma filosofia de vida capaz de afastar toda e qualquer forma de dor e sofrimento. (O objetivo dos cínicos e dos estóicos era suportar todas as formas de dor, e isto é algo completamente diferente de fazer todo o esforço para tirar do caminho a dor.)
Por volta de 300 a.C. Epicuro (341-270 a.C.) funda em Atenas uma escola filosófica: a escola dos epicureus. Ele desenvolveu ainda mais a ética do prazer de Aristipo e a combinou com a teoria do átomo de Demócrito.
Conta-se que os epicureus reuniam-se num jardim. Por esta razão, também eram chamados de “filósofos do jardim”. Dizem também que sobre o portão de entrada do jardim havia a seguinte inscrição: “Forasteiro, aqui te sentirás bem. Aqui, o bem supremo é o prazer”.
Epicuro ensinava que o resultado prazeroso de uma ação sempre deve ser ponderado em relação a seus eventuais efeitos colaterais. Se você já comeu chocolate demais, então você entende o que digo. Se não, vou lhe propor uma tarefa: pegue todas as suas economias e gaste cem coroas em chocolate. (Estou partindo do pressuposto de que você gosta de chocolate.) O importante nesta tarefa é que você coma todo o chocolate de uma só vez. Mais ou menos meia hora depois de ter comido todo esse delicioso chocolate você vai entender o que Epicuro queria dizer quando falava em “efeitos colaterais”.
Epicuro também achava que o resultado prazeroso de curto prazo devia ser ponderado em relação a um prazer maior, mais duradouro e mais intenso, a ser obtido em longo prazo. (Podemos imaginar, por exemplo, que durante todo um ano você não compre chocolate porque prefira economizar sua mesada para comprar uma bicicleta nova, ou então para fazer uma viagem ao exterior.) Diferentemente dos animais, o homem tem a possibilidade de planejar a sua vida. Ele possui a capacidade de “calcular o seu prazer”. Um delicioso chocolate é, sem dúvida, um valor, mas a bicicleta nova ou a viagem à Inglaterra também o são.
Epicuro fazia questão de enfatizar, porém, que “prazer” não significa necessariamente satisfação dos sentidos (por exemplo, comer chocolate). A amizade ou a sensação vivenciada ao se admirar uma obra de arte também podem ser muito prazerosas. Além disso, outros pressupostos para o prazer da vida são os velhos ideais gregos do autocontrole, da temperança e da serenidade. Isto porque o desejo precisa ser controlado. Assim, a serenidade também nos ajuda a suportar a dor.
Com freqüência, pessoas acometidas por temores de origem religiosa procuravam o jardim de Epicuro. Nesse caso, a teoria do átomo de Demócrito era extremamente útil contra a religião e a superstição. Para viver uma boa vida também era importante se libertar do medo da morte. Nesta questão, Epicuro retomava a teoria de Demócrito sobre os “átomos da alma”. Talvez você ainda lembre que Demócrito não acreditava na vida depois da morte, já que após a morte os “átomos da alma” se dispersavam para todos os lados.
“Por que ter medo da morte?”, perguntava Epicuro. “Enquanto somos, a morte não existe, e quando ela passa a existir, nós deixamos de ser.” (Visto deste ponto de vista, de fato ninguém jamais foi incomodado pelo fato de estar morto.)
O próprio Epicuro resumia sua filosofia libertadora naquilo que ele chamava de quatro remédios:
Não precisamos temer os deuses. Não precisamos nos preocupar com a morte. É fácil alcançar o bem. É fácil suportar o que nos amedronta.
Na Grécia não era novidade comparar a atividade do filósofo com a do médico. Nesse sentido, o homem precisa ter sempre à mão uma “farmacinha filosófica de bolso” que contenha os quatro remédios importantes que mencionei acima.
Contrariamente aos estóicos, os epicureus quase não se interessavam pela política e pela sociedade. “Vive em reclusão!” era o conselho de Epicuro. Talvez possamos comparar o seu jardim com as comunidades de nossos dias. Nesta época em que vivemos, muitas pessoas buscam uma ilha, um “porto seguro” em meio ao turbilhão da sociedade.
Depois de Epicuro, muitos epicureus evoluíram sua reflexão no sentido de uma busca unilateral do prazer. Sua palavra de ordem era: “Viver o momento!”. A palavra “epicurista” é freqüentemente usada em nossos dias de forma pejorativa, para designar alguém que só vive pelo prazer.
O NEOPLATONISMO
(Páginas 151-153.)
Vimos que os cínicos, os estóicos e os epicureus tiveram como ponto de partida os ensinamentos de Sócrates. Além dele, podemos constatar também uma influência dos pré-socráticos Demócrito e Heráclito. Mas a mais importante corrente filosófica do final da Antigüidade foi inspirada em Platão. E por isso ela é chamada de neoplatonismo.
O neoplatônico mais importante foi Plotino (c. 205-270), que estudou filosofia em Alexandria e mais tarde mudou-se para Roma. É interessante notar que ele veio de Alexandria, a cidade que já havia alguns séculos era o grande ponto de encontro entre a filosofia grega e a mística oriental. Plotino trouxe para Roma uma doutrina da salvação que viria a se tornar séria concorrente do cristianismo vigente naquela época. Mas o neoplatonismo também viria a exercer uma forte influência sobre a teologia cristã.
Na certa você ainda se lembra da teoria das idéias de Platão, Sofia. Você ainda deve saber, portanto, que ele estabelecia uma diferença entre o mundo das idéias e o mundo dos sentidos. Assim, Platão distinguia claramente entre a alma do homem e o seu corpo. Deste ponto de vista, o homem era uma criatura dual: para Platão, nosso corpo se constitui de terra e pó, como tudo o mais do mundo dos sentidos, mas nós também possuímos uma alma imortal. Muito antes de Platão essa noção já era bastante difundida na Grécia. Além dela, Plotino conhecia também concepções asiáticas semelhantes.
Plotino via o mundo como algo distendido entre dois pólos. Numa extremidade estava a luz divina, que ele chamava de o Uno. Às vezes ele também a chamava de Deus. Na outra extremidade reinavam trevas absolutas, que não eram banhadas pela luz do Uno. Mas Plotino achava que essas trevas de fato não tinham uma existência concreta. Para ele, elas nada mais eram do que a ausência de luz. Ou seja, as trevas não são. A única coisa que existe para ele é Deus, ou o Uno. Mas assim como uma fonte de luz pouco a pouco se perde na escuridão, também podemos imaginar um lugar aonde os raios divinos não são capazes de chegar.
De acordo com Plotino, portanto, a luz do Uno ilumina a alma, ao passo que a matéria são as trevas, que não possuem uma existência real. Mas as formas da natureza também possuem, segundo ele, um tênue reflexo do Uno.
Imagine uma enorme fogueira crepitando no meio da noite, cara Sofia. Do meio do fogo saltam centelhas em todas as direções. Num amplo círculo ao redor do fogo a noite é iluminada, e a alguns quilômetros de distância ainda é possível ver o leve brilho desta fogueira. À medida que nos afastamos, a fogueira vai se transformando num minúsculo ponto de luz, como uma lanterna fraca na noite. E se nos afastarmos mais ainda, chegaremos a um ponto em que a luz do fogo não mais consegue nos alcançar. Em algum lugar os raios luminosos se perdem na noite e se estiver muito escuro não vamos enxergar nada. Nesse momento, contornos e sombras deixam de existir.
Agora imagine a realidade como sendo esta enorme fogueira. O que arde é Deus – e as trevas lá fora são a matéria fria, da qual são feitos homens e animais. Junto a Deus estão as idéias eternas, que são as formas primordiais de todas as criaturas. Sobretudo a alma humana é uma “centelha de fogo”. Mas por toda a parte na natureza aparece um pouco desta luz divina. Podemos vê-la em todos os seres vivos; sim, até mesmo uma rosa ou uma campânula possuem um brilho divino. No ponto mais distante do Deus vivo estão a terra, a água e as pedras.
Estou dizendo que tudo o que vemos tem um pouco do mistério divino. Podemos ver o brilho desta alguma coisa num girassol ou numa papoula. Percebemos um pouco mais deste insondável mistério numa borboleta que pousou num galho, ou num peixinho dourado que nada no aquário. Mas o ponto mais próximo em que nos encontramos de Deus é dentro de nossa própria alma. Só lá é que podemos nos re-unir com o grande mistério da vida. De fato, em alguns raros momentos podemos sentir que somos, nós mesmos, este mistério divino.
As imagens que Plotino usa lembram a alegoria da caverna de Platão: quanto mais nos aproximamos da entrada da caverna, mais perto estamos daquilo de onde provém tudo o que existe. Mas em oposição à nítida divisão da realidade em duas partes estabelecida por Platão, a doutrina de Plotino nos convida a vivenciar a plenitude. Tudo é um, pois tudo é Deus. Até mesmo as sombras lá embaixo, na caverna de Platão, têm um tênue reflexo dessa “Unidade”.
Em alguns poucos momentos de sua vida Plotino experimentou a sensação de fundir sua alma com Deus. De modo geral, chamamos isto de experiência mística. Plotino não foi o único a viver tal experiência. Pessoas de todas as culturas, em todos os tempos, têm relatado experiências semelhantes. Ainda que as descrições dessas experiências sejam as mais diversas, esses relatos têm muitos e importantes pontos comuns. Vamos ver alguns deles.
MISTICISMO
(Páginas 154-155.)
Uma experiência mística significa sentir-se um só com Deus ou com a “alma do universo”. Em muitas religiões, diz-se que há um abismo entre Deus e sua criação. O místico, porém, não conhece este abismo. O que ele – ou ela – conhece é uma “elevação a Deus”.
Trata-se do seguinte: aquilo que geralmente chamamos de “eu” não é nosso eu verdadeiro. Em poucos e efêmeros momentos podemos experimentar a sensação de nos identificarmos com um eu muito maior. Alguns místicos chamam este eu maior de Deus, outros de “espírito cósmico”, outros de “natureza cósmica”, outros ainda de “universo”. Nessa identificação, nessa fusão, o místico experimenta a sensação de “perder-se a si mesmo”: ele desaparece – ou se perde – em Deus, como uma gota d’água “se perde” quando se mistura à água do mar. Certa vez, um místico indiano expressou assim essa experiência: “Quando eu era, Deus não era. Agora Deus é, e eu não sou mais”. O místico cristão Ângelus Silesius (1624-1677) disse: “A pequena gota se transforma em mar quando chega até ele; e assim a alma se transforma em Deus quando é nele acolhida”.
Talvez você não ache muito confortável a idéia de “perder-se a si mesma”, Sofia. E eu entendo você. Mas o ponto é o seguinte: o que se perde é infinitamente menor do que aquilo que se ganha. Você se perde nesta forma que você tem agora, mas ao mesmo tempo compreende que você é algo infinitamente maior. Você é o universo inteiro. Sim, você é o espírito cósmico, querida Sofia. Você é Deus. Se para isto você tem de perder-se enquanto Sofia Amundsen, então talvez sirva de consolo o reconhecimento de que um dia você terá de perder este “eu cotidiano”, de uma forma ou de outra. Para os místicos, o seu verdadeiro eu, que você só poderá experimentar se conseguir se libertar de si mesma, é o fogo misterioso que queima para toda a eternidade.
Só que tal experiência mística nem sempre ocorre espontaneamente. Com freqüência, o místico tem de percorrer “o caminho da purificação e da iluminação”, a fim de poder se encontrar com Deus. Este caminho consiste na meditação e numa vida extremamente simples. Ao fim da jornada, porém, o místico chega a seu objetivo e pode dizer: “Eu sou Deus! Eu sou Você!”.
Encontramos vertentes místicas em todas as grandes religiões do mundo. E tudo o que os místicos escrevem sobre suas experiências apresenta visíveis semelhanças, a despeito de todas as diferenças culturais. Somente quando o místico tenta uma interpretação religiosa ou filosófica para sua experiência mística é que se evidencia o pano de fundo cultural.
Na mística ocidental – quer dizer, no judaísmo, no cristianismo e no islamismo -, o místico afirma que seu encontro é com um Deus pessoal. Embora Deus esteja presente na natureza e na alma humana, ele também está muito além e muito acima deste mundo. Na mística oriental – isto é, no hinduísmo, no budismo e na religião chinesa -, o que se afirma é que o místico experimenta uma fusão total com um Deus que é o “espírito cósmico”. O místico pode dizer “Eu sou o espírito cósmico”, ou então “Eu sou Deus”. Pois Deus não está apenas presente no mundo; ele não tem outro lugar para estar.
Na Índia, sobretudo, já havia várias e fortes correntes místicas muito antes de Platão. Swami Vivekananda, que contribuiu para trazer ao Ocidente os pensamentos do hinduísmo, disse certa vez: “Assim como certas religiões do mundo chamam de ateus os homens que não acreditam num Deus pessoal além de si mesmos, dizemos que é ateu aquele que não acredita em si mesmo. Não acreditar no esplendor da própria alma: isto é o que chamamos de ateísmo”.
Uma experiência mística também pode ser de importância para a ética. Um antigo presidente indiano, Radhakrishnan, disse certa vez: “Ama o teu próximo como a ti mesmo, pois tu és o teu próximo. É ilusão acreditar que teu próximo é outro, e não tu”.
Pessoas de nossa época, que não pertencem a determinada religião, têm relatado experiências místicas. De repente elas experimentam algo que chamam de “consciência cósmica” ou “sentimento oceânico”: sentem-se como que arrancadas do tempo e experimentam o mundo “da perspectiva da eternidade”.
CAPÍTULO 14 (EXCERTO)
DOIS CÍRCULOS CULTURAIS
(…)
Vimos como os filósofos do helenismo reinterpretaram as idéias dos antigos filósofos gregos. Vimos, também, que alguns quiseram até transformar esses filósofos em verdadeiros fundadores de religiões. Por pouco Plotino não chegou a declarar Platão o redentor da humanidade.
Mas, como sabemos, bem no meio deste período de que estamos tratando nasceu outro redentor. E desta vez fora do círculo cultural greco-romano. Estou me referindo a Jesus de Nazaré. Neste capítulo, veremos como o cristianismo pouco a pouco foi se infiltrando no mundo greco-romano (…).
Jesus era judeu e os judeus pertencem ao círculo cultural semita. Os gregos e os romanos pertencem ao círculo cultural indo-europeu. Podemos constatar, então, que a civilização européia tem duas raízes. Antes de estudarmos mais em detalhe como o cristianismo aos poucos foi se mesclando com a cultura greco-romana, vamos dar uma olhada mais de perto nessas duas raízes.
OS INDO-EUROPEUS
(Páginas 167-169.)
Chamamos de indo-europeus todos os países e culturas nos quais são faladas as línguas indo-européias. A elas pertencem todas as línguas européias, à exceção das línguas fino-úgricas (o lapão, o finlandês, o estoniano e o húngaro), além da língua falada nos Países Bascos. A maioria das línguas indianas e iranianas também pertence à mesma família das línguas indo-européias.
Os indo-europeus primitivos viveram há mais ou menos quatro mil anos, provavelmente nas proximidades do mar Negro e do mar Cáspio. Dali, saíram em grandes levas para o sudeste – rumo ao Irã e à Índia -; para o sudoeste – Grécia, Itália e Espanha -; para o oeste, atravessando a Europa central até a Inglaterra e a França; para noroeste, rumo à Escandinávia; e para o norte, rumo ao Leste Europeu e à Rússia. Por toda a parte, os indo-europeus mesclaram-se às culturas pré-indo-européias, sendo que a religião e a língua dos indo-europeus foi o elemento que acabou predominando nesta fusão.
Tanto os antigos livros sagrados da Índia, os Vedas, quanto os escritos da filosofia grega e mesmo a mitologia de Snorre Sturlas-son foram escritas em línguas de uma mesma família. Mas não são apenas as línguas que se parecem. Às línguas aparentadas pertencem também pensamentos aparentados. Por esta razão é que em geral falamos de um círculo cultural indo-europeu.
A cultura dos indo-europeus era marcada sobretudo pela crença em muitos e diferentes deuses. Chamamos a isto de politeísmo. Em toda esta extensa área de influência indo-européia encontramos nomes de deuses e diferentes termos e expressões religiosos. Vou citar alguns exemplos:
Os antigos indianos adoravam o deus celestial Dyaus. Em grego este deus se chama Zeus; em latim, Júpiter (na verdade iov-pater, ou seja, “Pai Celestial”); e em norueguês antigo, Tyr. Os nomes Dyaus, Zeus, Iov e Tyr são, portanto, variantes da mesma palavra.
Talvez você saiba que os viquingues, no Norte da Europa, adoravam deuses que chamavam de asen. Em toda a área de influência indo-européia também encontramos uma palavra para designar “deuses”. Em sânscrito, os deuses se chamam asura; em iraniano, ahura. Outra palavra para deus em sânscrito é deva; em iraniano, daeva; em latim, deus; e em norueguês antigo, tivurr.
Também podemos constatar uma nítida afinidade entre alguns mitos em todo este círculo indo-europeu. Quando Snorre conta sobre os antigos deuses nórdicos, alguns mitos lembram mitos indianos que já haviam sido contados dois ou três mil anos antes. É claro que os mitos de Snorre são marcados pelo cenário natural nórdico, enquanto os indianos se desenvolvem sob o pano de fundo da natureza da Índia. Mas muitos desses mitos possuem um núcleo que aponta para uma origem comum. Um desses núcleos pode ser constatado de forma evidente nos mitos das poções da imortalidade e na luta dos deuses contra os monstros do caos.
Mas também nas formas de pensar podemos ver claras ligações entre as culturas indo-européias. Um ponto comum típico é o fato de elas conceberem o mundo como um imenso palco, no qual se desenrola o drama da luta incessante entre as forças do bem e do mal. Por esta razão, os indo-europeus sempre tentaram “predizer” o que iria acontecer com o mundo.
Podemos muito bem dizer que não é por acaso que a filosofia grega surgiu exatamente neste espaço cultural indo-europeu. As mitologias grega, indiana e nórdica apresentam princípios claros de um tipo de observação filosófica, ou “especulativa”, do mundo.
Os indo-europeus tentavam “entender” o desenrolar da história do mundo. Prova disto é que podemos encontrar em todo o espaço cultural indo-europeu uma palavra determinada que, em cada cultura, significa “compreensão” e “conhecimento”. Em sânscrito esta palavra é vidya, palavra idêntica à palavra grega ide, que – como você já sabe – foi de grande importância para a filosofia de Platão. Do latim conhecemos a palavra video, que para os romanos significava simplesmente “ver”. (Somente nos nossos dias é que o verbo “ver” foi quase equiparado ao ato de grudar os olhos na tela da televisão.) No inglês temos palavras como wise e wisdom (“sabedoria”); em alemão, Weise (“sábio”) e Wissen (“saber”, “conhecimento”). Em norueguês temos a palavra viten. A palavra norueguesa viten tem, portanto, a mesma raiz da palavra indiana vidya, da grega ide e da latina video.
De um modo muito geral, podemos dizer que a visão era o principal sentido para os indo-europeus. Entre os indianos e gregos, iranianos e germânicos, a literatura era marcada por grandes visões cósmicas. (E aqui aparece de novo a palavra “visão”, que vem do verbo latino video.) Além disso, eram comuns nas culturas indo-européias as representações dos deuses e das passagens descritas nos mitos em quadros e esculturas.
Por fim, os indo-europeus tinham uma visão cíclica da história. Isto significa que, para eles, a história se desenrolava “em círculos”, da mesma forma como temos a alternância das estações do ano. Não há, portanto, um verdadeiro começo para a história, assim como também não haverá um fim. O que encontramos freqüentemente são referências a mundos que surgem e desaparecem, numa alternância infinita entre nascimento e morte.
As duas grandes religiões orientais – o hinduísmo e o budismo – são de origem indo-européia. O mesmo vale para a filosofia grega. Por esta razão, podemos ver muitos e evidentes paralelos entre o hinduísmo e o budismo, de um lado, e a filosofia grega, de outro. Ainda hoje o hinduísmo e o budismo são fortemente marcados pela reflexão filosófica.
Não raro se enfatiza no hinduísmo e no budismo o fato de que o elemento divino está presente em tudo (panteísmo) e de que o homem pode chegar a uma unidade com Deus por meio do conhecimento religioso. (Você ainda se lembra de Plotino, Sofia?) Na maioria das vezes, a condição para isto é a meditação, ou um profundo mergulho dentro de si mesmo. No Oriente, portanto, a passividade e a vida reclusa são vistas como ideais religiosos. Também em solo grego muitas pessoas diziam que o homem tinha que viver uma vida ascética – quer dizer, em reclusão religiosa -, se quisesse obter a redenção de sua alma. Alguns componentes da vida nos conventos da Idade Média têm suas origens em tais concepções do mundo greco-romano.
Em muitas culturas indo-européias a crença na metempsicose, ou transmigração da alma, era muito importante. Por exemplo, no hinduísmo, o objetivo de cada devoto é o de um dia conseguir libertar sua alma desse processo de transmigração. E nós já sabemos que Platão também acreditava na transmigração da alma.
OS SEMITAS
(Páginas 170-172.)
Passemos agora aos semitas, Sofia. Vamos falar de um círculo cultural completamente diferente, com uma língua completamente diferente também. Os primeiros semitas são originários da península da Arábia, mas o círculo cultural semita também se expandiu para extensas e diferentes partes do mundo. Há mais de dois mil anos, os judeus vivem bem longe de sua pátria natal. Foi o cristianismo que levou a história e a religião semitas para mais longe de suas raízes, se bem que a cultura semita também foi transportada para todo o mundo pela expansão do Islã.
As três religiões ocidentais – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – têm um pano de fundo semita. O Alcorão, o livro sagrado do Islã, e o Antigo Testamento foram escritos em línguas semitas aparentadas. Uma das palavras do Antigo Testamento para “deus” tem, por isso, a mesma raiz lingüística de Allah (Alá), dos muçulmanos (a palavra allah significa pura e simplesmente “deus”).
No cristianismo o quadro se complica. É claro que também o cristianismo tem um pano de fundo semita, mas o Novo Testamento foi escrito em grego e quando a doutrina ou teologia cristã foi reformulada, ela foi marcada pelas línguas gregas e latinas e, com isto, também foi influenciada pela filosofia helenística.
Vimos que os indo-europeus acreditavam em muitos deuses. O que nos espanta no caso dos semitas é que desde muito cedo eles já acreditavam num único Deus. Chamamos isto de monoteísmo. No judaísmo, no cristianismo e no islamismo, o princípio fundamental é o de que existe apenas um Deus.
Outro traço comum semita é a sua visão linear da história. Queremos com isto dizer que a história é vista como uma linha: no passado, Deus criou o mundo e com isto começou a história. Um dia, porém, a história vai acabar e isto vai acontecer no dia do Juízo Final, quando Deus julgará os vivos e os mortos.
Um traço importante das três grandes religiões ocidentais é precisamente o papel da história. Acredita-se que Deus intervém na história, ou melhor, que a história existe para que Deus possa fazer valer sua vontade no mundo. Assim como um dia Ele conduziu Abraão à Terra Prometida, do mesmo modo irá conduzir a vida dos homens através da história até o Juízo Final. E então todo o mal será eliminado do mundo.
A forte ênfase na ação de Deus sobre a história teve como decorrência o fato de os semitas virem se ocupando da escritura da história há muitos milhares de anos. E são precisamente as raízes históricas que constituem o núcleo de seus escritos religiosos.
Ainda hoje a cidade de Jerusalém é um importante centro religioso para judeus, cristãos e muçulmanos. E isto também diz alguma coisa sobre o pano de fundo comum dessas três religiões. Em Jerusalém existem importantes sinagogas (judaicas), igrejas (cristãs) e mesquitas (muçulmanas). Por isso é tão trágico que justamente Jerusalém tenha se transformado num pomo de discórdia, em que pessoas se matam umas às outras aos milhares porque não conseguem entrar num acordo sobre quem deve ter o domínio da “cidade eterna”. Tomara que um dia a ONU consiga que Jerusalém se transforme num ponto de encontro das três religiões! (…)
Vimos que, para os indo-europeus, o mais importante dos sentidos era a visão. Igualmente interessante é saber que para o mundo semita a audição desempenhava um papel preponderante. Não é por acaso que a profissão de fé judaica começa com a frase: “Ouve, Israel!”. No Antigo Testamento lemos que as pessoas “ouviam” as palavras do Senhor e os profetas judeus gostavam de começar suas pregações com a fórmula “Assim falou Jeová” (Deus). Sobretudo, porém, os cultos religiosos judaicos, cristãos e muçulmanos são marcados pela leitura em voz alta das escrituras sagradas.
Eu também mencionei que os indo-europeus faziam quadros e esculturas de seus deuses. Para os semitas é igualmente característico o fato de eles respeitarem certa proibição pela representação pictórica. Isto significa que eles não podiam criar imagens ou esculturas de Deus e de tudo o que é sagrado. No Antigo Testamento está escrito que os homens não devem fabricar para si imagens de Deus. Esta norma é válida até hoje para o islamismo e o judaísmo. No Islã ainda impera uma aversão geral pela fotografia e pelas artes plásticas, pois as pessoas não devem querer competir com Deus na “criação” de alguma coisa.
Mas você deve estar pensando agora nas igrejas cristãs apinhadas de imagens de Deus e de Jesus. Você está certa, Sofia, e este é um exemplo de como o cristianismo foi influenciado pelo mundo greco-romano. (Na Igreja ortodoxa – quer dizer, na Grécia e na Rússia -, as imagens entalhadas, ou seja, esculturas e crucifixos com cenas de histórias da Bíblia, são proibidos até hoje.)
Contrariamente às grandes religiões orientais, as três religiões ocidentais enfatizam o abismo que existe entre Deus e sua criação. O objetivo não é redimir a alma do processo de transmigração, e sim a redenção dos pecados e da culpa. Além disso, a vida religiosa é mais marcada pela oração, pelo sermão e pela leitura da Bíblia do que pela meditação e pelo mergulho em si mesmo.
ISRAEL
(Páginas 172-174.)
Não estou querendo competir com o seu professor de religião, Sofia. Mas vamos examinar rapidamente o pano de fundo judeu do cristianismo.
Tudo começou com a criação do mundo por Deus. Como isto aconteceu você pode ler na primeira página da Bíblia. Na seqüência, o homem se rebelou contra Deus. E o castigo de Deus para isto foi a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. A partir desse momento, a morte passou a fazer parte do mundo.
A desobediência do homem a Deus atravessa toda a história contada na Bíblia. Se continuarmos folheando o Gênesis vamos encontrar referências ao dilúvio e à Arca de Noé. Então leremos que Deus fez um pacto com Abraão e seus descendentes. Este pacto – ou acordo – exigia que Abraão e todos os seus descendentes observassem rigorosamente os mandamentos de Deus. Mais tarde este pacto foi renovado, quando Moisés recebeu as Tábuas da Lei (A lei de Moisés!) no monte Sinai. Isto aconteceu por volta de 1200 a.C. Naquela época, os israelitas viviam havia muito tempo como escravos no Egito, mas com a ajuda de Deus todo o povo foi levado de volta a Israel.
Por volta de 1000 a.C. – muito tempo antes, portanto, de haver alguma coisa que se pudesse chamar de filosofia grega – ouvimos falar de três grandes reis em Israel. O primeiro foi Saul, que foi seguido por Davi, que, por sua vez, foi sucedido por Salomão. Agora, todos os israelitas estavam reunidos num mesmo reino e foi sobretudo sob o reinado de Davi que eles viveram um período de apogeu político, militar e cultural.
Quando os reis eram investidos no poder eram ungidos pelo povo. Por isso recebiam o título de Messias, que significa “aquele que foi ungido”. No contexto religioso, os reis eram vistos como mediadores entre Deus e o povo. Por isso é que os reis podiam ser chamados de “filhos de Deus”, e o país que governavam, de “reino de Deus”.
Mas o reino de Israel não tardou a enfraquecer e foi dividido em um reino ao norte (Israel) e outro ao sul (o reino de Judá). Em 722 a.C., o reino do norte foi devastado pelos assírios e perdeu completamente sua importância política e religiosa. Com o sul a coisa não foi muito melhor. O reino de Judá foi conquistado em 586 a.C. pelos babilônicos. O templo de Jerusalém foi destruído e uma grande parte do povo foi levada para a Babilônia. Este cativeiro babilônico só terminou em 539 a.C. Foi então que o povo pôde retornar a Jerusalém e reconstruir o enorme templo. Mas por todos os séculos que se seguiram até o nascimento de Cristo, início do nosso calendário, os judeus continuaram sob dominação estrangeira.
Os judeus se perguntavam por que o reino de Davi havia sido destruído e por que se abatia sobre o povo uma desgraça sobre outra. Afinal, Deus tinha prometido colocar sua mão protetora sobre Israel. Acontece que as pessoas também tinham prometido cumprir os mandamentos de Deus e isto acabou espalhando a crença de que Deus estaria castigando Israel por sua desobediência.
A partir de 750 a.C., aproximadamente, surgiram vários profetas que anunciavam o castigo de Deus a Israel, pois o povo não havia respeitado os mandamentos do Senhor. Eles diziam que um dia Deus viria julgar Israel. Chamamos tais profecias de “profecias do Juízo Final”.
Não tardaram a surgir outros profetas que anunciavam que Deus iria salvar uma parte do povo e enviar um “príncipe da paz” ou um rei da paz da casa de Davi. Este príncipe da paz iria restaurar o antigo reino de Davi e assegurar ao povo um futuro feliz.
“Este povo, que andava nas trevas, viu uma grande luz”, dizia o profeta Isaías. “Aos que habitavam na região da sombra da morte, nasceu-lhes o dia.” Chamamos estas profecias de “profecias da redenção”.
Resumindo: o povo de Israel vivia feliz sob o reinado de Davi. Quando a situação ficou difícil para os israelitas, alguns profetas começaram a anunciar a vinda de um profeta da casa de Davi. Este “Messias” ou “Filho de Deus” viria para “redimir” o povo, restituir a Israel sua grandeza e fundar um “Reino de Deus”.
JESUS
(Páginas 174-176.)
OK, Sofia. Suponho que você esteja conseguindo me acompanhar. As palavras-chaves neste contexto são “Messias”, “Filho de Deus”, “Redenção” e “Reino de Deus”. No início, tudo isto tinha um significado político. Mesmo na época de Jesus, muitos imaginavam o novo Messias como um líder político, militar e religioso do mesmo calibre do rei Davi. Quer dizer, o “redentor” era visto por todos como um libertador nacional, que teria vindo para pôr fim aos sofrimentos dos judeus sob a dominação dos romanos.
Mas outras vozes também se ergueram. Duzentos anos antes do nascimento de Jesus, outros profetas já haviam anunciado que o Messias prometido seria o redentor de todo o mundo. Ele não apenas libertaria os israelitas do jugo de outros povos, mas viria para redimir todos os homens do pecado, da culpa e também da morte. A esperança de uma redenção neste sentido da palavra há havia se espalhado por todo o mundo helenístico.
E então aparece Jesus. Ele não é o único que aparece como o Messias prometido; e, como muitos outros, também ele usa as expressões “Filho de Deus”, “Reino de Deus”, “Messias” e “Redenção”. Assim procedendo, Jesus alinha-se às antigas profecias. Ele vai para Jerusalém e se deixa aclamar pelas massas como o salvador do povo. Desta forma, ele retoma a antiga tradição dos reis, que eram entronizados através de um típico “ritual de acesso ao trono”. Jesus também se permite ser ungido pelo povo. “É chegada a hora”, disse ele. “O Reino de Deus está próximo.”
É muito importante gravar todas essas coisas. Mas o mais importante vem agora: o que diferenciava Jesus dos demais profetas que diziam ser o Messias era o fato de ele admitir publicamente que não era um comandante militar ou político. Sua tarefa era muito maior. Ele pregava a redenção e o perdão de Deus para todos os homens. E é por isso que ele podia caminhar por entre as pessoas e dizer: “Teus pecados estão perdoados”. Dizer abertamente essas coisas era algo jamais visto. Por esta razão não demorou muito tempo para que entre os escribas se levantassem protestos contra Jesus. Por fim, esses escribas também se puseram a trabalhar no processo de acusação e execução de Jesus.
Vou tentar ser mais exato: no tempo de Jesus, muitas pessoas esperavam por um Messias que restaurasse o Reino de Deus sob o rufar de tambores e o som de trombetas (quer dizer, a ferro e fogo). A expressão “Reino de Deus” está presente em todas as pregações de Jesus, só que num sentido muito mais abrangente. Jesus dizia que o Reino de Deus era o amor aos semelhantes, a compaixão pelos fracos e o perdão para todos os que tinham errado.
Vemos aqui uma dramática alteração no sentido de uma antiga expressão de cunho militar. As pessoas esperavam, portanto, por um general que proclamasse um Reino de Deus. E então aparece Jesus trajando uma túnica, usando sandálias, e diz que o Reino de Deus ou “a nova aliança” significa “Amar o teu próximo como a ti mesmo”. E mais ainda, Sofia. Jesus também disse que devemos amar nossos inimigos e quando eles nos esbofeteiam não devemos pagar-lhes na mesma moeda, mas oferecer-lhes a outra face. E que temos de perdoar; não sete vezes, mas sete vezes setenta.
Através dos atos de sua própria vida, Jesus também mostrou que não considerava indigno de si conversar com prostitutas, funcionários corruptos e inimigos políticos do povo. Mas ele vai mais além: ele diz que um perdulário que gastou todo o dinheiro que herdou, ou um funcionário do Estado que se apoderou de dinheiro público será visto por Deus como um homem reto e justo, bastando para isto que se voltem para Ele e Lhe peçam perdão. Tão generoso é Deus na sua misericórdia.
Mas ele vai mais além ainda, Sofia, e é preciso que você grave bem isto: Jesus disse que esses “pecadores” eram mais retos aos olhos de Deus – e, portanto, mereciam mais o seu perdão – do que os irrepreensíveis fariseus, orgulhosos de sua própria excelência.
Jesus enfatizava que nenhuma pessoa pode obter, ela mesma, a graça de Deus. Nós mesmos não podemos nos redimir (como acreditavam muitos gregos!). No Sermão da Montanha, quando Jesus estabelece seus rígidos princípios éticos, ele não o faz apenas porque quer mostrar a vontade de Deus. Ele também quer mostrar que nenhuma pessoa é reta perante os olhos de Deus. Isto é, a graça de Deus não tem limites, mas somos nós que temos de nos voltar a Ele e Lhe suplicar o perdão através de orações.
Outras explicações sobre a pessoa de Jesus e seus ensinamentos eu deixo para o seu professor de religião. Com isto ele terá bastante trabalho. Espero que ele possa mostrar a vocês que Jesus foi um ser humano extraordinário. Ele soube usar de forma genial a língua de seu tempo e deu a conceitos e palavras-chaves antigos um sentido novo, extremamente ampliado. Não é de admirar, portanto, que ele tenha acabado na cruz. Sua mensagem radical sobre a redenção dos homens ameaçava tantos interesses e posições de poder que ele tinha de ser eliminado.
Quando falamos sobre Sócrates, vimos o quanto pode ser perigoso apelar à razão das pessoas. No caso de Jesus, vemos como pode ser perigoso exigir dos outros um amor assim tão incondicional pelo próximo e uma capacidade de perdoar igualmente incondicional. Ainda hoje vemos como nações poderosas ameaçam desmoronar diante de exigências simples tais como paz, amor, comida para os pobres e anistia para os inimigos do Estado.
Você ainda deve estar lembrada de como Platão ficou furioso com o fato de o homem mais justo de Atenas ter tido de pagar sua conduta com a própria vida. Para o cristianismo, Jesus foi o único homem justo que viveu. Não obstante, foi condenado à morte. Para o cristianismo, portanto, ele morreu pelos homens. E “sofreu no lugar dos homens”, como se costuma dizer. Jesus foi o “servo que sofreu” e que tomou para si toda a culpa dos homens, a fim de nos reconciliar com Deus e nos salvar de Seu castigo.
PAULO
(Páginas 176-179.)
Alguns dias depois da crucificação e do enterro de Jesus surgiram boatos de que ele teria ressuscitado dos mortos. Com isto Jesus dava provas de que era mais do que apenas um homem. Ele mostrava que era realmente o “Filho de Deus”.
Podemos dizer que a igreja cristã começa nesta manhã de Páscoa com os boatos sobre a ressurreição de Jesus. O próprio Paulo deixa isto claro: “Pois se Cristo não ressuscitou, então todo nosso sermão é vão; é vã toda a vossa crença”.
A partir de então, todas as pessoas podiam ter esperança na “ressurreição da carne”. Para nos redimir, Jesus tinha sido crucificado. E agora, cara Sofia, é preciso que você atente bem para o fato de que em solo judeu não se falava em “imortalidade da alma”, nem em qualquer forma de “transmigração”. Estes eram conceitos gregos e, portanto, indo-europeus. Mas o cristianismo nos ensina que não há nada no homem – nenhuma “alma”, por exemplo – que seja imortal em si mesmo. A Igreja acredita na ressurreição da carne e na vida eterna, mas o fato de sermos salvos da morte e da condenação é um milagre de Deus. Isto não aconteceria, portanto, graças aos nossos próprios méritos, nem graças a uma característica natural que nos fosse inata.
Os primeiros cristãos começaram então a espalhar a “boa-nova” da redenção pela fé em Jesus Cristo. Através dessa redenção, o Reino de Deus estava próximo. (A palavra “Cristo” é uma tradução para o grego da palavra judaica “Messias” e também significa “aquele que foi ungido”.)
Poucos anos depois da morte de Jesus, o fariseu Paulo se converteu ao cristianismo. Em suas muitas viagens como missionário através de todo o mundo greco-romano, ele transformou o cristianismo numa religião universal. Sabemos disso por meio dos Atos dos Apóstolos. Os sermões de Paulo e seus ensinamentos aos cristãos espalharam-se também por meio das muitas epístolas que ele enviava às primeiras comunidades cristãs.
E então Paulo viajou para Atenas. Dizem que, passeando pelo mercado da capital da filosofia, ele ficou indignado “por encontrar uma cidade tão afeita à idolatria”. Visitou a sinagoga judaica em Atenas e conversou com os filósofos epicureus e estóicos, que o levaram até o Areópago. Ali chegando, disseram: “Podemos conhecer esta nova doutrina que o senhor prega? O senhor nos traz algo de novo aos ouvidos e por isso gostaríamos muito de saber do que se trata”.
Dá para imaginar, Sofia? Um judeu aparece na praça do mercado de Atenas e fala de um redentor que foi crucificado e que mais tarde ressuscitou dos mortos. Já na visita de Paulo a Atenas podemos pressentir o choque entre a filosofia grega e a doutrina da redenção cristã. Ao que tudo indica, porém, Paulo conseguiu dialogar com os atenienses. Do Areópago, em meio aos soberbos templos da Acrópole, ele fez o seguinte discurso: “Homens atenienses, em tudo vos vejo muito supersticiosos. Pois, indo eu passando e vendo os vossos monumentos sagrados, encontrei também um altar, sobre o qual estava escrito: ‘Ao Deus desconhecido’. Aquele, pois, que vós adorais sem o conhecer, esse eu vos anuncio. Deus, que fez o mundo e tudo o que nele há, sendo ele o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos pelos homens, nem é servido pelas mãos dos homens, como se necessitasse de alguma coisa, ele que dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas. E de um só fez todo o gênero humano, para que habitasse sobre toda a face da Terra, fixando aos povos a ordem dos tempos e os limites da sua habitação, para que busquem a Deus e o encontrem, embora ele não esteja longe de cada um de nós, porque nele vivemos, nos movemos e existimos, como até o disseram alguns dos vossos poetas: somos verdadeiramente da sua linhagem. Sendo vós, pois, linhagem de Deus, não devemos pensar que a Divindade é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra lavrada por arte e indústria do homem. Porém Deus, não levando em conta os tempos desta ignorância, anuncia agora aos homens que todos em todo o lugar se arrependam, porque fixou um dia em que há de julgar o mundo conforme a justiça, por meio de um homem que destinou para juiz, do que dá certeza a todos, ressuscitando-o dos mortos”.
Paulo em Atenas, Sofia! Estamos falando do cristianismo, que pouco a pouco começa a se infiltrar no mundo greco-romano como algo diferente, completamente diferente da filosofia dos epicureus, estóicos e neoplatônicos. Apesar de tudo, Paulo encontra nesta cultura um sólido apoio, ao chamar a atenção para o fato de que a busca de Deus está dentro de todos os homens. E para os gregos não havia nada de novo nisso. O que Paulo pregava de novo era o fato de o próprio Deus ter se revelado aos homens e realmente ter se encontrado com eles. Ele não é, portanto, apenas um “Deus filosófico”, ao qual as pessoas pudessem chegar pelo exercício da razão. Além disso, esse Deus não se assemelha a nenhuma imagem de “ouro, prata ou pedra” – na Acrópole e também lá embaixo, na praça do mercado, já havia imagens suficientes. Mas Deus “não habita em templos feitos pelos homens”. Ele é um Deus pessoal, que intervém na história e que morreu na cruz pelos homens.
Nos Atos dos Apóstolos, lemos que, depois de ter feito seu discurso no Areópago, Paulo foi vítima de zombaria por parte de algumas pessoas, quando estas ouviram-no dizer que Cristo havia ressuscitado dos mortos. Mas também ouve aqueles que disseram: “Queremos ouvir mais do senhor”. Outros, por fim, agregaram-se a ele e se tornaram cristãos. Entre estas pessoas estava uma mulher chamada Damaris, um nome que precisamos gravar. Naquela época, eram as mulheres que mais freqüentemente se convertiam ao cristianismo.
Depois Paulo prosseguiu em sua tarefa missionária. Apenas algumas décadas depois da morte de Cristo já havia comunidades cristãs em todas as cidades gregas e romanas mais importantes: Atenas, Roma, Alexandria, Éfeso, Corinto. Entre três e quatro séculos depois, todo o mundo greco-romano estava cristianizado.
O CREDO
(Páginas 179-180.)
Paulo não foi de fundamental importância para o cristianismo apenas por sua função como missionário. Dentro das comunidades cristãs, a sua influência era muito grande. É que as pessoas precisavam muito de uma orientação espiritual.
Uma questão importante dos primeiros anos depois da morte de Jesus era saber se os que não eram judeus precisavam passar pela doutrina judaica antes de se tornarem cristãos. Um grego, por exemplo, teria de observar as leis de Moisés? Para Paulo, isto não era necessário. O cristianismo era mais do que uma seita judaica. Ele se voltava para toda a humanidade através de uma mensagem universal de redenção. A “antiga aliança” entre Deus e Israel fora substituída pela “nova aliança” que Jesus estabelecera entre Deus e todos os homens.
Mas o cristianismo não era a única religião nova daquela época. Vimos que o helenismo era marcado por um sincretismo religioso. Por esta razão, a Igreja precisava definir claramente a doutrina cristã, a fim de estabelecer seus limites em relação às demais religiões e evitar uma cisão dentro da própria igreja cristã. Surgiram assim as primeiras profissões de fé, os primeiros credos. A profissão de fé, ou credo, resume os princípios ou os “dogmas” cristãos mais importantes.
Um desses importantes princípios era o de que Jesus havia sido Deus e homem ao mesmo tempo. Ele não era o “Filho de Deus” apenas por seus atos. Ele era o próprio Deus. Mas ele também era um “homem de verdade”, que compartilhava a vida com os outros homens e que realmente tinha padecido na cruz.
Isto pode parecer um paradoxo. Mas a mensagem da Igreja era precisamente a de que Deus se fez homem. Jesus não era um “semideus” (meio homem e meio deus, portanto). A crença em tais semideuses era bastante difundida nas religiões gregas e helenísticas. A Igreja ensinava que Jesus era “o Deus e o homem plenos”.
PÓS-ESCRITO
(Páginas 180-181.)
O que estou tentando mostrar, cara Sofia, é que tudo está inter-relacionado. A entrada do cristianismo no mundo greco-romano significou o encontro dramático de dois universos culturais. Mas significou também uma grande transformação histórico-cultural.
Estamos quase deixando para trás a Antigüidade. Quase mil anos são passados desde os primeiros filósofos gregos. À nossa frente se descortina agora a Idade Média. E ela também durou cerca de mil anos.
O poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe escreveu:
Quem, de três milênios,
Não é capaz de se dar conta
Vive na ignorância, na sombra,
À mercê dos dias, do tempo.
E eu não quero que você seja uma dessas pessoas. Estou me esforçando ao máximo para familiarizá-la com suas raízes históricas, pois só assim você se tornará uma pessoa de verdade. Só assim você será mais do que um macaco sem roupas. Só assim você não vai ficar flutuando no espaço vazio.
CAPÍTULO 15 (EXCERTO)
A IDADE MÉDIA
INTRODUÇÃO
(Páginas 186-192.)
(…)
E Sofia se pôs a caminho. A igreja de Santa Maria ficava a alguns quilômetros dali, mas, embora Sofia só tivesse dormido umas duas horas, sentia-se disposta e desperta. Sobre as colinas, a leste, começava a aparecer uma faixa de luz avermelhada.
Já eram quase quatro [horas] quando Sofia chegou à porta da igreja de pedra. Tentou empurrar a pesada porta de madeira. E não é que estava aberta?
Lá dentro, o vazio e o silêncio eram tão grandes quanto a própria idade da igreja. Uma luminosidade azulada atravessava os vitrais das janelas, revelando centenas de milhares de partículas de poeira suspensas no ar. O pó parecia reunir-se nas grossas vigas que cortavam a nave da igreja. Sofia sentou-se num banco bem no meio da igreja. Dali ficou olhando o altar, onde havia um antigo crucifixo pintado em cores suaves.
Passaram-se alguns minutos. De repente ela ouviu o som de um órgão. Sofia não ousou se virar. Parecia o som de um coral muito antigo. Na certa um coral medieval.
De novo tudo ficou silencioso. Então Sofia ouviu alguns passos se aproximando por trás. Será que ela deveria se voltar e olhar?
Preferiu continuar com os olhos cravados no Cristo da cruz.
Os passos estavam cada vez mais próximos. De repente, uma figura passou por ela e continuou andando pela igreja. A figura trajava um hábito de monge marrom. Sofia podia jurar que se tratava de um monge da Idade Média.
Sentiu medo, mas não entrou em pânico. Diante do altar, o monge deu meia-volta e subiu no púlpito. Ele se debruçou sobre o parapeito, olhou para Sofia e disse em latim:
— Gloria patri et filio et spirito sancto. Sicut erat in principio et nunct et semper in saecula saeculorum.
— Fale em norueguês, seu bobo! — gritou Sofia.
Suas palavras ecoaram na igreja de pedra.
Ela estava certa de que aquele monge era Alberto Knox. Apesar disso, ficou arrependida de ter se expressado de forma tão desrespeitosa dentro de uma igreja antiga. Mas estava com medo, e quando a gente tem medo às vezes é bom quebrar todos os tabus.
— Psiu!
Alberto ergueu uma mão, como se pedisse aos fiéis que se sentassem. Exatamente como fazem os padres.
— Que horas são, minha filha?
— Cinco para as quatro — respondeu Sofia, agora já sem o medo que sentia antes.
— Então está na hora. Vai começar a Idade Média.
— A Idade Média começo às quatro horas? — perguntou Sofia, confusa.
— Mais ou menos às quatro horas, sim. E depois o relógio bateu cinco e seis e sete horas. Mas o tempo parecia ter parado. Depois oito e nove e dez. E ainda era a Idade Média, compreende? Mais do que hora de se levantar para um novo dia, você poderá pensar. Sim, sim, entendo o que você quer dizer. Mas é um fim de semana, entende? Um único e longo fim de semana. Então o relógio bateu onze e doze e treze: um período que chamamos de Baixa Idade Média, quando se construíram as grandes catedrais da Europa. Só ali pelas catorze horas é que um galo começa a cantar. Um aqui, outro ali. E então… a longa Idade Média começa a caminhar rumo ao seu fim.
— Quer dizer que a Idade Média durou dez horas? — perguntou Sofia.
Alberto descobriu a cabeça, até então envolta pelo hábito de monge, e fitou sua audiência, que naquele momento se resumia a uma jovem de catorze anos.
— Se cada hora valer cem anos, então sua conta está certa. Podemos imaginar que Jesus nasceu à meia-noite, que Paulo saiu em peregrinação missionária pouco antes da meia-noite e meia e morreu quinze minutos depois, em Roma. Até as três da manhã a fé cristã foi mais ou menos proibida. E então, em 313, o Império Romano reconheceu o cristianismo como religião. Foi durante o governo do imperador Constantino. Só muitos anos depois, já no seu leito de morte, é que o devoto imperador se deixou batizar. Em 380, o cristianismo se tornou a religião oficial de todo o Império Romano.
— Mas depois o Império Romano não ruiu?
— Suas estruturas já estavam bastante abaladas, sim. Estamos diante de uma das transformações culturais mais importantes da história. No século IV, Roma foi ameaçada tanto por levas de povos que vinham do Norte quanto por um processo de desintegração interna. Em 330, o imperador Constantino, o Grande, transferiu a capital do Império Romano para Constantinopla, cidade que ele próprio tinha fundado às margens do mar Negro. A partir de então, Constantinopla passou a ser conhecida como “a segunda Roma”. No ano de 395, o Império Romano foi dividido: passou a haver, então, um Império Romano do Ocidente, tendo Roma como seu centro, e um Império Romano do Oriente, cuja capital era a nova cidade de Constantinopla. Em 410, Roma foi pilhada por povos bárbaros, e em 476 todo o Império Romano do Ocidente ruiu. O Império Romano do Oriente continuou a existir até 1453, ano em que os turcos tomaram Constantinopla.
— E desde então a cidade se chama Istambul?
— Isso mesmo. Outra data que precisamos gravar é o ano de 529. Neste ano, a Academia de Platão, em Atenas, foi fechada. E no mesmo ano foi fundada a Ordem dos Beneditinos, a primeira grande ordem religiosa. Assim, o ano de 529 simboliza o momento em que a Igreja cristã “coloca uma tampa” na filosofia grega. Dali em diante, os mosteiros passaram a deter o monopólio da educação, reflexão e meditação. E os ponteiros de nosso relógio caminham agora para as cinco e meia…
Sofia já tinha entendido o que Alberto queria dizer com todas aquelas referências às horas. Meia-noite era, portanto, o ano zero, uma hora o ano 100 d.C., seis horas o ano 600 d.C. e catorze horas o ano 1400 d.C. …
Alberto prosseguiu:
— Por “Idade Média” entende-se, na verdade, um período que se estende entre duas outras épocas. A expressão “Idade Média” surgiu no Renascimento. Para o homem renascentista, a Idade Média tinha sido uma única e longa “noite de mil anos”, que cobrira a Europa entre a Antigüidade e o Renascimento. Ainda hoje empregamos a expressão “medieval” em sentido pejorativo para nos referir a tudo que nos parece demasiado rígido e autoritário. Mas também houve os que considerassem a Idade Média um período de “mil anos de crescimento”. Foi na Idade Média, por exemplo, que se constituiu o sistema escolar. Já nos primórdios da Idade Média surgiram nos conventos as primeiras escolas. No século XII, as escolas das catedrais vieram se juntar às dos mosteiros. Por volta de 1200, aproximadamente, começaram a ser fundadas as primeiras universidades. Ainda hoje, os estudos das diferentes áreas do saber são divididos em diferentes “faculdades”, exatamente como na Idade Média.
— Mil anos é muito tempo…
— Sim, mas o cristianismo precisava de tempo para atingir todas as camadas da população. Durante a Idade Média surgiram também as diferentes nações, com suas cidades e fortalezas, sua música própria e suas narrativas populares. O que seria dos contos de fadas e das canções populares se não tivesse existido a Idade Média? Sim, o que seria a Europa sem a Idade Média, Sofia? Uma província romana, quem sabe? O fundo de ressonância de nomes como Noruega, Inglaterra e Alemanha está exatamente nas profundezas insondáveis do que chamamos de Idade Média. São profundezas habitadas por peixes enormes e luminosos, ainda que não possamos vê-los. Snorre foi um homem da Idade Média. E também Olavo, o Santo. E Carlos Magno. Isto para não mencionar Romeu e Julieta, os nibelungos, Branca de Neve ou os trolls das florestas norueguesas. E também para não falar de toda uma legião de príncipes imponentes, reis majestosos, cavaleiros valentes e lindas donzelas, vitralistas anônimos e geniais construtores de órgãos. E ainda nem mencionei os frades, os cruzados e as “bruxas”.
— Também não falou dos padres.
— Certo. O cristianismo só veio para a Noruega após a virada do milênio. Contudo, seria exagero afirmar que a Noruega se tornou um país cristão após a batalha de Stiklestad. Antigas crenças pagãs continuaram a viver sob a superfície do cristianismo, e muitos desses elementos pré-cristãos mesclaram-se às práticas cristãs. Nas festas natalinas norueguesas, por exemplo, práticas cristãs convivem em harmonia com hábitos dos antigos povos nórdicos. E aqui vale a regra segundo a qual, depois de muito tempo de convivência, as duas partes de um casal acabam se parecendo. Apesar disso, é preciso enfatizar que o cristianismo acabou se impondo como a visão de mundo predominante. Por isso falamos também de uma “unidade da cultura cristã”.
— Quer dizer que aquela época não foi só de trevas e de tristeza?
— Os primeiros cem anos depois de 400 d.C. foram realmente anos de declínio cultural. A era romana fora uma época de “cultura elevada”, com grandes cidades que dispunham de sistemas de esgotos, banhos e bibliotecas públicas. Isto para não falar da imponente arquitetura. Toda esta cultura entrou em declínio durante os primeiros cem anos da Idade Média. O mesmo vale para o comércio e o sistema financeiro. Na Idade Média foram reintroduzidos o comércio de trocas e a economia de bens in natura. A economia passou a ser marcada pelo chamado feudalismo. Feudalismo significa que grandes latifundiários possuíam as terras nas quais os camponeses tinham que trabalhar a fim de ganhar o seu sustento. Durante os primeiros séculos, o índice demográfico recuou sensivelmente. Na Antigüidade, Roma havia sido uma cidade de um milhão de habitantes. Já no século VII, a população da antiga capital mundial encolhera para quarenta mil habitantes, isto é, para apenas uma fração do que tinha sido. Uma população reduzida se movimentava agora por entre o que tinha restado das majestosas edificações do período áureo. E quando as pessoas precisavam de material de construção, nenhum problema: havia um número suficiente de velhas ruínas de onde elas podiam tirar o que precisavam. É claro que isto deixa irritados os arqueólogos de hoje, pois eles teriam preferido que as pessoas da Idade Média tivessem deixado em paz os antigos monumentos arquitetônicos.
— Depois que a gente faz as coisas é que percebe o que não deveria ter feito.
— Em fins do século IV, o período de Roma enquanto potência política já tinha passado. Não demorou, porém, para que o bispo de Roma se tornasse o chefe de toda a Igreja católica romana. Ele recebeu o nome de papa – ou “pai” – e passou a ser considerado o representante de Jesus na Terra. Por esta razão, durante quase toda a Idade Média Roma foi a capital da Igreja. E não havia muitos que ousavam “erguer a voz contra Roma”. Pouco a pouco, porém, os reis e príncipes dos novos Estados nacionais se tornaram tão poderosos que alguns deles reuniram coragem para se opor ao forte poder da Igreja. Um deles foi o nosso rei Sverre…
Sofia não tirava os olhos do sábio monge.
— Você disse que a Igreja havia fechado a Academia de Platão, em Atenas. Depois disso todos os filósofos gregos foram esquecidos?
— Só em parte. Algumas pessoas conheciam alguns escritos de Aristóteles, outras alguns de Platão. Mas o antigo Império Romano foi se dividindo pouco a pouco em três espaços culturais diferentes. Na Europa ocidental formou-se uma cultura cristã de língua latina, cuja capital era Roma. Na Europa oriental surgiu um núcleo cultural cristão de língua grega, cuja capital era Bizâncio. Mais tarde Constantinopla passou a se chamar Bizâncio. Por isso falamos de uma “Idade Média bizantina” em oposição a uma “Idade Média católico-romana”. Mas também o Norte da África e o Oriente Médio tinham pertencido ao Império Romano. Nestas regiões desenvolveu-se na Idade Média uma cultura muçulmana de língua árabe. Depois da morte de Maomé, em 632, o Oriente Médio e o Norte da África foram conquistados pelo Islã. Pouco tempo depois, a Espanha também foi incorporada ao círculo cultural muçulmano. Os locais sagrados do Islã, por exemplo, eram Meca, Medina, Jerusalém e Bagdá. Do ponto de vista histórico-cultural, é importante observar que os árabes também tomaram Alexandria, a antiga cidade helenística. Desta forma eles herdaram grande parte da ciência grega. Durante toda a Idade Média, os árabes foram os líderes em ciências tais como matemática, química, astronomia e medicina. Até hoje empregamos os “algarismos arábicos”, por exemplo. Em alguns campos, a cultura árabe era mesmo superior à cristã.
— Eu gostaria de saber o que aconteceu com a filosofia grega.
— Você consegue imaginar um rio que, ao chegar em determinado ponto, se divide em três outros, que depois se reencontram num grande volume de água?
— Consigo.
— Então você também consegue imaginar que a cultura greco-romana foi em parte transmitida pela cultura católico-romana no Ocidente, em parte pela cultura romano-oriental e em parte pela cultura árabe no sul. Se quisermos simplificar bastante as coisas, podemos dizer que o neoplatonismo sobreviveu no Ocidente, Platão no Oriente e Aristóteles no Sul, entre os árabes. O mais importante é que esses três “rios” voltam a se encontrar numa única corrente no Norte da Itália, no final da Idade Média. Os árabes na Espanha contribuíram com influências árabes; a Grécia e Bizâncio, com influências gregas. E começou, então, o Renascimento, isto é, o ressurgimento da antiga cultura. De certa forma, a cultura da Antigüidade conseguiu sobreviver a toda a Idade Média.
— Entendo…
— Mas não vamos antecipar os acontecimentos. Primeiro vamos falar um pouco sobre a filosofia da Idade Média. E não vou mais ficar conversando com você aqui do púlpito. Vou descer até aí.
AGOSTINHO
(Páginas 192-197.)
Sofia começou a sentir os olhos pesados. Afinal, ela não tinha dormido mais do que duas horas. Pareceu-lhe estar sonhando quando viu a figura daquele monge singular descendo do púlpito da igreja de Santa Maria.
Alberto dirigiu-se até o banco do altar. Primeiro olhou para o altar onde havia aquele crucifixo antigo. Depois virou-se para a direção de Sofia, foi a passos lentos até ela e sentou-se ao seu lado no banco.
Era estranho tê-lo assim tão perto. Sob o capuz do hábito, Sofia pôde ver dois olhos castanhos. Eram os olhos de um homem de meia-idade, que usava cavanhaque.
“Quem é você?”, pensou ela. “Por que você entrou assim na minha vida?”
— Ainda vamos nos conhecer melhor — disse ele, como se tivesse lido os pensamentos dela.
Enquanto permaneceram ali sentados e a luz que entrava pelos vitrais coloridos ia ficando cada vez mais clara, Alberto Knox começou a falar sobre a filosofia da Idade Média.
— Para os filósofos da Idade Média, o fato de o cristianismo significar a verdade era um dado praticamente irrefutável. A questão era saber se tínhamos que simplesmente acreditar na revelação cristã, ou se também podíamos nos aproximar das verdades cristãs com a ajuda de nossa razão. Qual era a relação entre os filósofos gregos e as doutrinas da Bíblia? Havia uma contradição entre a Bíblia e a razão, ou será que a fé e o conhecimento podiam conviver em harmonia? Quase toda a filosofia da Idade Média gira em torno dessas questões.
Sofia concordou com a cabeça, impaciente. É que ela já tinha estudado essa história de crença e conhecimento em suas aulas de religião.
— Veremos como esta problemática é tratada pelos dois maiores filósofos da Idade Média. Podemos começar com santo Agostinho, que viveu de 354 a 430. A vida deste homem resume sozinha a transição entre o final da Antigüidade e os primórdios da Idade Média. Santo Agostinho nasceu em Tagasta, no Norte da África, mas já aos dezesseis anos foi para Cartago para estudar. Mais tarde ele visitou Roma e Milão e passou os últimos anos de sua vida como bispo de Hipona, trinta ou quarenta quilômetros a oeste de Cartago. Mas ele não foi cristão durante toda a sua vida. Antes de se converter, santo Agostinho pesquisou várias tendências filosóficas e religiosas.
— Você pode me dar um exemplo?
— Durante algum tempo ele foi maniqueu. Os maniqueus formavam uma seita típica do final da Antigüidade. Eles professavam uma doutrina da salvação meio religiosa, meio filosófica. Dividiam o mundo em bem e mal, luzes e trevas, espírito e matéria. Graças a seu espírito, o homem podia transcender a matéria e criar com isto as bases para a redenção de sua alma. Mas a divisão estanque entre bem e mal não deixava Agostinho sossegado. O jovem Agostinho ocupou-se intensamente daquilo que costumamos chamar de “o problema do mal”. Referimo-nos com isto à questão de saber a origem do mal. Durante algum tempo ele foi influenciado pela filosofia estóica, e os estóicos contestavam uma divisão rígida entre bem e mal. Mas foi sobretudo a segunda importante corrente filosófica do final da Antigüidade – o neoplatonismo – que mais influenciou santo Agostinho. Aqui ele tomou contato com a idéia de que toda a existência humana é de natureza divina.
— E então ele se transformou num bispo neoplatônico?
— Sim, talvez possamos colocar a coisa dessa forma. Em primeiro lugar, ele se converteu ao cristianismo, mas o cristianismo de santo Agostinho é em grande parte influenciado pelo pensamento de Platão. E como você pode ver, Sofia, no momento em que entramos na Idade Média cristã vemos que não se tratou de uma ruptura assim tão dramática com a filosofia grega. Muito da filosofia grega foi levado para a nova era pelas mãos de padres da igreja, como santo Agostinho.
— Você está querendo dizer que santo Agostinho era cinqüenta por cento cristão e cinqüenta por cento neoplatônico?
— Bem, ele próprio se considerava cem por cento cristão. Mas ele não via muitas contradições entre o cristianismo e a filosofia de Platão. Para ele, os paralelos entre a filosofia de Platão e a doutrina cristã eram tão evidentes que ele se perguntava se Platão não teria conhecido pelo menos uma parte do Antigo Testamento. É claro que isto é muito pouco provável. Seria mais acertado dizer que santo Agostinho “cristianizou” Platão.
— Pelo menos ele não desprezou tudo o que tinha a ver com filosofia, embora acreditasse no cristianismo.
— Mas ele mostrou que há limites para a razão, quando se trata de questões religiosas. O cristianismo também é um mistério divino, a que só podemos chegar através da fé. Se acreditarmos no cristianismo, porém, Deus irá “iluminar” nossa alma e então receberemos d’Ele uma espécie de saber que está além do natural. Santo Agostinho experimentou nele próprio os limites até onde a filosofia podia chegar. Somente quando se converteu ao cristianismo é que sua alma conheceu a paz. “Inquieto é o nosso coração, até quando repousa em Ti”, escreveu ele.
— Não entendo muito bem como a teoria das idéias, de Platão, e o cristianismo podem ter alguma identificação — replicou Sofia. — O que acontece, por exemplo, com as idéias eternas?
— Santo Agostinho explicava que Deus havia criado o mundo a partir do nada, e este é um ensinamento da Bíblia. Os gregos, por sua vez, tendiam para a visão segundo a qual o mundo sempre tinha existido. Para Agostinho, antes de Deus ter criado o mundo, as “idéias” já existiam dentro da Sua cabeça. Ele atribuiu a Deus as idéias eternas e com isto salvou a concepção platônica das idéias eternas.
— Muito inteligente!
— Isto também nos mostra que Agostinho e muitos outros membros do clero se esforçavam ao máximo para conciliar o pensamento grego com o judeu. De certa forma, eles eram cidadãos de duas culturas. Também na sua visão sobre o mal Agostinho remonta ao neoplatonismo. Como Plotino, ele também achava que o mal era a “ausência” de Deus. Assim, o mal não teria uma existência autônoma, mas seria algo que não é. Isto porque Deus só criou o bem. Para Agostinho, o mal surge da desobediência do homem. Ou, para dizê-lo com suas próprias palavras: “a ‘boa vontade’ é ‘obra de Deus’, a ‘má vontade’ é a ‘ausência da obra de Deus’”.
— Ele também acreditava que o homem possui uma alma imortal?
— Sim e não. Agostinho explica que entre Deus e o mundo existe um abismo intransponível. Nesse sentido ele está firmemente enraizado em solo bíblico e refuta a doutrina de Plotino, para quem tudo é uma coisa só. Mas Agostinho também deixa claro que o homem é um ser espiritual. Ele possui um corpo material, que pertence ao mundo físico e que sofre a corrosão do tempo e de outros agentes, mas também possui uma alma, capaz de reconhecer Deus.
— O que acontece com a alma quando morremos?
— Para Agostinho, toda a raça humana fora amaldiçoada depois do pecado original. Não obstante, Deus havia decidido que alguns homens seriam salvos da maldição eterna.
— Bem, do mesmo jeito Ele poderia ter decidido que ninguém seria amaldiçoado — revidou Sofia.
— Mas neste ponto Agostinho nega que o homem tenha o direito de criticar Deus. E cita Paulo em sua Epístola aos Romanos: “Ó homem, quem és tu para replicares a Deus? Porventura o vaso de barro diz a quem o fez: ‘Por que me fizeste assim?’. Porventura não é o oleiro senhor do barro para poder fazer da mesma massa um vaso para uso honroso e outro para uso vil?”.
— Quer dizer que Deus fica lá no céu brincando com as pessoas? E quando alguma de suas criações fez alguma coisa que não Lhe convém, Ele simplesmente a lança em desgraça?
— Para Agostinho, nenhum homem merece a redenção divina. Não obstante, Deus teria escolhido alguns que seriam salvos da condenação eterna. Para Ele, portanto, não há qualquer mistério sobre quem deve e quem não deve ser salvo. Isto já está estabelecido a priori. Portanto, sim… somos barro nas mãos de Deus. E estamos totalmente à mercê de Sua graça.
— Isto significa que, de alguma forma, santo Agostinho retomou as antigas crenças no destino.
— Em parte você tem razão. Mas nem por isso santo Agostinho isenta o homem da responsabilidade por sua própria vida. Seu conselho é o de que devemos viver uma vida durante a qual possamos reconhecer que pertencemos aos escolhidos. Pois santo Agostinho não nega o livre-arbítrio. Só que Deus já “viu”, antes, como iremos viver.
— Isto não é um tanto injusto? — perguntou Sofia. — Sócrates acreditava que todas as pessoas tinham as mesmas possibilidades, pois todas possuíam a mesma razão. Mas santo Agostinho divide as pessoas em dois grupos: o primeiro será redimido, e o segundo continuará amaldiçoado.
— Sim, com a teologia de santo Agostinho nós nos afastamos um pouco do humanismo de Atenas. Mas não era Agostinho que dividia a humanidade em dois grupos. Ele se baseava na doutrina bíblica da redenção e da condenação. Em sua grande obra, A cidade de Deus, ele explica isto mais detalhadamente.
— Fale-me a respeito dela.
— A expressão “Cidade de Deus” ou “Reino de Deus” tem sua origem na Bíblia e nos ensinamentos de Jesus. Agostinho acreditava que a história do homem era a história da luta entre o “Reino de Deus” e o “Reino do Mundo”. Estes dois reinos não são dois reinos políticos nitidamente separados um do outro, mas reinos que, dentro de cada homem, aspiram ao poder. Não obstante, o Reino de Deus é mais ou menos evidente na Igreja, ao passo que o Reino do Mundo está mais ou menos presente nos fundamentos dos Estados políticos. Por exemplo, no Império Romano, que precisamente durante a época de Agostinho vivia o seu declínio. Esta noção se tornou cada vez mais clara à medida que Igreja e Estado travaram uma verdadeira batalha pelo poder durante toda a Idade Média. “Não há salvação fora da Igreja”: esta era a palavra de ordem. Aos poucos, a “Cidade de Deus” de santo Agostinho acabou se identificando com a Igreja enquanto organização. Somente durante a Reforma, no século XVI, é que se levantaram protestos contra o fato de o homem ter de percorrer o caminho da Igreja para obter a graça de Deus.
— Já não era sem tempo…
— Outra coisa a observar é o fato de Agostinho ter sido o primeiro de nossos filósofos a inserir a história em sua filosofia. A idéia de uma luta entre o bem e o mal não era absolutamente nova. O que é novo em santo Agostinho é o fato de esta luta acontecer dentro e através da história. Deste ponto de vista não há muito de Platão em santo Agostinho. Nesse aspecto ele retoma a visão linear da história, que encontramos no Antigo Testamento. Agostinho acreditava que Deus precisava de toda a história para erigir o seu “Reino”. A história é necessária para educar o homem e eliminar o mal. Nesse sentido, Agostinho diz que a Divina Providência conduz a história da humanidade de Adão até o final dos tempos, à semelhança da história de um homem que, passo a passo, caminha da infância até a velhice.
Sofia olhou para o relógio.
— Já são oito horas — disse. — Preciso ir embora.
— Antes de você ir, quero falar um pouco sobre o segundo grande filósofo da Idade Média. Vamos lá para fora da igreja?
Alberto levantou-se do banco. Uniu as palmas das mãos, como que em sinal de oração, e foi caminhando pela nave central. Ele parecia estar rezando ou então refletindo sobre verdades espirituais. Sofia o seguiu. Ela sentiu que não tinha outra escolha.
TOMÁS DE AQUINO
(Páginas 197-205.)
Lá fora ainda havia uma fina cortina de neblina sobre o chão. O sol já nascera havia algumas horas, mas ainda não tinha conseguido atravessar o véu de neblina da manhã. A igreja de Santa Maria ficava na divisa com a cidade velha. Alberto sentou-se num banco na frente da igreja. Sofia ficou imaginando o que aconteceria se algum conhecido passasse por ali. Já era uma coisa estranha ficar sentada num banco às oito horas da manhã; ainda mais ao lado de um monge da Idade Média!
— São oito horas — começou Alberto. — Desde Agostinho são passados quatrocentos anos, e agora começa o longo dia escolar. Até as dez horas as escolas dos mosteiros detiveram o monopólio da educação. Entre dez e onze horas são fundadas as primeiras universidades. E então começam a ser construídas as grandes catedrais. Esta igreja aqui também foi construída por volta do meio-dia, ou na chamada Baixa Idade Média. Esta cidade não tinha meios para bancar a construção de uma catedral maior.
— E para que uma igreja maior? — retrucou Sofia, interrompendo-o. — Acho simplesmente horríveis as igrejas vazias.
— Mas as grandes catedrais não foram construídas apenas para abrigar uma grande comunidade. Elas foram erigidas em honra a Deus e eram em si uma espécie de serviço religioso. Na Alta Idade Média, porém, aconteceu ainda uma outra coisa que é do interesse de filósofos como nós.
— Conte-me!
Alberto prosseguiu:
— A influência dos árabes na Espanha começou a se fazer sentir. Durante toda a Idade Média, os árabes haviam mantido viva a tradição aristotélica. A partir de 1200, aproximadamente, estudiosos árabes vieram para o Norte da Itália a convite dos príncipes locais. Desta forma, muitos dos escritos desses estudiosos se tornaram conhecidos e acabaram sendo traduzidos do grego e do árabe para o latim. E isto despertou novamente o interesse pelas questões relativas às ciências naturais. Além disso, reavivou-se a discussão sobre a relação entre a fé cristã e a filosofia grega. Nas questões relativas às ciências naturais, todos os caminhos passavam necessariamente por Aristóteles. Contudo, restava saber ainda quando é que os “filósofos” deviam ser ouvidos e quando é que se deveria ouvir exclusivamente a Bíblia. Você está me acompanhando?
Sofia concordou com a cabeça, e o monge prosseguiu:
— O maior e mais importante filósofo da Baixa Idade Média foi são Tomás de Aquino, que viveu entre 1225 e 1274. Ele era originário da pequena cidade de Aquino, entre Roma e Nápoles, mas também trabalhou como professor em Paris. Eu o chamo de “filósofo”, mas ele foi igualmente um teólogo. Naquela época não existia uma nítida divisão entre filosofia e teologia. De forma breve, podemos dizer que são Tomás de Aquino “cristianizou” Aristóteles do mesmo modo como Agostinho fizera com Platão no início da Idade Média.
— Não era um tanto esquisito cristianizar filósofos que tinham vivido tantos séculos antes do nascimento de Cristo?
— Em parte você tem razão. Mas o que entendemos por “cristianização” desses dois filósofos é o fato de eles terem sido interpretados e entendidos de modo a deixarem de significar uma ameaça para a doutrina cristã. Diz-se de são Tomás de Aquino que ele “conseguiu pegar o touro pelos chifres”.
— Não sabia que a filosofia tinha alguma coisa a ver com touradas…
— São Tomás de Aquino está entre os que tentaram conciliar a filosofia de Aristóteles com o cristianismo. E o que se atribui a ele é o mérito de ter conseguido a grande síntese entre a fé e o conhecimento. São Tomás de Aquino só conseguiu este feito porque mergulhou na filosofia de Aristóteles e a tomou ao pé da letra.
— Ou pelo chifre. Desculpe-me… é que eu quase não dormi esta noite e temo que você tenha que explicar isto mais detalhadamente.
— São Tomás de Aquino não acreditava num paradoxo irreconciliável entre aquilo que nos diz a filosofia ou a razão, de um lado, e a revelação ou a fé cristã, de outro. Muito freqüentemente, o cristianismo e a filosofia falam da mesma coisa. Isto quer dizer que podemos sondar com a razão as mesmas verdades que lemos na Bíblia.
— Como isto pode ser possível? Será que a razão é capaz de nos dizer que Deus criou o mundo em seis dias? Ou então que Jesus era filho de Deus?
— Não, não. Só pela fé e pela revelação cristã é que podemos chegar a essas puras “verdades de fé”. Para são Tomás de Aquino, porém, havia ainda uma série de “verdades naturais teológicas” ao lado dessas “verdades de fé”. Por “verdades naturais teológicas” ele se referia àquelas verdades a que podemos chegar tanto pela fé cristã quanto pela nossa própria razão “natural”, inata. Para ele, um exemplo desse tipo de verdade seria o fato de que existe um Deus. Tomás acreditava, portanto, em dois caminhos que levavam a Deus. O primeiro passava pela fé e pela revelação cristã, o segundo pela razão e os sentidos. É claro que dos dois caminhos o mais seguro era o dá fé e da revelação, pois o homem pode facilmente se enganar quando confia apenas na razão. Mas o que importa salientar nesse contexto é o fato de que, para são Tomás de Aquino, não precisava necessariamente existir um paradoxo entre a doutrina cristã e um filósofo como Aristóteles.
— Quer dizer que podemos nos ater tanto a Aristóteles quanto à Bíblia?
— Não, não. Aristóteles percorreu apenas um pedaço do caminho, porque ele não conheceu a revelação cristã. Mas percorrer um pedaço do caminho não é o mesmo que tomar o caminho errado. Não é errado dizer, por exemplo, que Atenas fica na Europa. Só que está também não é uma afirmação muito precisa. Se um livro diz que Atenas é uma cidade da Europa, você ainda vai precisar procurar no atlas a localização da cidade. E ali você encontra a verdade por inteiro: Atenas é a capital da Grécia, um pequeno país do Sudeste da Europa. Com um pouco de sorte você ainda fica sabendo alguma coisa sobre a Acrópole. Tudo isto para não falar de Sócrates, Platão e Aristóteles.
— Mas a primeira informação sobre Atenas também estava certa.
— Exatamente! São Tomás de Aquino quer mostrar que existe apenas uma verdade. Quando Aristóteles nos mostra alguma coisa que reconhecemos como certa com nossa razão, isto não contradiz a doutrina cristã. Uma parte da verdade nós podemos reconhecer, portanto, através da razão e da observação. Por exemplo, aquelas verdades a que Aristóteles se refere quando descreve o reino vegetal e o animal. Uma segunda parte da verdade nos foi revelada por Deus através da Bíblia. O problema é que as duas partes da verdade se sobrepõem em muitos pontos importantes. Existem algumas questões que são respondidas tanto pela Bíblia quanto pela razão.
— Por exemplo, a de que existe um Deus?
— Exatamente. A filosofia de Aristóteles também pressupunha a existência de um Deus, ou de uma causa primordial, que colocava em marcha todos os processos da natureza. Mas ela não descreve em detalhes este Deus. Neste particular, temos de nos ater ao que dizem a Bíblia e os ensinamentos de Jesus.
— Quer dizer que a existência de um Deus é um fato consumado?
— Isto é uma coisa discutível. Ainda hoje, porém, a maioria das pessoas teria de admitir que a nossa razão não é capaz de provar que não existe um Deus. São Tomás de Aquino foi mais adiante. Ele acreditava poder provar a existência de Deus com base na filosofia de Aristóteles.
— Nada mal!
— Ele dizia que, com a ajuda da razão, podemos reconhecer também que tudo precisa ter uma “primeira causa”. Para são Tomás de Aquino, Deus havia se revelado aos homens através da Bíblia e da razão. Existe, portanto, uma “teologia revelada” e uma “teologia natural”. O mesmo vale para o campo da moral. Podemos ler na Bíblia como devemos viver segundo a vontade de Deus. Mas Deus também nos dotou de uma consciência, que nos habilita a distinguir “naturalmente” o certo do errado. Assim, “dois caminhos” levam também à vida moral. Sabemos que não podemos ferir as outras pessoas, mesmo que não tenhamos lido na Bíblia que devemos tratar os outros da forma como gostaríamos de ser tratados. Mas também nesse particular os mandamentos da Bíblia são o guia mais seguro.
— Acho que estou entendendo — disse Sofia. — É mais ou menos como podemos saber que uma tempestade se aproxima quando vemos raios e ouvimos trovões.
— Correto. Mesmo se formos cegos, podemos ouvir o trovão. E mesmo se formos surdos, podemos ver a tempestade. É claro que o melhor seria poder ver e ouvir. Mas não há uma contradição entre o que vemos e o que ouvimos. Ao contrário: uma impressão reforça a outra.
— Entendo.
— Deixe-me evocar outra imagem. Quando você lê um romance, por exemplo Victoria, de Knut Hamsun…
— Por acaso já li este…
— …você não fica sabendo alguma coisa sobre o autor pelo simples fato de ter lido um de seus livros?
— Na pior das hipóteses, posso afirmar que há um autor que escreveu o livro.
— Dá para saber alguma outra coisa sobre ele?
— Dá… por exemplo, que ele tem uma visão bastante romântica do amor.
— Portanto, quando você lê este romance, que é uma criação de Hamsun, você fica sabendo ao mesmo tempo alguma coisa sobre o próprio Hamsun. Mas você não pode esperar obter uma informação realmente pessoal sobre o autor. Lendo Victoria, você consegue ficar sabendo, por exemplo, quantos anos o autor tinha quando escreveu o livro? Ou então onde morava, ou ainda quantos filhos tinha?
— É claro que não.
— A relação entre a criação de Deus e a Bíblia é mais ou menos assim. Quando observamos a natureza, podemos reconhecer que existe um Deus. Podemos ver, talvez, que ele gosta de flores e de animais, senão não os teria criado. Outras informações sobre Deus, porém, nós só as encontramos na Bíblia, quer dizer, na autobiografia de Deus.
— Este foi um bom exemplo!
— Mmmmm…
Pela primeira vez Alberto mergulhou em pensamentos e não deu qualquer resposta.
(…)
— Agora já é meio-dia. Preciso voltar para casa antes do final da Idade Média.
— Em poucas palavras, vou mostrar como Tomás de Aquino adotou a filosofia de Aristóteles em todas as áreas que não colidiam com a teologia da Igreja. Isto vale para a sua lógica, para a sua filosofia do conhecimento e também para a sua filosofia da natureza. Você ainda se lembra, por exemplo, de como Aristóteles descreve uma escala ascendente da vida, desde as plantas e os animais até o homem?
Sofia concordou.
— O próprio Aristóteles acreditava que esta escala apontava para um Deus que representava o ápice da existência. Este esquema era facilmente adaptável à teologia cristã. São Tomás de Aquino acredita num grau crescente de existência que vai das plantas e dos animais para o homem, do homem para os anjos e dos anjos para Deus. À semelhança dos animais, o homem também tem um corpo e órgãos de sentidos, mas o homem também possui uma razão “que examina as coisas a fundo”. Os anjos não têm nem corpo, nem órgãos de sentidos; em compensação, possuem uma inteligência direta e instantânea. Diferentemente dos homens, eles não precisam “refletir”, não precisam tirar conclusões. Eles conhecem tudo o que o homem pode conhecer, só que não precisam ir progredindo passo a passo como nós. E por não terem corpo, os anjos também nunca morrem. Eles não são eternos como Deus, pois também foram criados por Deus um dia. Mas não possuem um corpo do qual possam se separar. E é por isso que nunca morrem.
— Isto parece ser maravilhoso.
— Acima dos anjos, porém, está o trono de Deus, Sofia. Com um único olhar ele é capaz de ver, relacionar e saber tudo.
— Então ele está nos vendo agora.
— Sim, talvez ele esteja nos vendo. Mas não “agora”. Para Deus, o tempo não é a mesma coisa que é para nós. Nosso “agora” não é o “agora” de Deus. Algumas semanas para nós não significam necessariamente algumas semanas para Deus.
(…)
E Alberto prosseguiu:
— Infelizmente, são Tomás de Aquino adotou também a visão que Aristóteles tinha da mulher. Você talvez ainda lembre que, para Aristóteles, a mulher era uma espécie de homem inacabado. Além disso, ele acreditava que os filhos herdavam apenas as características do pai, pois para Aristóteles a mulher era passiva e receptora, ao passo que o homem era ativo e criativo. Para são Tomás de Aquino, a visão de Aristóteles estava de acordo com as palavras da Bíblia, segundo as quais a mulher teria sido feita a partir da costela de um homem.
— Que besteira!
— Talvez seja importante acrescentar que o óvulo da mulher só foi descoberto em 1827. Por isso talvez não fosse de estranhar que eles considerassem o homem a parte criativa e doadora de vida no processo de reprodução. Além disso, é bom observar que para são Tomás de Aquino a mulher só era inferior ao homem enquanto ser natural. Para ele, a alma da mulher tinha o mesmo valor que a do homem. No céu existe plena igualdade de direitos entre os sexos, pela simples razão de que, abandonado o corpo, deixam de existir quaisquer diferenças físicas entre os sexos.
— Este não é um consolo dos mais animadores. Quer dizer que não houve nenhuma filósofa na Idade Média?
— Na Idade Média, a Igreja era fortemente dominada pelos homens. Mas isto não significa que não tenha havido mulheres pensadoras. Uma delas foi Hildegard Bingen…
(…)
[Alberto prosseguiu:]
— Hildegard foi uma freira que viveu entre 1098 e 1179 na Renânia. Apesar de ser mulher, ela fazia sermões, foi escritora, médica, botânica e pesquisadora natural. Talvez ela seja o exemplo mais evidente de que, na Idade Média, as mulheres freqüentemente eram mais práticas, e talvez mais científicas, do que os homens.
(…)
[Alberto prosseguiu:]
— Havia uma antiga crença cristã e judaica segundo a qual Deus não era apenas homem. Ele teria também um lado feminino, ou uma “natureza materna”. Afinal, a mulher também tinha sido criada à Sua imagem e semelhança. Em grego, a palavra para este lado feminino de Deus é Sophia. “Sophia” ou “Sofia” significa “sabedoria”.
Confusa, Sofia sacudiu a cabeça. Por que ninguém nunca lhe havia dito aquilo? E por que também ela nunca perguntara?
Alberto prosseguiu:
— Entre os judeus, e também na Igreja ortodoxa grega, “Sophia”, ou seja, a natureza materna de Deus, teve certa importância durante a Idade Média. No Ocidente, ela caiu no esquecimento. Mas então apareceu Hildegard. E ela conta que Sophia lhe apareceu em visões usando uma túnica toda ornamentada de pedras preciosas…
(…)
[Alberto prosseguiu:]
— Mas agora já é quase uma hora. Você precisa ir para casa almoçar. À nossa frente começa a se descortinar um novo tempo. Vou marcar um encontro com você para falarmos sobre o Renascimento. Hermes [o cão labrador de Alberto] irá buscá-la no jardim.
CAPÍTULO 16 (EXCERTO)
O RENASCIMENTO
OS PRESSUPOSTOS DO RENASCIMENTO
(Páginas 212-218.)
(…)
Sofia ouviu passos que se aproximavam do outro lado. Então a porta se abriu. Era Alberto Knox. Ele havia trocado de roupa, mas também estava fantasiado. Alberto usava meias brancas até a altura dos joelhos, uma calça vermelha bem larga, também até a altura dos joelhos, e uma jaqueta amarela com gordos enchimentos nos ombros. Sua figura fez Sofia lembrar-se do curinga de um baralho. Se ela não estava enganada, aquele era um traje típico do Renascimento.
— Palhaço! — exclamou Sofia, ao mesmo tempo em que o empurrava para o lado e entrava no apartamento. Ela ainda estava totalmente fora de si por causa do cartão-postal que encontrara junto à escadaria.
— Acalme-se, minha filha — disse Alberto, fechando a porta.
(…)
Foram para a sala, a mais estranha que Sofia já tinha visto em toda a sua vida.
Alberto morava num sótão bem espaçoso, com uma parede inclinada e um teto baixo. No teto havia uma clarabóia que deixava entrar uma luz forte vinda diretamente do céu. A sala também tinha uma janela que dava para a cidade. Através dela, Sofia podia ver o telhado de muitos daqueles casarões antigos.
Mas era a decoração daquela sala enorme que mais deixava Sofia intrigada. A sala estava apinhada de móveis e objetos de diferentes épocas. O sofá devia ser dos anos 30, a velha escrivaninha era mais ou menos da virada do século e havia uma cadeira que devia ter pelo menos alguns séculos de idade. Mas os móveis não eram tudo! Nas prateleiras e estantes havia uma confusão de quinquilharias: relógios e vasos antigos, morteiros e retortas, facas e bonecas, canivetes e suportes para livros, octantes e sextantes, bússolas e barômetros. Uma parede inteira estava coberta de livros, mas não dos que a gente costuma encontrar em livrarias. A coleção de livros também parecia uma pequena amostra de toda a produção de livros de muitos séculos. Nas outras paredes havia gravuras e quadros. Alguns provavelmente datavam de algumas décadas, ao passo que outros pareciam ser muito antigos. E nas paredes havia também alguns mapas. Numa delas, o mapa da Noruega não estava muito certo: o fiorde de Sogne estava mais para o lado de Trøndelag, e o fiorde de Trondheim, muito ao norte.
Sofia ficou algum tempo parada, sem dizer nada. Virou-se algumas vezes e não sossegou enquanto não tinha examinado a sala por todos os ângulos.
— Você coleciona um monte de bugigangas — disse finalmente.
— Bugigangas, não. Imagine quantos séculos de história estão guardados nesta sala. Eu não chamaria isto de bugiganga.
— Por acaso você é dono de uma loja de antiguidades?
O rosto de Alberto assumiu uma expressão de desapontamento.
— Nem todos são capazes de simplesmente se deixar levar pelo fluxo da história, Sofia. Alguns precisam parar e recolher o que foi ficando pelas margens do rio.
— Que forma estranha de se expressar!
— Mas é a verdade, minha cara. Não vivemos apenas em nosso próprio tempo. Carregamos conosco também a nossa história. Não esqueça de que tudo o que você está vendo hoje aqui já foi novinho em folha um dia. Esta pequena boneca de madeira do século XVI, por exemplo, talvez tenha sido feita para a festa de quinze anos de uma garota. E talvez tenha sido feita por seu avô já bem velho… Depois a garota virou uma adolescente, cresceu e se casou. E talvez ela própria tenha tido uma filha, que herdou esta boneca. Depois ela foi ficando velha, até que deixou de existir. É possível que ela tenha vivido uma longa vida, mas agora não existe mais. E nunca mais vai voltar. No fundo, ela apenas fez uma breve visita à Terra. Sua boneca, porém… esta sim está bem sentadinha ali na estante.
— Colocando a coisa desse jeito, tudo ganha um ar triste e solene.
— Mas a vida é triste e solene. Somos deixados num mundo maravilhoso, encontramo-nos aqui com outras pessoas, somos apresentados uns aos outros e caminhamos juntos durante algum tempo. Depois nos separamos e desaparecemos tão rápida e inexplicavelmente quanto surgimos.
(…)
Alberto foi até o sofá e sentou-se. Sofia seguiu o seu exemplo e sentou-se numa poltrona muito confortável.
— (…) Hoje vou lhe contar um pouco sobre o Renascimento.
— Pode começar.
— Apenas alguns anos depois da morte de são Tomás de Aquino, a estrutura da unidade cristã começou a apresentar rachaduras. A filosofia e a ciência continuavam a se libertar da teologia cristã, possibilitando à religião um relacionamento mais livre com a razão. Cada vez mais pensadores enfatizavam que não seria possível chegar a Deus por meio de nossa razão, pois de qualquer forma Deus seria incompreensível para o nosso pensamento. O que importava para o homem não era entender o mistério cristão, mas sujeitar-se à vontade de Deus.
— Entendo…
— O fato de a religião e a ciência estabelecerem entre si um relacionamento mais livre levou a um método científico novo e a um novo fervor religioso. Estavam assim estabelecidas as bases para duas importantes transformações ocorridas nos séculos XV e XVI: o Renascimento e a Reforma.
— Vamos ver uma transformação de cada vez.
— Por renascimento entende-se um período abrangente de apogeu cultural que se iniciou em fins do século XIV. Ele começou no Norte da Itália e depois se expandiu rapidamente rumo ao norte ao longo dos séculos XV e XVI.
— Você não disse que “renascimento” significa “nascer de novo”?
— Disse. E o que viria a nascer de novo eram a arte e a cultura da Antigüidade. Por isso falamos também do humanismo do Renascimento: depois da longa Idade Média, que via todos os aspectos da vida a partir de um prisma divino, o homem volta a ocupar o centro de tudo. A égide deste movimento era a seguinte: “De volta às fontes!”, e a principal fonte era o humanismo da Antigüidade. “Desenterrar” esculturas antigas e manuscritos da Antigüidade tornou-se quase um esporte popular. Aprender grego também virou moda, o que levou a um reestudo da cultura grega. O estudo do humanismo grego também tinha um objetivo pedagógico: o estudo de temas humanistas levava a uma “formação clássica”, capaz de elevar o homem a um nível superior de existência. Costumava-se dizer que “os cavalos nascem, ao passo que os homens se formam”.
— Quer dizer que precisamos ser educados para nos tornarmos seres humanos?
— Sim, era assim que eles pensavam naquela época. Mas antes de examinarmos mais de perto as idéias do humanismo e do Renascimento, vamos falar um pouco sobre o pano de fundo cultural e político do Renascimento.
Alberto levantou-se e começou a andar pela sala. Depois parou e apontou para um instrumento muito antigo que estava na estante.
— Você sabe o que é isto? — perguntou.
— Parece uma antiga bússola.
— Correto.
Depois apontou para uma antiga arma de fogo, que estava pendurada na parede sobre o sofá.
— E isto?
— Uma espingarda antiga.
— Muito bem. E isto?
Alberto tirou um grosso livro da estante.
— Um livro antigo.
— Para ser mais exato, um incunábulo.
— Um incunábulo?
— Na verdade, a palavra “incunábulo” significa “berço” e é o nome que se dá aos livros que foram impressos nos primórdios da arte da impressão, ou seja, antes de 1500.
— E este livro é realmente tão antigo assim?
— É sim. E justamente estes três inventos que temos aqui diante de nós – a bússola, a pólvora e a impressão de livros – foram os pressupostos mais importantes para a nova era, que chamamos de Renascimento.
— Me explique um pouco melhor.
— A bússola facilitou a navegação. Em outras palavras, ela foi um pressuposto importante para os grandes descobrimentos. O mesmo vale para a pólvora. As novas armas trouxeram a supremacia européia sobre as culturas americana e asiática. Mas também na Europa a pólvora foi de grande importância. E a impressão de livros foi importante para difundir os novos pensamentos do Renascimento humanista. Ela também contribuiu para que a Igreja perdesse o seu antigo monopólio como transmissora de conhecimentos. Mais tarde, novos instrumentos e novas invenções começaram a se suceder em ritmo cada vez mais acelerado. Um instrumento importante foi, por exemplo, o telescópio, que criou condições absolutamente novas para a astronomia.
— E por fim vieram os foguetes e as viagens espaciais tripuladas, não é?
— Agora você foi longe e rápido demais! Certo é que durante o Renascimento teve início um processo que acabaria por levar o homem à Lua. Ou então para Hiroxima e Chernobyl. Mas primeiro vem uma série de modificações no âmbito cultural e econômico. Uma premissa importante foi a transição da economia à base de troca para a economia monetária. No final da Idade Média, havia cidades de comércio intenso e de comerciantes experientes, com economia de base monetária e sistema bancário. Desta forma surgiu uma burguesia que havia conquistado certa independência com referência às necessidades vitais básicas. O que se precisava para viver comprava-se agora com dinheiro. Esta evolução incentivava a diligência, a imaginação e a criatividade de cada um. E tarefas totalmente novas foram colocadas ao indivíduo.
— Isto me lembra um pouco o surgimento das cidades gregas, dois mil anos antes.
— Pode ser. Eu contei a você como os filósofos gregos haviam se libertado da visão mítica do mundo, própria da cultura camponesa. Do mesmo modo, os cidadãos da época do Renascimento começaram a se libertar dos senhores feudais e do poder da Igreja. Ao mesmo tempo, a cultura grega foi redescoberta, graças a um contato mais estreito com os árabes na Espanha e com a cultura bizantina.
— Os três rios da Antigüidade que se unem numa só corrente.
— Você é uma aluna atenciosa. Mas vamos parando por aqui com os pressupostos do Renascimento. Vou lhe contar agora sobre o novo pensamento.
— Vamos lá. Só que eu tenho que voltar para casa para o jantar.
A NOVA VISÃO DO HOMEM
(Páginas 218-220.)
Alberto sentou-se novamente no sofá.
— O mais importante produto do Renascimento foi uma nova visão do homem. Os humanistas do Renascimento desenvolveram uma crença totalmente nova no homem e em seu valor, o que se opunha frontalmente à Idade Média, período em que se enfatizava apenas a natureza pecadora do homem. O homem passa a ser visto agora como algo infinitamente grandioso e valioso. Uma figura central do Renascimento foi Marsilio Ficino. É dele a célebre frase: “Conhece-te a ti mesmo, ó linhagem divina vestida com trajes de mortais!”. Um outro, Giovanni Pico della Mirandola, escreveu um discurso laudatório intitulado Sobre a dignidade do homem. Uma coisa dessas seria inimaginável na Idade Média. Durante toda a Idade Média, o ponto de partida sempre fora Deus. Os humanistas do Renascimento, ao contrário, têm como ponto de partida o próprio homem.
— Mas os filósofos gregos também já tinham feito isso.
— Por isso é que falamos de um “re-nascimento” do humanismo da Antigüidade. Contudo, o humanismo do Renascimento foi muito mais marcado pelo individualismo do que o humanismo da Antigüidade. Não somos apenas pessoas; somos indivíduos singulares. Este pensamento podia levar a uma adoração irrestrita do gênio. O ideal passou a ser, então, aquilo que chamamos de o homem renascentista. Entendemos por isto um homem que se ocupa de todos os aspectos da vida, da arte e da ciência. Além disso, a nova visão do homem mostrava-se também no interesse pela anatomia do corpo humano. Como na Antigüidade, começou-se a dissecar os corpos, a fim de se descobrir como era constituído o corpo humano. E isto era importante tanto para a medicina quanto para a arte. Na arte voltaram a ser comuns as representações de nus humanos. Podemos dizer que isto passou a acontecer depois de mil anos de pudor e vergonha. O homem ousava novamente ser ele mesmo. Ele não precisava mais ter vergonha de nada.
— Isto parece uma coisa inebriante — disse Sofia, debruçando-se sobre a mesinha que havia entre ela e o seu professor de filosofia.
— Sem dúvida. A nova imagem do homem levou a uma concepção de vida absolutamente nova. O homem não existia apenas para servir a Deus, mas também para ser ele próprio. Por esta razão, o homem podia desfrutar aqui e agora de sua própria vida. E se o homem podia se desenvolver livremente, ele tinha possibilidades ilimitadas. Seu objetivo era ultrapassar todas as fronteiras. Aliás, este também era um ponto de diferença em relação ao humanismo da Antigüidade. Os humanistas da Antigüidade tinham enfatizado precisamente que o homem devia apresentar tranqüilidade, temperança e autodomínio.
— Quer dizer que os humanistas do Renascimento perderam o autodomínio?
— Pelo menos eles não eram particularmente moderados, para dizer o mínimo. Para eles, era como se o mundo acabasse de ter acordado. Os homens daquela época passaram a ser muito mais conscientes de seu próprio tempo. Foi então que criaram o termo “Idade Média” para designar todos os séculos compreendidos entre a Antigüidade e o seu próprio tempo. Todos os domínios do saber começaram a experimentar um período singular de apogeu: arte e arquitetura, literatura e música, filosofia e ciência. Vou citar um exemplo concreto. Falamos sobre a Roma da Antigüidade, que ostentava orgulhosa os títulos de “cidade das cidades” e “umbigo do mundo”. No decorrer da Idade Média, a cidade entrou em declínio e em 1417 a antiga metrópole tinha apenas dezessete mil habitantes.
— Não muito mais do que Lillesand.
— O humanismo do Renascimento coloca como objetivo político-cultural a tarefa de reconstruir Roma. A principal decorrência deste objetivo foi a construção da catedral de São Pedro sobre o túmulo do apóstolo Paulo. E observando a catedral de São Pedro não podemos realmente falar de moderação ou autodomínio. Muitos dos grandes nomes do Renascimento engajaram-se neste que seria o maior projeto arquitetônico do mundo. Os trabalhos começaram em 1506 e duraram cento e vinte anos. Depois foram necessários outros cinqüenta anos para que a grande praça de São Pedro fosse terminada.
— Deve ser uma igreja enorme.
— Ela tem mais de duzentos metros de comprimento e cento e trinta metros de altura. Bem, acho que este exemplo é suficiente para ilustrar o arrojo do homem renascentista. Outro dado muito importante é que o Renascimento levou a uma nova concepção de natureza. O fato de o homem “estar de bem” com sua própria existência e o fato de a vida na Terra não ser vista apenas como preparação para a vida no céu deram origem a uma postura completamente nova diante do mundo físico. A natureza era considerada agora algo positivo. Muitos acreditavam também que Deus estava presente na sua criação. Afinal, se Ele é infinito, também é onipresente. Chamamos tal concepção de panteísmo. Os filósofos da Idade Média sempre haviam chamado a atenção para o abismo intransponível que havia entre Deus e sua criação. Agora, a natureza podia ser vista como algo divino, ou mesmo como um “desdobramento de Deus”. Esses pensamentos novos nem sempre foram bem recebidos pela Igreja. O destino de Giordano Bruno é uma prova trágica do que estou dizendo. Ele não dizia apenas que Deus estava presente na natureza. Ele também considerava o universo infinito e por isso foi severamente punido.
— De que maneira?
— Em 1600, Giordano Bruno foi queimado no mercado de flores de Roma…
— Que coisa terrível… e estúpida! É isto que você chama de humanismo?
— Não, não. Bruno era o humanista, e não o seu carrasco. Mas durante o Renascimento floresceu também aquilo que chamamos de “anti-humanismo”. Refiro-me com isto a uma Igreja e a um poder estatal autoritários. Durante o Renascimento houve também processos contra bruxos e bruxas, execuções em fogueiras, magia, superstição, sangrentas guerras religiosas e ainda a brutal conquista da América. Nenhuma época é apenas boa ou apenas ruim. O bem e o mal perpassam toda a história da humanidade como dois fios de uma meada. E freqüentemente se entrelaçam um no outro. Aliás, isto vale para o próximo conceito que vamos estudar. Vou contar a você como o Renascimento desenvolveu também um novo método científico.
O NOVO MÉTODO CIENTÍFICO
(Páginas 220-222.)
— Foi a época em que surgiram as primeiras fábricas?
— Não, ainda não. Estamos falando aqui das premissas para toda uma evolução tecnológica, que começou depois do Renascimento. Refiro-me, portanto, a um novo posicionamento do homem em relação à essência da ciência. Os frutos tecnológicos desse novo método só começaram a surgir depois.
— Como era este novo método?
— Tratava-se sobretudo de investigar a natureza por meio dos próprios sentidos. Já em inícios do século XIV mais e mais vozes advertiam contra a crença cega nas antigas autoridades. Por “antigas autoridades” entendiam-se tanto os princípios cristãos quanto a filosofia natural aristotélica. Também se contestava a convicção de que um problema só podia ser resolvido pela mera reflexão. Uma confiança exagerada na importância da razão havia imperado durante toda a Idade Média. O princípio vigente agora era o de que a investigação da natureza devia se construir fundamentalmente na observação, na experiência e nos experimentos. Chamamos este método de método empírico.
— O que isto significa?
— Significa pura e simplesmente que nosso conhecimento das coisas tem sua origem em nossas próprias experiências, e não em pergaminhos empoeirados ou em quimeras. Também na Antigüidade se praticou a ciência empírica. Foi assim que Aristóteles, por exemplo, realizou muitas observações importantes da natureza. Contudo, a novidade trazida pelo Renascimento eram os experimentos sistemáticos.
— Suponho que eles não tivessem todos os aparelhos técnicos que temos hoje.
— É claro que eles não tinham calculadoras ou balanças eletrônicas. Mas tinham a matemática, e tinham também as balanças. Passou-se a enfatizar a importância de as observações científicas serem expressas numa linguagem matemática precisa. É necessário medir o que é mensurável e tornar mensurável aquilo que não o é, dizia Galileu Galilei, um dos mais importantes cientistas do século XVII. Ele também dizia que o livro da natureza estava escrito na linguagem da matemática.
— Foi assim que os experimentos e as medições abriram caminho para as novas descobertas, não foi?
— A primeira fase foi a do estabelecimento de um novo método científico. Este método possibilitou uma revolução tecnológica. Esta revolução tecnológica, por sua vez, possibilitou novas invenções, que continuam a ser feitas desde então. Podemos dizer sem exagero que no Renascimento a humanidade começou a se libertar das condições que lhe eram impostas pela natureza. O homem deixou de ser apenas uma parte da natureza. A natureza passou a ser algo que se podia usar e explorar. “Saber é poder”, dizia o filósofo inglês Francis Bacon, sublinhando com isto a aplicação prática do conhecimento. E isto era uma coisa nova. A humanidade passou a intervir na natureza e a querer controlá-la.
— Mas isto não foi uma coisa positiva?
— Sim e não. Vamos retomar aqui os fios do bem e do mal que se entrelaçam em tudo o que o homem faz. A ruptura tecnológica iniciada no Renascimento levou aos teares e ao desemprego, aos remédios e a novas doenças, à eficiência controlada da agricultura e à exploração da natureza, a novos utensílios como máquinas de lavar e geladeiras, e também à poluição ambiental e às montanhas de lixo. O fato de assistirmos hoje à terrível degradação de nosso meio ambiente levou muitos a ver a ruptura tecnológica como um perigoso desvio das condições de vida que nos são dadas pela natureza. Para estas pessoas, o homem colocou em marcha um processo que não pode mais controlar. Outros, mais otimistas, acreditam que ainda nos encontramos na “infância” da tecnologia. A civilização tecnológica, acreditam eles, também tem suas “doenças de infância”; mas no fim os homens vão aprender a controlar a natureza, sem com isto ameaçá-la em seus pontos vitais.
— E qual é a sua opinião a respeito disso?
— A de que talvez ambos os pontos de vista tenham um pouco de razão. Em alguns campos os homens não podem mais intervir na natureza. Em outros, podemos fazê-lo sem medo. De qualquer forma, uma coisa é certa: não há caminhos que nos levem de volta à Idade Média. Desde o Renascimento, o homem deixou de ser apenas uma parte da criação. O próprio homem intervém na natureza da forma como entende que deve. E isto nos mostra o quanto ele é uma criatura surpreendente.
A NOVA VISÃO DE MUNDO
(Páginas 222-231.)
— Já estivemos na Lua. Alguém da Idade Média teria considerado isto possível?
— Ninguém, com toda a certeza. E isto nos leva à nova visão de mundo vigente no Renascimento. Durante toda a Idade Média, as pessoas tinham o céu sobre suas cabeças e precisavam olhar para cima para ver o Sol, a Lua, as estrelas e os planetas. Mas ninguém duvidava de que a Terra fosse o centro do universo. Nenhuma das observações realizadas naquela época lançava qualquer dúvida sobre o fato de que a Terra estava parada e os “corpos celestes” se movimentavam em torno dela. Chamamos esta noção de visão geocêntrica do mundo. Ela era corroborada pela noção cristã de que Deus estava sentado em seu trono acima de todos os corpos celestes.
— Se fosse assim tão fácil…
— Em 1543, porém, surgiu uma obra intitulada Das revoluções dos mundos celestes. Ela tinha sido escrita pelo astrônomo polonês Copérnico, que morreu no mesmo dia em que sua obra pioneira foi publicada. Copérnico dizia que não era o Sol que girava em torno da Terra, mas a Terra que girava em torno do Sol. Pelo menos era isto o que, a seu ver, indicavam as observações sobre os corpos celestes feitas até então. E o fato de as pessoas terem acreditado que o Sol girava em torno da Terra se explicava, segundo ele, pelo fato de que a Terra também girava em torno do seu próprio eixo. Copérnico chamou a atenção, portanto, para o fato de podermos compreender com muito mais facilidade todas as observações dos corpos celestes se tomarmos como pressuposto o fato de que a Terra e os outros planetas descrevem órbitas circulares em torno do Sol. Chamamos isto de visão heliocêntrica do mundo, ou seja, tudo gira em torno do Sol.
— E isto não está certo?
— Não. Copérnico não tinha nenhuma prova dos movimentos circulares, a não ser a antiga concepção de que os corpos celestes eram esferas que descreviam trajetórias circulares, simplesmente porque eram “celestiais”. Desde os tempos de Platão, as esferas e os círculos eram considerados as figuras geométricas perfeitas. Em inícios do século XVII, o astrônomo alemão Johannes Kepler apresentou os resultados de exaustivas observações, que provavam que os planetas se moviam em trajetórias elípticas, ou ovais, em torno de um foco, o Sol. Ele também comprovou que os planetas se movimentam tanto mais rapidamente quanto maior é a sua proximidade do Sol. Por fim, provou ainda que um planeta se movimenta tanto mais lentamente quanto maior é a distância que o separa do Sol. Somente com os estudos de Kepler ficou claro que a Terra é um planeta como todos os outros. Kepler afirmou também que essas mesmas leis físicas valem para todo o universo.
— Como ele podia ter tanta certeza?
— Ele podia ter tanta certeza porque tinha pesquisado os movimentos dos planetas com os seus próprios sentidos, ao invés de se fiar cegamente em tradições que remontavam à Antigüidade. Mais ou menos na mesma época em que viveu Kepler, viveu também o famoso cientista italiano Galileu Galilei. Com a ajuda de um telescópio, Galileu Galilei observou os corpos celestes, estudou as crateras da Lua e constatou que, como na Terra, também lá havia montanhas e vales. Galileu também descobriu que o planeta Júpiter tem quatro luas. A Terra não era, portanto, o único planeta que tinha uma lua. O mais importante, porém, é que Galileu descobriu a chamada lei da inércia.
— E o que diz esta lei?
— “Todo corpo permanece no estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta enquanto não é obrigado a alterar este estado pela ação de forças que atuam de fora.” Esta formulação, porém, não foi feita por Galileu, mas por Isaac Newton, muitos anos mais tarde.
— Se é você que diz…
— Desde a Antigüidade, um dos mais importantes argumentos contra o fato de o mundo girar em torno de seu próprio eixo era o de que, se isto fosse verdade, a Terra teria de se movimentar tão rapidamente que uma pedra atirada para cima, em linha reta, cairia no chão a muitos metros do ponto em que tinha sido atirada.
— E por que isto não ocorre?
— Se você está sentada dentro de um trem e deixa cair sua maçã, ela não vai cair atrás de você só porque o trem está se movimentando. Ela cai bem perto de você, provavelmente a seus pés. E isto por causa da lei da inércia. A maçã mantém a mesma velocidade que tinha antes de você deixá-la cair.
— Acho que entendo.
— Só que na época de Galileu não havia trens. Contudo, se você vai rolando uma pequena esfera no chão e de repente a solta…
— …ela continua a rolar…
— …porque a velocidade é mantida, mesmo depois de você ter soltado a esfera.
— Só que no fim ela acaba parando, se o lugar em que você estiver for grande o suficiente.
— Isto se explica pela ação de outras forças, que freiam a velocidade. Primeiro o solo, sobretudo se ele for de madeira rústica. Mas também a força da gravidade acaba parando a esfera mais cedo ou mais tarde. Espere um pouco, vou lhe mostrar uma coisa.
Alberto Knox levantou-se e foi até a antiga escrivaninha. Tirou alguma coisa de uma gaveta e a colocou sobre a mesa de canto do sofá. Era uma espécie de prancha de madeira, com alguns milímetros de espessura numa ponta e bem fininha na outra. Ao lado da prancha de madeira, que cobriu quase toda a mesinha, Alberto colocou uma bola de gude.
— Isto aqui se chama “plano inclinado” — disse. — O que você acha que vai acontecer se eu largar a bolinha de gude deste lado mais grosso?
Sofia suspirou.
— Aposto dez coroas como ela vai rolar pela mesinha e depois vai cair no chão.
— Veremos.
Alberto soltou a bolinha e ela se comportou exatamente como Sofia havia previsto: rolou sobre a mesa, passou voando pela borda, fez um ruído ao encontrar o chão e foi parar na soleira da porta.
— Impressionante — disse Sofia.
— Não é mesmo? Era este o tipo de experimento que Galileu fazia, entende?
— Ele era assim tão tolo?
— Calma, calma. Ele queria analisar tudo com seus próprios sentidos, e nós estamos apenas no começo do experimento. Diga-me primeiro por que a bola de gude rola pelo plano inclinado.
— Ela começa a rolar porque é pesada.
— Certo, mas o que é o peso?
— Agora você está me fazendo umas perguntas realmente estúpidas.
— Não são perguntas estúpidas, se você não consegue responder. Por que a bolinha rola para o chão?
— Por causa da gravidade.
— Exatamente, ou por força da gravitação, conforme também costumamos dizer. O peso, portanto, tem algo a ver com a gravidade. E esta força colocou a bolinha em movimento.
Alberto já tinha apanhado a bolinha do chão. Segurando-a, debruçou-se sobre o plano inclinado.
— Agora vou tentar rolar a bolinha de modo a fazê-la atravessar o plano inclinado no sentido da largura. Veja bem como ela se comporta.
Ele se curvou e fez pontaria. Depois empurrou a bolinha como tinha explicado antes. Sofia observou que a bolinha fez uma curva e novamente desceu pelo plano inclinado.
— O que aconteceu agora? — perguntou Alberto?
— Ela rolou de viés porque estava sobre o plano inclinado.
— Agora vou passar um pouco de nanquim nela… e então talvez possamos ver melhor o que você quis dizer com este “rolou de viés”.
Ele pegou um tinteiro e pintou a bolinha de preto. Depois a soltou novamente sobre o plano inclinado. Sofia pôde ver exatamente a trajetória da bolinha sobre o plano inclinado, pois ela deixou um rastro de tinta.
— Como você descreveria o movimento desta bolinha de gude? — perguntou Alberto.
— Como um arco… aliás, o desenho se parece com a parte de um círculo.
— Exatamente!
Alberto olhou para ela e ergueu as sobrancelhas.
— Se bem que não se trata exatamente de um círculo. Esta curva se chama parábola.
— Por mim, tudo bem…
— Mas por que a bolinha de gude se movimenta exatamente assim?
Sofia pensou bem até responder:
— Ela é atraída para o chão pela gravidade, porque a prancha de madeira possui uma inclinação.
— Certo! Ora, ora, vejam só: convido uma garota para vir até o meu sótão e depois de apenas uma experiência ela já chega às mesmas conclusões de Galileu.
Alberto bateu palmas e, por um instante, Sofia teve medo de que ele tivesse perdido parte do juízo. Alberto, então, prosseguiu:
— Você viu o que acontece quando duas forças atuam simultaneamente sobre o mesmo objeto. Galileu descobriu que o mesmo vale, por exemplo, para uma bala de canhão. A bala é lançada ao ar, continua voando por algum tempo, mas acaba sendo atraída para o chão. E quando isto acontece, a bala descreve uma trajetória que corresponde àquela de nossa bolinha de gude no plano inclinado. Para a época de Galileu Galilei esta era uma descoberta realmente nova. Aristóteles acreditava que um projétil lançado ao ar descreveria a princípio um pequeno arco e depois cairia verticalmente no chão. Isto não estava certo, mas só ficou claro que Aristóteles tinha se enganado quando se conseguiu demonstrar que ele se enganara.
— Tudo bem. Mas será que tudo isto é realmente importante?
— Se é importante? Isto é de uma importância cósmica, minha cara. De todas as descobertas científicas da história da humanidade, esta é uma das mais importantes.
— Aposto como você vai me explicar por quê.
— Mais tarde apareceu o físico inglês Isaac Newton, que viveu de 1642 a 1727. Devemos a ele a descrição definitiva do sistema solar e dos movimentos dos planetas. Ele não apenas conseguiu descrever como os planetas se movimentam ao redor do Sol como também explicar exatamente por que o seu movimento é como é. E ele conseguiu isto por várias razões, inclusive pela referência a Galileu e à sua lei da inércia, à qual Newton deu uma formulação final.
— Os planetas são bolinhas de gude sobre um plano inclinado?
— Mais ou menos. Tenha um pouco mais de paciência, Sofia.
— Não tenho outra escolha mesmo…
— Kepler já havia chamado a atenção para o fato de que tinha de haver uma força que provocava a atração entre os planetas. Do Sol tinha que partir uma força que mantinha os planetas em suas órbitas. Tal força explicaria também por que os planetas se movimentam mais rapidamente nas proximidades do Sol e mais lentamente quanto é maior a distância que os separa dele. Além disso, Kepler também achava que as marés, quer dizer, a subida e a descida do nível do mar, estavam relacionadas a uma força exercida pela Lua.
— E isto está certo.
— Sim, está certo. Mas Galileu rejeitava essas idéias. Ele zombava de Kepler e de sua idéia fixa, como ele mesmo dizia, de que “a Lua governa as águas”. Galileu rejeitava a suposição de que tais forças pudessem agir a grande distância; ele duvidava que elas atuassem, portanto, entre os planetas.
— E neste ponto ele estava errado.
— Sim, neste ponto ele estava errado; o que é estranho, pois ele vinha estudando intensamente a força da gravidade da Terra e a queda dos corpos. Além disso, Galileu mostrou como várias forças podem controlar os movimentos de um corpo.
— Mas você não estava falando de Newton?
— Sim, depois veio Newton, que formulou a chamada lei da atração universal. Segundo esta lei, todo objeto atrai outro objeto com uma força que cresce proporcionalmente ao aumento do tamanho dos objetos e diminui proporcionalmente ao aumento da distância que separa os objetos.
— Acho que entendo. Entre dois elefantes, por exemplo, existe uma atração maior do que entre dois ratos. E entre dois elefantes no mesmo zoológico existe uma força de atração maior do que entre um elefante indiano que está na Índia e um elefante africano que está na África.
— Pronto. Você entendeu tudo. E agora vem o mais importante. Newton afirmou que esta atração, ou gravitação, é universal. Isto significa que ela vale para o universo inteiro, inclusive para o espaço entre os corpos celestes. Diz-se que ele chegou a esta conclusão certa vez quando estava sentado debaixo de uma macieira e viu uma maça cair da árvore. Newton se perguntou se a Lua também não seria atraída para a Terra pela mesma força, e se por isso a Lua não ficaria orbitando ao redor da Terra para sempre.
— Muito inteligente da parte dele. Se bem que nem tão inteligente assim.
— Por quê, Sofia?
— Se a Lua fosse atraída para a Terra pela mesma força que fez cair a maçã, então a Lua acabaria caindo na Terra em vez de ficar rodopiando em volta dela como um gato em torno de um prato de mingau quente.
— Bem, agora estamos próximos da lei dos movimentos dos planetas, de Newton. O que você disse acerca da atração da Terra sobre a Lua está certo e errado. Por que a Lua não cai na Terra, Sofia? A pergunta se justifica, pois a atração que a Terra exerce sobre a Lua de fato é enorme. Imagine como devem ser poderosas as forças capazes de elevar em um ou dois metros o nível do mar.
— Não… não estou entendendo.
— Pense no plano inclinado de Galileu. O que aconteceu quando empurrei a bolinha de gude no sentido da largura do plano inclinado?
— Quer dizer que são duas forças diferentes que atuam sobre a Lua?
— Exatamente. Quando o sistema solar surgiu, a Lua foi impelida com toda a força para fora de sua trajetória, o que também significa dizer para longe da Terra. Esta força continuará a atuar por toda a eternidade, pois a Lua se movimenta num vácuo em que não há qualquer resistência…
— Ao mesmo tempo, porém, ela é atraída pela gravidade da Terra.
— Exatamente. Ambas as forças são constantes e ambas atuam simultaneamente. Por isso a Lua continuará a girar em torno da Terra.
— É tudo tão simples assim?
— Sim, e esta “simplicidade” era exatamente o que Newton considerava o mais importante. Newton demonstrou também que algumas poucas leis físicas, como a lei da inércia, por exemplo, valiam para o universo inteiro. E para explicar o movimento dos planetas ele tinha usado apenas duas leis da natureza que já haviam sido mostradas por Galileu, a da inércia e aquela que vimos no plano inclinado: um corpo sobre o qual atuam simultaneamente duas forças descreve uma trajetória elíptica.
— E com isto Newton conseguiu explicar por que todos os planetas giram em torno do Sol.
— Isso mesmo. Todos os planetas descrevem órbitas elípticas ao redor do Sol e o fazem por causa de dois movimentos diferentes: em primeiro lugar, o movimento em linha reta que eles tomaram quando da criação do sistema solar e, em segundo, um movimento em direção ao Sol, devido à gravitação.
— Muito inteligente.
— Sim, muito inteligente. Newton mostrou que as mesmas leis válidas para os movimentos dos corpos também eram válidas para todo o universo. Com isto ele afastou do caminho antigas idéias medievais segundo as quais as leis “do céu” eram diferentes das da Terra. A visão heliocêntrica do mundo encontrou, assim, sua confirmação e uma explicação definitiva.
Alberto levantou-se e colocou o plano inclinado de volta na escrivaninha. Abaixou-se, pegou do chão a bolinha de gude e a colocou na mesinha de centro entre ele e Sofia. Sofia quase não conseguia acreditar o quanto tinha aprendido com uma simples bolinha de gude e um pedaço de madeira mais grosso de um lado. Quando viu a bolinha de vidro verde, que continuava um pouco manchada pelo nanquim, pensou no globo terrestre e disse:
— E as pessoas tiveram de se acostumar com a idéia de viver num planeta como outro qualquer no meio de um enorme universo?
— Sim, e em certo aspecto esta nova visão de mundo era um fardo duro de carregar. Podemos compará-lo à situação vivida pelas pessoas quando Darwin mostrou que o homem tinha evoluído a partir dos animais. Em ambos os casos, o homem perdeu um pouco da sua posição especial na criação. E em ambos os casos a Igreja opôs uma tremenda resistência.
— Dá para entender muito bem. Afinal, onde fica Deus nessa história toda? De alguma forma tudo era muito mais fácil quando a Terra estava no centro de tudo e Deus e todos os corpos celestes moravam no andar de cima.
— Mas este não foi o maior desafio. Quando Newton mostrou que as mesmas leis físicas valiam para o universo inteiro, qualquer um poderia interpretar isto como a perda da crença na onipotência de Deus. Mas a fé do próprio Newton não foi abalada. Ele considerava as leis da natureza provas da existência de um grande e poderoso Deus. Já o mesmo não se pode dizer da imagem que o homem fazia de si mesmo.
— Como assim?
— Desde o Renascimento as pessoas tiveram que se habituar à idéia de que viviam num planeta como outro qualquer, no meio de um universo enorme. Aliás, não estou bem certo se de lá para cá nós mesmos nos acostumamos com esta idéia. Mas, já na época do Renascimento, alguns diziam que o homem nunca estivera tão perto do centro como então.
— Não estou entendendo.
— Até então, a Terra tinha sido o centro do mundo. Mas quando os astrônomos explicaram que não existe um centro absoluto em todo o universo, surgiram tantos centros quantas são as pessoas.
— Entendo…
A NOVA VISÃO DE DEUS
(Páginas 231-232.)
— O Renascimento também trouxe consigo uma nova visão de Deus. Quando a filosofia e a ciência se separaram da teologia, começou a surgir paulatinamente uma nova forma de devoção, uma nova religiosidade cristã. Então veio o Renascimento com sua nova visão do homem. E isto também foi importante para a prática religiosa. Mais importante do que a relação da Igreja enquanto instituição era a relação pessoal de cada um para com Deus.
— Por exemplo, a oração pessoal feita à noite, antes de dormir?
— Sim, isto também. Na Igreja católica da Idade Média, a liturgia latina e suas orações rituais haviam sido a verdadeira espinha dorsal do serviço religioso. Somente padres e monges liam a Bíblia, pois ela só existia em latim. Contudo, durante o Renascimento, a Bíblia foi traduzida do aramaico e do grego para as línguas nacionais. E isto foi importante para a chamada Reforma…
— Martinho Lutero…
— Sim, Lutero foi muito importante, mas ele não foi o único reformador. Houve também reformadores da Igreja que, não obstante, queriam continuar atuando dentro da Igreja católica romana. Um deles foi Erasmo de Roterdã.
— Lutero rompeu com a Igreja porque não queria pagar indulgências?
— Isso também, mas se tratava de algo muito mais importante. Para Lutero, o homem não precisava tomar o atalho da Igreja ou de seus sacerdotes para conseguir o perdão de Deus. Muito menos o perdão de Deus dependia de uma soma paga à Igreja em troca de indulgência. O chamado “comércio da indulgência” foi proibido em meados do século XVI até mesmo dentro da Igreja católica.
— Uma coisa que, na certa, agradou muito a Deus.
— Lutero afastou-se dos muitos usos e princípios de fé religiosa que a Igreja desenvolvera durante a Idade Média. Ele queria voltar às origens do cristianismo, tal como lemos no Novo Testamento. “Somente as Escrituras”, dizia ele. Com esta palavra de ordem, Lutero pretendia “voltar às fontes” do cristianismo, assim como os humanistas do Renascimento queriam voltar às fontes da arte e da cultura da Antigüidade. Ele traduziu a Bíblia para o alemão, criando com isto as bases para a língua padrão alemã escrita. Cada um deveria ter acesso à leitura da Bíblia, a fim de poder ser o pastor de si mesmo, por assim dizer.
— Pastor de si mesmo? Isto não era ir longe demais?
— Lutero achava que os padres de forma alguma desfrutavam de uma relação mais privilegiada com Deus. Por motivos práticos, as comunidades luteranas empregavam padres que conduziam o serviço religioso e realizavam as tarefas cotidianas da Igreja. Mas Lutero dizia que o homem não obtinha o perdão de Deus e a libertação de seus pecados por meio dos rituais da Igreja. Para ele, a redenção era concedida ao homem de forma “inteiramente grátis”, através unicamente da fé. E ele chegara a isto com as leituras da Bíblia.
— Quer dizer que Lutero foi um típico homem do Renascimento?
— Sim e não. Um traço típico do Renascimento era a importância que ele dava ao indivíduo e à sua relação pessoal com Deus. Aos trinta e cinco anos, Lutero aprendeu grego e se lançou à exaustiva tarefa de traduzir a Bíblia para o alemão. O fato de a língua nacional substituir o latim também foi uma característica típica do Renascimento. Mas Lutero não foi um humanista como Ficino ou como Leonardo da Vinci. Alguns humanistas, como Erasmo de Roterdã, criticaram-no por sua visão demasiado negativa do homem. É que Lutero afirmava que, depois do pecado original, a humanidade estava totalmente aniquilada. Só por meio da graça de Deus é que o homem “se justificava”, dizia ele. Pois o pagamento pelos pecados é a morte.
— Isto soa um tanto triste mesmo.
— Alberto Knox levantou-se. Pegou da mesinha a bola de gude verde e preta e colocou-a no bolso da jaqueta.
— Já são mais de quatro horas! — exclamou Sofia.
— E a próxima grande época da história da humanidade é o Barroco. Mas isto nós vamos deixar para amanhã (…).
CAPÍTULO 17 (EXCERTO)
O BARROCO
(Páginas 243-251.)
(…)
Sofia olhou para Alberto. Só então percebeu que ele estava usando outra fantasia.
A primeira coisa que chamou sua atenção foi uma peruca longa, toda cacheada. Depois viu que ele usava uma roupa larga, de corte abaulado, e toda rendada. Em volta do pescoço havia um lenço de seda bem espalhafatoso e de trás do pescoço saía ainda uma capa vermelha. Nas pernas Alberto usava meias brancas e, nos pés, finos sapatos de verniz com laços. Todo aquele traje lembrava a Sofia os quadros que retratavam a corte de Luís XIV.
(…)
— Vamos nos sentar na sala, minha querida aluna. Que horas são?
— Quatro.
— Hoje vamos falar sobre o século XVII.
Os dois foram, então, até a sala que tinha o teto inclinado e a clarabóia. Sofia percebeu que Alberto trocara a posição de alguns objetos desde a última vez que ela estivera ali.
Sobre a mesa havia uma caixa antiga com uma verdadeira coleção de diferentes lentes de óculos. Ao lado da caixa havia um livro aberto. Um livro muito antigo.
— O que é isto? — perguntou ela.
— Esta é a primeira edição do Discurso do método, de René Descartes. O livro é de 1637 e é uma das minhas peças preferidas.
— E esta caixinha…
— …ela contém uma coleção exclusiva de lentes, ou vidros ópticos. Eles foram polidos em meados do século XVII pelo filósofo holandês Spinoza. Essas lentes me custaram uma pequena fortuna, mas também estão entre os meus objetos preferidos.
— Eu poderia entender melhor o valor do livro e da caixa de lentes se soubesse alguma coisa sobre Descartes e Spinoza.
— É claro. Primeiro, porém, vamos tentar entender um pouco melhor o tempo em que eles viveram. Sente-se.
— Os dois se sentaram como da última vez: Sofia numa poltrona muito confortável e Alberto Knox no sofá. Entre eles havia a mesinha, sobre a qual estavam o livro e a caixa com as lentes. Quando se sentaram, Alberto tirou a peruca e a colocou sobre a escrivaninha.
— Vamos falar sobre o século XVII, ou seja, sobre a época que costumamos chamar de período barroco.
— “Barroco” não é um nome esquisito?
— A designação “barroco” tem sua origem numa palavra que na verdade significa “pérola irregular”. Típicas para a arte do Barroco foram as formas opulentas, cheias de contrastes, bem ao contrário das formas mais despojadas e mais harmônicas da arte do Renascimento. O século XVII foi particularmente marcado pela tensão entre opostos irreconciliáveis. De um lado, continuava a existir a visão de mundo do Renascimento, otimista e de exaltação da vida; de outro, o extremo oposto desta visão também encontrava muitos adeptos, que preferiam abraçar uma vida de reclusão religiosa e negação do mundo. Tanto na arte quanto na própria vida, encontramos uma verdadeira opulência de formas expressivas. Ao mesmo tempo, observamos nos mosteiros o surgimento de movimentos cujo objetivo era o isolamento do mundo.
— Castelos imponentes e mosteiros escondidos, portanto.
— Sem dúvida você pode expressar a coisa dessa forma. Uma palavra de ordem do Barroco era o dito latino Carpe diem, que significa “Aproveita o dia de hoje!”. Outro dito latino bastante em voga foi Memento mori, que significa “Lembra-te, homem, que morrerás um dia!”. Na pintura, um mesmo quadro podia mostrar a opulência da vida levada à larga, enquanto num dos cantos inferiores aparecia retratada uma caveira. Em muitos aspectos, o Barroco foi marcado pela vaidade e pela irracionalidade. Mas também havia muitos que se preocupavam com o reverso da medalha, isto é, com a transitoriedade de todas as coisas, com o fato de que tudo o que hoje é belo ao nosso redor vai morrer e apodrecer um dia.
— E é verdade. Acho triste o pensamento de que nada dura para sempre.
— Então você pensa exatamente como o homem do século XVII. Também do ponto de vista político, o Barroco foi uma época de contrastes. De um lado, a Europa foi devastada por guerras. A pior delas foi a Guerra dos Trinta Anos, que devastou quase toda a Europa entre 1618 e 1648. Na verdade, esta guerra se constituiu de muitas guerras menores, sendo que a Alemanha foi o país que mais sofreu suas conseqüências danosas. Também em decorrência da Guerra dos Trinta Anos, a França foi se tornando pouco a pouco a potência dominante na Europa.
— E qual foi o motivo dessa guerra?
— Tratava-se basicamente de uma luta entre protestantes e católicos. Mas também havia a briga pelo poder político.
— Mais ou menos como no Líbano.
— Além disso, o século XVII foi marcado por enormes diferenças de classes. Você certamente já ouviu falar da aristocracia francesa e da corte de Versalhes. Não estou bem certo, porém, se você também já ouviu falar da miséria do povo daquela época. Sim, porque toda exibição de ostentação é também uma exibição de poder. Costuma-se dizer que a situação política do Barroco pode ser comparada com a arte e a arquitetura daquela época. As obras arquitetônicas do Barroco eram sobrecarregadas de ornamentos que ocultavam as linhas da estrutura. Um correlato disso na política seriam os assassinatos, as intrigas e as conspirações.
— Não teve um rei sueco que foi assassinado num teatro naquela época?
— Você está pensando em Gustavo III, e este é um bom exemplo para o que eu estou falando. O assassinato de Gustavo III aconteceu no ano de 1792, em condições verdadeiramente “barrocas”. Ele foi assassinado num grande baile de máscaras.
— E acho que foi num teatro.
— O baile de máscaras aconteceu na Ópera e podemos dizer que o assassinato de Gustavo III pôs um fim ao Barroco na Suécia. O reinado de Gustavo III foi marcado pelo que chamamos de despotismo esclarecido, mais ou menos como tinha sido o reinado de Luís XIV, quase um século antes. Além disso, Gustavo III era um homem extremamente vaidoso, que apreciava muito todas as cerimônias e cortesias francesas. E note que ele também adorava o teatro…
— E foi o teatro que selou o seu destino.
— Sim. Aliás, o teatro foi mais do que apenas uma forma de arte do Barroco. Ele também foi o símbolo por excelência de seu tempo.
— E o que ele simbolizava?
— A vida, Sofia. Não sei quantas vezes se disse no século XVII que “A vida é um teatro”. Foram muitas vezes. E foi precisamente durante o Barroco que surgiu o teatro moderno, com toda a sua parafernália de cenários e maquinaria. O teatro criava em cena uma ilusão, para depois desmascará-la na própria peça encenada. Assim, o teatro refletia a própria vida, mostrava que a altivez precede a decadência e representava a mesquinhez humana de forma impiedosa.
— William Shakespeare também viveu no Barroco?
— Sim. Shakespeare escreveu suas grandes peças por volta de 1600, o que o coloca com um pé no Renascimento e outro no Barroco. Mas já em Shakespeare encontramos muitas citações que reforçam esta idéia de que a vida é um teatro. Você quer ouvir algumas?
— Quero sim.
— Na peça Como gostais, ele diz:
O mundo é um palco, e homens e mulheres, não mais que meros atores. Entram e saem de cena e durante a sua vida não fazem mais do que desempenhar alguns papéis.
E em Macbeth lemos:
A vida é uma sombra errante;
Um pobre comediante, que se pavoneia
No breve instante que lhe reserva a cena,
Para depois não ser mais ouvido.
É um conto de fadas, que nada significa,
Narrado por um idiota, cheio de voz e fúria.
— Isto é muito pessimista.
— É que Shakespeare estava preocupado com a brevidade da vida. Talvez você já tenha ouvido a mais célebre citação de Shakespeare…
— Ser ou não ser, eis a questão.
— Sim, foi Hamlet quem disse isso. Hoje estamos por aqui e amanhã poderemos não estar.
— Obrigada pela explicação, mas a mensagem foi clara.
— E quando não comparavam a vida com um teatro, os poetas do Barroco a comparavam com um sonho. Assim, por exemplo, Shakespeare disse: “Somos feitos da mesma matéria que compõe os sonhos, e nossa breve vida está envolta em sono…”.
— Que poético…
— O poeta dramático espanhol Calderón de la Barca, que nasceu por volta de 1600, escreveu uma peça de teatro intitulada A vida é sonho. Nela ele diz: “O que é a vida? Fúria! O que é a vida? Espuma oca! Um poema, uma sombra quase! E a sorte não pode dar senão pouco: pois a vida é sonho e os sonhos, sonho…”.
— Talvez ele tenha razão. Na escola a gente leu a peça Jeppe vom Berge.
— De Ludvig Holberg. Sim, um autor da transição entre o Barroco e o Iluminismo muito importante aqui no Norte.
— Jeppe adormece na vala de uma estrada… e acorda na cama de um barão. Quando acorda, acha que sonhou que um dia foi um pobre e grosseiro camponês. Depois, é carregado de volta para a vala enquanto dorme. Desta vez, quando acorda, acha que sonhou que esteve deitado na cama de um barão.
— Holberg buscou inspiração em Calderón de la Barca, que, por sua vez, foi buscar inspiração para sua peça nos contos árabes das Mil e uma noites. Mas a comparação da vida com um sonho é um tema cujas raízes remontam a um passado longínquo e se estendem até a Índia e a China. O antigo sábio chinês Chuang-Tsu (350 a.C., aproximadamente) sonhou certa vez que era uma borboleta. Quando acordou, Chuang-Tsu se perguntou se era um homem que tinha sonhado que era uma borboleta ou era uma borboleta que agora estava sonhando que era um homem.
— Nesse caso fica difícil provar qual das opções está correta.
— Na Noruega tivemos um genuíno poeta barroco chamado Petter Dass, que viveu de 1647 a 1707. De um lado, ele queria retratar a vida aqui e agora; de outro, dizia que só Deus era eterno e constante.
— Deus é Deus, fosse erma toda a Terra, Deus é Deus, estivessem mortos todos os homens…
— No mesmo coral, porém, ele também fala da cultura do Norte da Noruega e faz referência ao salmão, ao badejo e ao bacalhau, entre outras coisas. Um recurso típico do Barroco. Num mesmo texto fala-se de coisas terrenas, quer dizer, “do lado de cá”, e de coisas celestiais, ou seja, “do lado de lá”. Tudo isto nos faz lembrar da divisão que Platão estabeleceu entre o mundo dos sentidos, concreto, e o mundo das idéias, imutável.
— E a filosofia?
— Também ela foi marcada por lutas acirradas entre modos de pensar contraditórios. Como já vimos, alguns filósofos consideravam a existência algo de natureza fundamentalmente anímica ou espiritual. Chamamos este ponto de vista de idealismo. O ponto de vista oposto se chama materialismo e designa uma filosofia que explica todos os fenômenos da existência a partir de grandezas concretas, materiais. No século XVII, o materialismo também teve muitos defensores. O de maior influência talvez tenha sido o filósofo inglês Thomas Hobbes. Ele dizia que todos os fenômenos – o que inclui homens e animais, portanto – se compunham exclusivamente de partículas materiais. Até mesmo a consciência, ou a alma, humana teria sua origem no movimento de minúsculas partículas cerebrais.
— Então ele achava a mesma coisa que Demócrito, que viveu dois mil anos antes dele.
— Idealismo e materialismo são duas constantes que atravessam toda a história da filosofia. Só que raríssimas vezes esses dois pontos de vista apareceram de forma tão flagrante num mesmo período quanto no Barroco. O materialismo foi amplamente nutrido pela nova ciência natural. Newton havia chamado a atenção para o fato de as mesmas leis do movimento valerem para todo o universo. Além disso, ele atribuiu à lei da gravidade e do movimento dos corpos todas as transformações da natureza, tanto na Terra quanto no espaço. Tudo seria determinado, portanto, pelas mesmas e imutáveis leis, ou seja, pela mesma mecânica. Em princípio, portanto, podemos calcular cada transformação da natureza com precisão matemática. Com isto, Newton colocou a última pedra no alicerce da chamada visão mecanicista do mundo.
— Ele imaginava o mundo como sendo uma grande máquina?
— Exatamente. A palavra “mecanismo” vem do grego méchané, que significa máquina. Contudo, é bom notar que nem Hobbes, nem Newton viam uma contradição entre a visão mecânica do mundo e a crença em Deus. O mesmo não se pode dizer de todos os materialistas dos séculos XVIII e XIX. Em meados do século XVII, aproximadamente, o médico e filósofo francês Lamettrie escreveu um livro intitulado L’homme plus que machine, que significa “O homem: máquina perfeita”. Ele escreveu que assim como as pernas possuem músculos para andar, também o cérebro possuiria “músculos” para pensar. Mais tarde, o matemático francês Laplace levou ao extremo a acepção mecânica com o seguinte pensamento: se uma inteligência pudesse saber a posição de todas as partículas de matéria em dado momento, todas as nossas dúvidas se dissipariam e o futuro e o passado se descortinariam diante de nossos olhos. A idéia por trás disso é a de que tudo o que vai acontecer “já está escrito”. Esta visão de mundo é chamada de determinista.
— Quer dizer que o homem não possui livre-arbítrio?
— Não. Tudo isto é produto de processos mecânicos, inclusive nossos pensamentos e sonhos. No século XIX, materialistas alemães afirmavam que os pensamentos estavam para o cérebro assim como a urina estava para os rins e a bílis para o fígado.
— Mas urina e bílis são duas coisas concretas. Os pensamentos não.
— Observação importante. Vou lhe contar uma história que expressa a mesma coisa. Certa vez, um cosmonauta e um neurologista russos discutiam sobre religião. O neurologista era cristão, e o cosmonauta não. “Já estive várias vezes no espaço”, gabou-se o cosmonauta, “e nunca vi nem Deus, nem anjos”. “E eu já operei muitos cérebros inteligentes”, respondeu o neurologista, “e também nunca achei um único pensamento”.
— O que não significa que os pensamentos não existam.
— Exatamente. A anedota apenas mostra que os pensamentos são algo completamente diferente de tudo o que se possa amputar ou dividir em partes menores. Por exemplo, não é nada fácil eliminar cirurgicamente uma delusão. De certa forma, ela é profunda demais para ser removida dessa forma. Um importante filósofo do século XVII, Leibniz, disse que a grande diferença entre tudo o que é feito de matéria e tudo o que é feito de espírito está no fato de que o material pode ser decomposto em unidades cada vez menores, ao passo que a alma não pode ser cortada em pedaços.
— É verdade… que tipo de faca a gente usaria para isto?
Alberto se limitou a fazer um gesto com a cabeça. Então apontou para a mesinha que estava entre eles e disse:
— Os dois filósofos mais importantes do século XVII foram Descartes e Spinoza. Também eles dedicaram sua reflexão a questões tais como a relação entre alma e corpo. Vamos ver um pouco mais em detalhe esses dois filósofos.
— Vamos lá. Mas se não terminarmos até as sete horas, preciso ligar para a minha mãe.
CAPÍTULO 18 (EXCERTO)
DESCARTES
(Páginas 252-262.)
Alberto levantou-se, tirou a capa vermelha, colocou-a sobre uma cadeira e acomodou-se novamente no sofá.
— René Descartes nasceu em 1596 e durante toda a sua vida viajou muito pela Europa. Ainda jovem, ele manifestou o desejo fervoroso de conhecer a natureza do homem e do universo. Mas, depois de estudar filosofia, conscientizou-se sobretudo de sua própria ignorância.
— Mais ou menos como Sócrates?
— Mais ou menos. Também como Sócrates, ele estava convencido de que a razão era o único meio de se chegar a um conhecimento seguro. Não devemos confiar no que lemos em livros antigos e não podemos confiar sequer no que os nossos sentidos nos dizem.
— Platão também achava a mesma coisa. Ele dizia que só por meio da razão podíamos chegar a um conhecimento seguro.
— Exatamente. De Sócrates e Platão parte uma linha direta até Descartes, passando por santo Agostinho. Todos eles eram racionalistas convictos. Para eles, a razão era a única fonte segura de conhecimento. Depois de muito estudar, Descartes chegou à conclusão de que não podia confiar muito no conhecimento herdado da Idade Média. Nesse sentido, talvez possamos compará-lo a Sócrates, que não confiava nas idéias amplamente difundidas em sua época pelas ruas de Atenas. O que fazer num caso desses, Sofia? Você pode me dizer?
— A gente tem de começar a criar a sua própria filosofia.
— Exatamente. Descartes decidiu percorrer toda a Europa, assim como Sócrates, em sua época, passou a vida conversando com as pessoas em Atenas. O próprio Descartes conta que seu objetivo passou a ser a procura por um conhecimento que ele podia encontrar dentro de si mesmo ou “no grande livro do mundo”. Por esta razão, entrou para o exército e, assim, pôde prestar seus serviços em diferentes pontos da Europa central. Mais tarde, passou alguns anos em Paris. Em maio de 1629, viajou para a Holanda, onde viveu por quase vinte anos enquanto trabalhava em seus escritos filosóficos. Em 1649, a rainha Cristina convidou-o para ir à Suécia. Mas a estadia em Estocolmo lhe trouxe uma pneumonia, que o acabou matando no inverno de 1650.
— Então ele só tinha cinqüenta e quatro anos quando morreu!
— Sim. Só que mesmo depois de sua morte ele continuou a ser uma figura de grande importância para a filosofia. Sem exagero, podemos dizer que Descartes foi o fundador da filosofia dos novos tempos. Após a inebriante redescoberta do homem e da natureza no Renascimento, a necessidade de se reunirem os pensamentos contemporâneos num único e coerente sistema filosófico voltou a se apresentar. O primeiro grande construtor desse sistema foi Descartes, e a ele seguiram-se Spinoza e Leibniz, Locke e Berkeley, Hume e Kant.
— O que você entende por “sistema filosófico”?
— Por sistema filosófico entendo uma filosofia de base, cujo objetivo é encontrar respostas para todas as questões filosóficas importantes. A Antigüidade teve grandes construtores de sistemas como Platão e Aristóteles. A Idade Média teve são Tomás de Aquino, que se dedicou à tarefa de construir uma ponte entre a filosofia de Aristóteles e a teologia cristã. Depois veio o Renascimento, com uma verdadeira confusão de pensamentos novos e velhos sobre a natureza e a ciência, sobre Deus e o homem. Somente no século XVII é que a filosofia tentou reacomodar os novos pensamentos num sistema filosófico. O primeiro a fazer esta tentativa foi Descartes. Ele deu o pontapé inicial naquilo que se tornaria o mais importante projeto filosófico para as gerações seguintes. A primeira coisa com a qual ele se preocupou foi com aquilo que já sabemos, isto é, com a questão de saber se nossos conhecimentos eram realmente seguros. A segunda questão que mais lhe ocupou a atenção foi a relação entre o corpo e a alma. Essas duas problemáticas viriam ocupar a discussão filosófica dos próximos cento e cinqüenta anos.
— Então ele foi um homem à frente de seu tempo.
— Sim, se bem que essas questões já pairavam no ar, por assim dizer, na época em que ele viveu. No que se refere à questão de como podemos obter um conhecimento seguro, muitos expressavam o seu total ceticismo filosófico. Para estes céticos, o homem simplesmente tinha de se habituar com a idéia de não saber nada. Mas Descartes não se conformava com isto. Aliás, se tivesse se conformado, não teria sido um filósofo de verdade. Novamente podemos traçar aqui um paralelo com Sócrates, que nunca se deu por satisfeito com o ceticismo dos sofistas. Precisamente na época em que Descartes viveu, a nova ciência natural tinha desenvolvido um método que, a seu ver, levava a uma descrição exata e muito confiável dos processos da natureza. Descartes perguntou-se, então, se não haveria um método igualmente exato e seguro para a reflexão filosófica.
— Entendo.
— Mas este era apenas um problema. A nova física também tinha colocado a questão da natureza da matéria, isto é, a questão de saber o que determina os processos físicos na natureza. Mais e mais pessoas defendiam uma compreensão materialista da natureza. E quanto mais mecanicista era a compreensão do mundo físico, mais urgente se tornava a questão da relação entre corpo e alma. Até o século XVII, a alma tinha sido descrita, de modo geral, como uma espécie de “espírito vital”, presente em todos os seres vivos. Aliás, o sentido original de “alma” e “espírito” também era o de um “sopro de vida”. Isto vale para quase todas as línguas indo-européias. Aristóteles considerava a alma algo que existe em todo o organismo como “princípio vital” desse organismo, sendo impossível, portanto, concebê-la fora do corpo. Assim, ele podia falar de uma “alma vegetal” e de uma “alma animal”. Somente no século XVII é que os filósofos introduziram uma separação radical entre corpo e alma. E isto porque todos os objetos físicos, inclusive o corpo do homem e do animal, eram explicados como um processo mecânico. Mas a alma humana não poderia fazer parte desta “maquinaria do corpo”, poderia? E o que era ela, então? Para completar, faltava explicar como algo “espiritual” era capaz de colocar em marcha um processo mecânico.
— De fato, este é um pensamento muito estranho.
— O que você quer dizer?
— Se decido erguer o meu braço, o meu braço se ergue. Se decido correr até o ônibus, no momento seguinte minhas pernas parecem ter se multiplicado por dez. Às vezes penso em algo triste, e logo me vêm as lágrimas. Tem de haver, portanto, alguma relação misteriosa entre o corpo e a consciência.
— Exatamente este problema é que levou Descartes a refletir. Como Platão, ele estava convencido de que havia uma divisão rígida entre espírito e matéria. Mas Platão não foi capaz de responder como o espírito, ou a alma, influenciava o corpo.
— Eu também não, e por isso estou curiosa para saber o que Descartes descobriu.
— Vamos acompanhar suas próprias reflexões.
Alberto apontou para o livro que estava entre eles sobre a mesinha e prosseguiu:
— Neste pequeno livro, Discurso do método, Descartes levanta a questão de saber que método filosófico um filósofo deve usar para resolver um problema filosófico. A ciência natural já tinha desenvolvido seu novo método…
— Você já disse isso.
— Primeiro, Descartes explica que não devemos considerar nada verdadeiro, enquanto nós mesmos não tivermos reconhecido claramente que se trata de algo verdadeiro. Para conseguirmos isto, temos de decompor um problema complicado em tantas partes isoladas quanto possível. E então podemos começar pelos pensamentos mais simples. Podemos dizer que cada pensamento deve ser “pesado e medido”, mais ou menos como Galileu queria medir tudo e transformar em mensurável o que fosse incomensurável. Descartes acreditava que o filósofo, para construir um novo conhecimento, devia partir dos aspectos mais simples para chegar aos mais complicados. Por fim, ele deveria testar através de cálculos e mais cálculos se nada tinha sido deixado de fora. Só assim, acreditava Descartes, se poderia chegar a conclusões filosóficas.
— Isto me soa como uma tarefa matemática.
— Sim. Descartes queria aplicar o “método matemático” à reflexão filosófica. Ele queria provar as verdades filosóficas mais ou menos como se prova um princípio da matemática, empregando para tanto a mesma ferramenta que usamos no trabalho com números: a razão. A razão é a única coisa capaz de nos levar a um conhecimento seguro, pois nada nos garante que nossos sentidos são confiáveis. Já mencionamos o parentesco entre Descartes e Platão. Pois bem: Platão também afirmara que a matemática e as relações numéricas nos levam a um conhecimento mais seguro do que aquilo que nos dizem os nossos sentidos.
— Mas é possível responder desse jeito a perguntas filosóficas?
— Vamos voltar ao raciocínio do próprio Descartes. Seu objetivo é, portanto, chegar a um conhecimento seguro sobre a natureza da vida e a primeira coisa que ele afirma é que nosso ponto de partida deve ser duvidar de tudo. Isto porque, como vimos, ele não queria construir seu sistema filosófico sobre solo arenoso.
— Sim, pois na areia o alicerce cede e toda a casa pode cair.
— Obrigado pela observação, Sofia. Bem, Descartes não achava certo duvidar de tudo, mas achava que em princípio podíamos duvidar de tudo. Afinal, o fato de lermos Aristóteles ou Platão não significa necessariamente um avanço em nossa busca filosófica. Talvez a leitura desses dois filósofos nos ajude a ampliar nosso conhecimento da história, mas não necessariamente do mundo. Com o perdão do trocadilho, Descartes achava importante descartar primeiro todo o conhecimento constituído antes dele, para só então começar a trabalhar em seu projeto filosófico.
— Ele queria limpar o terreno dos velhos materiais, antes de começar a construir a nova casa, não é?
— Sim, e para ter certeza de que o novo edifício de idéias se sustentaria, ele só queria empregar materiais novos e sólidos. Mas as dúvidas de Descartes iam mais fundo ainda. Ele achava que não podíamos confiar nem mesmo no que nos diziam os nossos sentidos. Afinal, podia muito bem ser que eles nos enganassem o tempo todo.
— Como isto pode ser possível?
— Mesmo quando sonhamos, acreditamos viver algo de real. E existe alguma coisa que marque a diferença entre as sensações que experimentamos no sonho das que vivemos quando estamos acordados? “Quando penso com cuidado no assunto, não encontro uma única característica capaz de marcar a diferença entre o estado acordado e o sonho”, escreve Descartes. E prossegue: “Tanto eles se parecem, que fico completamente perplexo e não sei se estou sonhando neste momento”.
— Jeppe vom Berge também acreditava ter sonhado que dormira na cama de um barão.
— E quando estava na cama do barão achava que sua vida como pobre camponês não passava de um sonho. É por isso que Descartes acaba duvidando de tudo. Antes dele, muitos outros filósofos tinham chegado ao fim de suas observações filosóficas exatamente neste ponto.
— O que significa que eles não foram muito longe.
— Descartes, porém, estabeleceu este ponto como o marco zero para a sua reflexão. Ele chegou à conclusão de que a única coisa sobre a qual podia ter certeza era a de que duvidava de tudo. E foi então que compreendeu o seguinte: se havia um fato de que ele podia ter certeza, este fato era o de que ele duvidava de tudo. Se ele duvidava, isto significava que ele pensava. E se ele pensava, isto significava que ele era um ser pensante. Ou, como ele mesmo dizia: “Cogito, ergo sum”.
— E o que significa isto?
— Penso, logo existo.
— Não me surpreende nada que ele tenha chegado a esta conclusão.
— Pode ser. Mas note bem com que certeza intuitiva ele de repente se percebe como um ser pensante. Talvez você ainda se lembre de que Platão considerava mais real a existência daquilo que percebemos com nossa razão do que daquilo que percebemos com nossos sentidos. Para Descartes era a mesma coisa. Ele não apenas entende que é um Eu pensante, mas entende, ao mesmo tempo, que este Eu pensante é mais real do que o mundo físico que percebemos através de nossos sentidos. E a partir daí ele vai mais adiante, Sofia. Descartes está longe de concluir sua pesquisa filosófica.
— Então vamos continuar…
— Descartes pergunta-se, então, se esta mesma certeza intuitiva pode levá-lo a saber mais do que o fato de que é um ser pensante. Ele reconhece que também possui uma clara e nítida idéia do que seja um ser perfeito. Trata-se de uma idéia que ele sempre teve e para Descartes é evidente que tal noção não poderia vir dele próprio. Descartes afirmava que a noção do que fosse um ser perfeito não poderia brotar espontaneamente de um ser imperfeito. Assim, a noção de um ser perfeito tinha de vir, naturalmente, de outro ser perfeito. Em outras palavras: tinha de vir de Deus. Para Descartes, portanto, a existência de Deus é algo tão evidente quanto o fato de que alguém que pensa é um ser, um Eu pensante.
— Acho que agora ele está sendo um pouco precipitado ao tirar suas conclusões. Ele que, no começo, tinha sido tão cuidadoso!
— É verdade. Muitos chegaram mesmo a apontar isto como sendo justamente o ponto mais fraco de Descartes. Mas você disse “conclusões”. Na verdade, não se trata aqui se provar coisa alguma. Descartes está dizendo apenas que todos nós temos uma idéia do que seja um ser perfeito e que nesta própria idéia está embutido o fato de que este ser perfeito deve existir. Pois um ser perfeito não seria perfeito se não existisse. Além disso, não teríamos uma idéia do que seja um ser perfeito se tal ser não existisse. Isto porque somos imperfeitos e, por isso, a idéia de perfeição não pode brotar de nós mesmos assim, espontaneamente. A idéia de um Deus é, segundo Descartes, uma idéia inata, que nos é “plantada”, por assim dizer, no momento em que nascemos, “como a marca que o artista coloca em sua obra”, conforme ele mesmo escreve.
— Mas mesmo que eu tenha uma idéia do que possa ser um crocofante, isto não significa que existam crocofantes.
— Descartes teria dito que a existência de um crocofante não é inerente ao conceito “crocofante”, ao passo que a existência de um ser “perfeito” é inerente ao conceito de “ser perfeito”. Para Descartes, isto é tão certo quanto é inerente à própria idéia de um círculo o fato de todos os pontos deste círculo estarem à mesma distância de seu centro. Você não pode estar falando de um círculo, portanto, se a figura sobre a qual você fala não atender a esta premissa. Da mesma forma, você não pode falar de um ser perfeito se a ele falta a mais importante de todas as características: a existência.
— Mas esta é uma forma muito especial de pensar.
— Esta é uma forma de pensar marcadamente “racionalista”. Como Sócrates e Platão, Descartes via uma relação entre o pensamento e a existência. Quanto mais evidente uma coisa é para o pensamento, tanto mais certo é o fato de ela existir.
— Bem, até agora ele reconheceu que é um ser pensante e que existe um ser perfeito.
— E a partir daí ele prossegue. Todas as noções que temos da realidade exterior, como o Sol e a Lua, por exemplo, poderiam não passar de imagens oníricas. Mas a realidade exterior também possui características que podemos conhecer por meio de nossa razão. Por exemplo, as relações matemáticas, ou seja, o que pode ser medido: comprimento, largura e profundidade. Essas propriedades quantitativas são tão evidentes para a razão quanto o fato de que sou um ser pensante. Já as propriedades qualitativas, tais como cor, odor e sabor, estão relacionadas aos nossos sentidos e não descrevem, na verdade, uma realidade exterior.
— Quer dizer que a natureza não passa de um sonho?
— Não, e neste ponto Descartes retoma nossa idéia de um ser perfeito. Quando nossa razão reconhece alguma coisa com clareza e nitidez, isto significa que a coisa reconhecida corresponde exatamente à forma como nossa razão a percebeu. Pois um Deus perfeito não iria querer nos pregar peças. Descartes invoca a “garantia de Deus” para o fato de que tudo aquilo que reconhecemos por meio de nossa razão corresponde a uma realidade.
— Muito bem. Então ele já chegou à conclusão de que é um ser pensante, de que Deus existe e de que também existe uma realidade exterior.
— Só que entre a realidade exterior e a realidade dos pensamentos existe uma diferença fundamental. Descartes pode, então, tomar como ponto de partida o fato de que existem duas formas distintas de realidade, ou duas substâncias. A primeira substância é o pensamento, ou a alma, a outra é a extensão, ou a matéria. A alma é consciência pura, não ocupa lugar no espaço e, portanto, não pode ser decomposta em unidades menores. A matéria, ao contrário, é só extensão, ocupa lugar no espaço e pode por isso ser decomposta em partes menores, mas não possui consciência. Descartes diz que ambas as substâncias provêm de Deus, pois só Deus existe independentemente de qualquer outra coisa. Mas ainda que pensamento e extensão provenham de Deus, trata-se de duas substâncias completamente independentes uma da outra. O pensamento é livre na sua relação com a matéria, e vice-versa: os processos materiais também operam de forma totalmente independente.
— E assim a criação de Deus foi dividida por dois.
— Exatamente. Chamamos Descartes de dualista, o que significa que ele estabelece uma nítida linha divisória entre a realidade material e a espiritual. Por exemplo, só o homem tem uma alma. Os animais pertencem completamente à realidade material. Sua vida e seus movimentos são absolutamente mecânicos. Descartes considerava os animais uma espécie de máquinas complicadas. Também no que se refere à realidade material, portanto, sua noção de realidade era absolutamente mecanicista. Exatamente como os materialistas.
— Duvido muito que Hermes não passe de uma máquina ou de uma espécie de robô. Certamente Descartes não gostou nunca de um animal. E nós? Também nós somos autômatos?
— Sim e não. Descartes chegou à conclusão de que o homem é um ser dual, que tanto pensa quanto ocupa lugar no espaço. O homem possui, portanto, uma alma e um corpo físico. Santo Agostinho e são Tomás de Aquino já haviam formulado algo parecido. Eles acreditavam que o homem possuía um corpo, como os animais, mas também um espírito, como os anjos. Descartes considerava o corpo humano o resultado de uma mecânica arrojada. Tecnologia de ponta, como diríamos hoje. Mas o homem possui também uma alma capaz de operar independentemente de seu corpo. Os processos do corpo não possuem tal liberdade, pois obedecem às suas próprias leis. Mas aquilo que percebemos com nossa razão não acontece no corpo, e sim na alma, na mente, independentemente da realidade material. Talvez eu deva acrescentar ainda que Descartes não excluía a idéia de que os animais pudessem pensar. Só que, se é verdade que eles possuem esta faculdade, então vale para eles a mesma divisão entre pensamento e extensão.
— Já conversamos sobre isso. Quando decido correr até o ônibus, toda a “máquina” se põe em movimento. E se apesar disso perco o ônibus, começo a chorar.
— Nem mesmo Descartes podia contestar o fato de que quase sempre ocorre uma interação entre alma e corpo. Para ele, enquanto a alma habita o corpo ela está ligada a ele por um órgão muito especial, uma glândula localizada no cérebro, dentro da qual ocorre esta constante interação entre espírito e matéria. Assim, para Descartes, a alma era constantemente perturbada por sentimentos e sensações que tinham a ver com as necessidades do corpo. Mas o objetivo deve ser entregar à alma o controle de tudo, pois, independentemente de serem fortes minhas dores de barriga, a soma dos ângulos de um triângulo será sempre de 180º. Desta forma, o pensamento pode se elevar para além das necessidades do corpo e se comportar “racionalmente”. Deste ponto de vista, a alma é totalmente independente do corpo. Nossas pernas podem envelhecer e se tornar fracas, nossas costas podem se curvar e nossos dentes começar a cair, mas a soma de dois mais dois será sempre quatro, enquanto em nós restar um lampejo de razão. Pois a razão não envelhece nem se debilita. Nosso corpo, ao contrário, sim. Para Descartes, a alma é a própria razão. Os afetos e sensações menos elevados, tais como desejo e ódio, estão intimamente ligados às funções do corpo e, portanto, a uma realidade material.
— Não consigo aceitar com facilidade o fato de Descartes comparar o corpo com uma máquina ou com um autômato.
— O motivo desta comparação é o fato de que na época de Descartes as pessoas estavam totalmente fascinadas pelas máquinas e pelas engrenagens dos relógios, que pareciam funcionar sozinhos. A palavra “autômato” designa exatamente alguma coisa que se movimenta por si mesma. Só que é claro que o fato de elas funcionarem por si mesmas não passava de uma ilusão. Um relógio astronômico, por exemplo, é construído e recebe corda das mãos do homem. Descartes dizia que tais aparelhos artificiais eram constituídos simplesmente por algumas poucas peças, se comparados com a quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias e veias de que se compõe o corpo de homens e animais. Por que, então, Deus não seria capaz de construir o corpo de homens e animais com base em leis mecânicas?
— Hoje em dias muitas pessoas falam da “inteligência artificial”.
— Sim, elas estão pensando nos autômatos de nossa época. Construímos máquinas que às vezes realmente nos convencem de sua inteligência. Tais máquinas certamente teriam colocado em pânico o nosso Descartes. Talvez ele tivesse se perguntado se a razão humana seria realmente tão livre e independente quanto ele pensava. Pois há filósofos que consideram a vida da alma humana tão pouco livre quanto os processos do corpo. É claro que a alma de uma pessoa é infinitamente mais complicada do que qualquer programa de computador, mas há os que acham que em princípio somos tão dependentes quanto tais programas.
CAPÍTULO 19 (EXCERTO)
SPINOZA
(Páginas 266-274.)
Ficaram um bom tempo sentados, sem dizer nada. Por fim, para desviar os pensamentos de Alberto para outro assunto, Sofia disse:
— Descartes deve ter sido um homem singular. Ele ficou famoso em sua época?
Alberto respirou fundo umas duas vezes antes de responder:
— Aos poucos ele foi se tornando uma pessoa de grande influência. Mas o mais importante talvez tenha sido a sua influência sobre outro grande filósofo. Estou me referindo ao filósofo holandês Baruch Spinoza, que viveu de 1632 a 1677.
— Você não quer me falar sobre ele?
— Era esta a minha intenção. (…)
— Sou toda ouvidos.
— Spinoza pertencia à comunidade judaica de Amsterdã, mas não levou muito tempo até que fosse excomungado por heresia. Poucos filósofos dos tempos modernos foram tão humilhados e perseguidos por suas idéias como este homem. Ele chegou até a sofrer uma tentativa de assassinato. E tudo porque Spinoza criticava a religião oficial. Ele achava que os dogmas rígidos e os rituais vazios eram as únicas coisas que ainda mantinham o cristianismo e o judaísmo vivos. Spinoza foi o primeiro a aplicar o que chamamos de interpretação “histórico-crítica” da Bíblia.
— Explique melhor.
— Spinoza contestava o fato de que cada palavra da Bíblia fosse inspirada por Deus. Ele dizia que quando lemos a Bíblia temos de ter em mente a época em que ela foi escrita. Esta leitura “crítica” nos permite reconhecer uma série de contradições entre os diferentes livros e evangelhos. Sob a superfície do texto do Novo Testamento encontramos Jesus, que poderíamos chamar de porta-voz de Deus. Pois bem, os próprios ensinamentos de Jesus já significavam uma libertação da rigidez do judaísmo. Jesus anunciou uma “religião da razão”, para a qual o amor era o princípio maior. Nesse sentido, Spinoza está pensando tanto no amor a Deus quanto no amor aos nossos semelhantes. Só que o cristianismo também acabou se enrijecendo, e rapidamente, em dogmas empedernidos e em rituais vazios.
— Posso muito bem imaginar o quanto era difícil para as igrejas e as sinagogas engolir essas críticas.
— À medida que a coisa foi piorando, Spinoza foi abandonado até por seus próprios familiares, que queriam deserdá-lo por causa de sua heresia. O paradoxo maior nisso tudo era o fato de que poucos haviam defendido a liberdade de opinião e a tolerância religiosa de forma tão enérgica quanto o próprio Spinoza. As muitas resistências que ele teve de vencer levaram-no finalmente a se recolher a uma vida discreta, modesta, totalmente dedicada à filosofia. Ele ganhava o seu pão polindo lentes ópticas. Algumas delas, como eu já disse, vieram parar em meu poder.
— Impressionante…
— O fato de ele viver de polir lentes ópticas tem um significado quase simbólico. É que a tarefa dos filósofos é justamente ajudar as pessoas a verem sua vida sob uma nova perspectiva. E fundamental para a filosofia de Spinoza é o desejo de enxergar as coisas da “perspectiva da eternidade”.
— Do ponto de vista da eternidade?
— Sim, Sofia. Você acha que conseguiria ver a sua própria vida inserida num contexto cósmico? Para tanto você precisaria enxergar-se a si mesma, e à sua própria vida, de olhos fechados…
— Hum… não é nada fácil.
— Pense que você é apenas uma minúscula parte de toda a vida da natureza. Pense que você está inserida num emaranhado de relações extremamente grande e complexo.
— Acho que entendo o que você quer dizer.
— Será que você também conseguiria sentir o que estou querendo dizer? Você é capaz de perceber a natureza toda de uma só vez, o universo inteiro, num só piscar de olhos?
— Depende. Talvez eu precise de algumas lentes ópticas.
— E eu não estou pensando aqui apenas no universo infinito. Estou pensando também num tempo infinito. Há três mil anos viveu um menino na Renânia. Ele era apenas uma ínfima parte de toda a natureza, uma pequenina onda num mar infinitamente grande. Muito bem, Sofia, você também é uma ínfima parte da natureza e entre você e este menino não há diferença alguma.
— Só que eu ainda estou viva.
— Sim, mas é exatamente por isso que você precisa saber enxergar de olhos fechados. O que será de você daqui a três mil anos?
— Dizer isto era considerado heresia?
— Bem… Spinoza não disse apenas que tudo o que existe é a natureza. Ele também via Deus em tudo o que existe e tudo o que existe em Deus.
— Quer dizer que ele era panteísta.
— Correto. Para Spinoza, Deus não é alguém que criou o mundo um dia e desde então é uma entidade à parte de sua criação. Não. Deus é o mundo. Às vezes Spinoza se expressa de uma forma um pouco diferente e diz que o mundo é em Deus. Aqui ele faz referência ao discurso do apóstolo Paulo no Areópago: “porque nele vivemos, nos movemos e existimos”, disse Paulo. Mas vamos acompanhar o raciocínio do próprio Spinoza. Sua obra mais importante se chama A ética fundamentada pelo método geométrico.
— Ética… e método geométrico?
— Isto talvez soe um pouco estranho aos nossos ouvidos. Os filósofos entendem por ética a doutrina de como devemos viver para vivermos uma boa vida. É neste sentido que falamos, por exemplo, da ética de Sócrates ou de Aristóteles. Só em nossa época é que a ética foi reduzida, de certo modo, a algumas regras, a partir das quais podemos viver sem pisar no pé de nossos semelhantes.
— Isto porque pensar na sua própria felicidade é visto como egoísmo?
— Mais ou menos. Quando Spinoza emprega a palavra ética, na verdade ele está se referindo tanto à arte de viver quanto à moral.
— Mesmo assim não é estranho falar da “arte de viver fundamentada pelo método geométrico”?
— O método geométrico refere-se à linguagem ou à forma de representação. Você já aprendeu que Descartes também quis empregar o método matemático à reflexão filosófica. E o que ele entendia por isto era uma reflexão filosófica construída sobre a base de conclusões rigorosamente lógicas. Spinoza está dentro da mesma tradição racionalista. Em sua ética ele pretendeu mostrar que a vida do homem é governada pelas leis da natureza. Para ele, o homem precisa se libertar de seus sentimentos e sensações, para só então poder encontrar a paz e ser feliz.
— Mas nós não somos governados apenas pelas leis da natureza, somos?
— Bem, não é muito fácil mesmo entender Spinoza. Você lembra que Descartes disse que a realidade era constituída de duas substâncias rigidamente separadas uma da outra: o pensamento e a extensão.
— Como eu poderia me esquecer disso?
— A palavra “substância” pode ser entendida como aquilo de que se compõe uma coisa, aquilo que esta coisa é em sua essência, ou então aquilo a que ela pode ser atribuída. Para ele, tudo era ou pensamento, ou extensão.
— Não precisa repetir.
— Mas Spinoza não aceitava esta divisão. Ele achava que havia uma única substância. Para ele, tudo o que é pode ser atribuído a uma mesma e única coisa. E esta “mesma e única coisa”, ele a chamava simplesmente de substância. Em outras passagens ele também a chama de “Deus” ou de “natureza”. Ao contrário de Descartes, portanto, Spinoza não tinha uma concepção dualística da realidade. Por isso ele é chamado de monista, e isto significa que ele atribuía toda a natureza e todas as relações de vida a uma mesma e única substância.
— Os dois não poderiam ter discordado mais…
— Só que a diferença entre Descartes e Spinoza não é tão grande quanto freqüentemente se costuma afirmar. Descartes também chama a atenção para o fato de somente Deus ter o poder de existir por si mesmo. Só quando Spinoza iguala Deus à natureza, ou Deus à Sua criação, é que ele se afasta consideravelmente de Descartes e também das concepções judaicas e cristãs.
— Pois neste caso a natureza é Deus. E ponto final.
— Mas quando Spinoza emprega a palavra “natureza”, ele não está pensando apenas na natureza material, física. Por substância, Deus ou natureza, ele entende tudo o que existe, inclusive o que se compõe de espírito.
— Ou seja, tanto pensamento quanto extensão.
— Exatamente. Segundo Spinoza, nós, homens, conhecemos duas das características, ou formas de manifestação, de Deus. Spinoza chama essas características de atributos de Deus e esses dois atributos são precisamente o pensamento e a extensão de Descartes. Deus, ou a natureza, manifesta-se, portanto, ou como pensamento, ou como alguma coisa que ocupa o espaço. Mas é possível que Deus possua um número infinitamente maior de outros atributos além do pensamento e da extensão. Só que de todos esses possíveis atributos o homem só conhece dois.
— Tudo bem… mas que forma complicada de se expressar!
— Sim, às vezes a gente precisa de um martelo e de um cinzel para conseguir abrir caminho pela linguagem de Spinoza. Talvez nos sirva de consolo o fato de que no fim encontramos um pensamento que é tão brilhante e transparente quanto um diamante.
— Estou ansiosa para saber qual é.
— Tudo o que existe na natureza ou é pensamento, ou então extensão. Cada um dos fenômenos com os quais nos deparamos em nossa vida cotidiana, como uma flor, por exemplo, ou um poema de Henrik Wergeland, são diferentes modi dos atributos pensamento e extensão. Por modus, plural modi, entendemos, portanto, determinada forma de manifestação da substância, ou de Deus, ou ainda da natureza. Uma flor é um modus do atributo extensão e um poema sobre esta flor é um modus do atributo pensamento. No fundo, porém, ambos são expressão para uma mesma e única coisa: substância, Deus ou natureza.
— Deus meu, que complicado!
— Ainda bem que só a linguagem é complicada em Spinoza. Sob suas formulações complicadas esconde-se um conhecimento maravilhoso, tão simples que não pode ser expresso pela linguagem coloquial.
— Apesar disso, acho que prefiro a linguagem coloquial.
— Está bem. Então vamos começar com você mesma. Quando você tem dor de estômago, o que é que tem dor de estômago?
— Você mesmo já disse: eu.
— Certo. E mais tarde, quando você pensa que um dia teve dor de estômago, o que é que pensa?
— Eu, também.
— Pois você é uma pessoa que hoje pode estar com dor de estômago e amanhã pode estar sob a influência de determinado estado de ânimo. Da mesma forma, Spinoza achava que todas as coisas físicas que nos cercam ou que acontecem à nossa volta são manifestações de Deus, ou natureza. O mesmo vale para todos os pensamentos que são pensados. Assim, todos os pensamentos que são pensados também são pensamentos de Deus, ou natureza. Pois tudo é uma coisa só. Tudo é um. Existe apenas um Deus, ou uma natureza, ou ainda uma substância.
— Mas quando penso alguma coisa, sou eu quem pensa. E quando me movimento, sou eu quem se movimenta. Por que você quer colocar Deus no meio disso?
— Sabe de uma coisa? Gosto do seu engajamento. Mas quem é você? Você é Sofia Amundsen, mas também é expressão de algo infinitamente maior. Você pode muito bem dizer que você pensa, ou que você se movimenta, mas será que você também não pode dizer que a natureza pensa os seus pensamentos e que a natureza se movimenta em você? É só uma questão de saber através de que lentes você observa tudo isto.
— Você está querendo dizer que não sou eu quem determina o que posso fazer?
— Bem, talvez você possua alguma liberdade para movimentar o polegar ao seu bel-prazer. Mas o polegar só pode se movimentar de acordo com sua própria natureza. Ele não pode saltar de sua mão e sair pulando pela sala. Da mesma forma, você também tem o seu lugar no todo, minha cara. Você é Sofia, mas também é um dedo no corpo de Deus.
— Então é Deus quem decide tudo o que eu faço?
— Ou a natureza, ou as leis da natureza. Spinoza considerava Deus, ou as leis da natureza, a causa interna de tudo o que acontece. Deus não é uma causa externa, pois Deus se manifesta através das leis da natureza e só através delas.
— Não sei se consigo ver a diferença.
— Deus não é um manipulador de fantoches, que fica puxando cordinhas e, com isto, determinando o que acontece. Um “mestre de marionetes” dirige as bonecas de fora de cena e por isso é uma “causa externa”. Mas não é assim que Deus governa o mundo. Deus governa o mundo através das leis da natureza. Desta forma, Deus – ou a natureza – é causa interna de tudo o que acontece. Isto significa que tudo na natureza acontece porque tem de ser assim. Spinoza tinha uma visão determinista da vida na natureza.
— Acho que em algum outro momento você já disse alguma coisa parecida.
— Talvez você esteja pensando nos estóicos. Também eles diziam que tudo acontece porque tem de acontecer. Por isso é que eles achavam muito importante aceitar todos os acontecimentos com uma “tranqüilidade estóica”. O homem não deve se deixar levar pelos seus sentimentos. O mesmo vale para a ética de Spinoza, que quisermos dizê-lo de forma resumida.
— Acho que entendo o que ele quer dizer. Mas não me agrada o pensamento de que não sou eu quem decide sobre mim mesma.
— Vamos dar outro salto de volta ao menino da Idade da Pedra, que viveu há três mil anos. O tempo passou e ele cresceu, atirou sua lança em animais, amou uma mulher, que se tornou a mãe de seus filhos e, pode estar certa, adorou os deuses de sua tribo. O que passa por sua cabeça quando você diz que ele mesmo decidiu todas essas coisas?
— Não sei.
— Então imagine um leão na África. Você acha que ele próprio optou por viver como animal predador? É por causa disso que ele ataca um antílope cansado? Será que em vez disso ele poderia ter optado por viver como vegetariano?
— Não, o leão vive de acordo com sua natureza.
— Ou de acordo com as leis da natureza. O mesmo acontece com você, Sofia, pois você também é natureza. Mas é claro que, amparada por Descartes, você pode argumentar que o leão é um animal e não um homem com faculdades mentais livres. Mas então pense num recém-nascido. Ele resmunga, chora, e se não lhe dão leite ele coloca o dedo na boca para mamar. Será que este bebê possui livre-arbítrio?
— Não.
— E quando esta criança, uma menina, digamos, passa a ter um livre-arbítrio? Aos dois anos esta garotinha corre por toda a parte e aponta entusiasmada para tudo o que vê. Aos três vive fazendo birra e aos quatro, de uma hora para outra, passa a ter medo de escuro. Onde está a liberdade, Sofia?
— Não sei.
— Aos quinze, diante do espelho, ela experimenta se maquiar. É este o momento em que ela passa a tomar suas próprias decisões e a fazer o que quer?
— Entendo o que você quer dizer.
— Ela é Sofia Amundsen, disto ela tem certeza. Mas ela também vive segundo as leis da natureza. O problema é que ela mesma não percebe isso, pois por trás de tudo o que faz existe um número muito grande de motivos extremamente complicados.
— Acho que não quero ouvir mais nada.
— Tudo bem, mas antes me responda a uma última pergunta: duas árvores de mesma idade crescem num enorme jardim. A primeira está num ponto do jardim em que recebe bastante sol e tem acesso abundante a um solo rico em nutrientes e água. A outra árvore cresce na sombra, sobre solo infértil. Qual das duas árvores dará mais frutos?
— Naturalmente aquela que tem as melhores condições de crescer.
— Para Spinoza esta árvore é livre. É livre no sentido de que possui plena liberdade para desenvolver todas as possibilidades que lhe são inerentes. Só que se esta árvore for uma macieira, ela não terá opção entre produzir maçãs ou ameixas. E o mesmo acontece conosco, seres humanos. As circunstâncias políticas, por exemplo, podem obstruir nossa evolução e o nosso crescimento pessoal. Uma pressão exterior é capaz de nos tolher. Só quando podemos desenvolver livremente as possibilidades que nos são inerentes é que podemos viver como pessoas livres. Apesar disso, somos governados pelo nosso potencial interno e pelas circunstâncias exteriores da mesma forma como o menino da Idade da Pedra na Renânia, o leão na África ou a macieira do jardim.
— Acho que não consigo ouvir mais nada.
— Spinoza dizia que só um único ser é “causa completa e absoluta de si mesmo” e pode agir em liberdade plena. Somente Deus ou a natureza é expressão deste processo livre e “não casual”. Um homem pode aspirar à liberdade de viver sem pressões exteriores, mas ele nunca chegará a ter “livre-arbítrio”. Nós não determinamos tudo o que acontece com o nosso próprio corpo, pois nosso corpo é um modus do atributo extensão. Tampouco “escolhemos” nossos pensamentos. Assim, o homem não possui uma mente livre, aprisionada num corpo mecânico.
— Isto é que é difícil de entender.
— Spinoza achava que as paixões humanas, a ambição e o prazer, por exemplo, nos impedem de chegar à felicidade e à harmonia verdadeiras. Mas quando reconhecemos que tudo acontece porque tem de acontecer, podemos chegar, então, a uma compreensão intuitiva da natureza como um todo. Podemos ser levados a experimentar, de forma pura e cristalina, o fato de que tudo está relacionado; o fato de que tudo é um. Nosso objetivo é abarcar, num único golpe de vista, tudo o que existe. Spinoza chamava isto de ver as coisas sub specie aeternitatis.
— E o que significa isto?
— Significa ver as coisas sob a perspectiva da eternidade. Não foi assim que começamos?
— E é assim que precisamos terminar. Preciso voltar agora mesmo para casa.
CAPÍTULO 20 (EXCERTO)
LOCKE
(Páginas 280-286.)
Alberto acomodou-se no sofá e disse:
— Da última vez em que estivemos sentados nesta sala, eu falei sobre Descartes e Spinoza. Chegamos a concordar que os dois têm um importante ponto em comum: ambos são racionalistas convictos.
— E um racionalista é alguém que acredita na importância da razão.
— Sim, o racionalista acredita na razão como fonte de conhecimento. E muitas vezes acredita também em certas idéias inatas ao homem, isto é, em idéias que já existem no homem independentemente de toda e qualquer experiência. E quanto mais clara for esta idéia, tanto mais certo é o fato de ela corresponder a um dado da realidade. Você ainda se lembra de que Descartes tinha uma clara e nítida noção do que fosse um “ser perfeito”. A partir dela ele chegou à conclusão de que Deus realmente existe.
— Não sou do tipo que se esquece facilmente das coisas.
— Este pensamento racionalista foi típico para a filosofia do século XVII. Na Idade Média ele também esteve bem representado e podemos encontrá-lo em Platão e Sócrates. No século XVIII, porém, ele passou a ser exposto a uma crítica cada vez mais severa e mais profunda. Muitos filósofos passaram a defender, então, a opinião de que nossa mente é totalmente vazia de conteúdo, enquanto não vivemos uma experiência sensorial. Esta visão é chamada de empirismo.
— E é desses empíricos que você vai falar hoje?
— Vou tentar. Os empíricos, ou filósofos da experiência, mais importantes foram Locke, Berkeley e Hume, todos ingleses. Os líderes entre os racionalistas do século XVII foram o francês Descartes, o holandês Spinoza e o alemão Leibniz. Por isso é que freqüentemente fazemos uma distinção entre o empirismo inglês e o racionalismo continental.
— Por mim, tudo bem. Só que este monte de nomes me confundiu um pouco. Será que dava para você repetir o que se entende por “empirismo”?
— Um empírico deriva todo o seu conhecimento do mundo daquilo que lhe dizem os seus sentidos. A formulação clássica de uma postura empírica vem de Aristóteles, para quem nada há na mente que já não tenha passado pelos sentidos. Esta idéia contém uma severa crítica a Platão, para quem o homem, ao vir ao mundo, trazia consigo idéias inatas do mundo das idéias. Locke repetiu as palavras de Aristóteles, mas o destinatário de sua crítica era Descartes.
— Não há nada na mente que já não tenha passado pelos sentidos?
— Nós não nascemos com idéias inatas, ou com uma visão de mundo já formada. E nada sabemos sobre o mundo em que somos colocados antes de o percebermos com nossos sentidos. Quando pensamos alguma coisa, portanto, que não somos capazes de relacionar com fatos vivenciados, este pensamento ou noção é falso. Por exemplo, quando empregamos palavras como “Deus”, “eternidade” ou “substância”, nossa razão está funcionando em ponto morto. Isto porque ninguém nunca vivenciou Deus, a eternidade ou aquilo que os filósofos chamam de “substância”. Por conseguinte, muitos estudiosos podem escrever tratados que, na verdade, não acrescentam nada de novo ao conhecimento. Uma filosofia baseada em tal reflexão, por mais refinada que seja, pode impressionar, mas no fundo não passa de mera fantasia. Os filósofos dos séculos XVII e XVIII tinham herdado muitos desses tratados. Era chegada a hora de examiná-los sob uma lupa, a fim de eliminar deles toda e qualquer noção ou idéia vazia. Talvez possamos comparar isto ao processo de lavagem do ouro. A maior parte dos resíduos não passa de areia e barro, mas de vez em quando há também uma pedrinha de ouro brilhando no meio de tudo.
— E essas pedrinhas de ouro seriam as verdadeiras experiências?
— Ou pelo menos os pensamentos que podem ser relacionados às experiências humanas. Para os empíricos britânicos, era importante examinar todas as noções humanas, a fim de verificar se elas podiam ser comprovadas com experiências reais. Mas vamos examinar um filósofo de cada vez.
— Sim, vamos lá.
— O primeiro foi o inglês John Locke, que viveu entre 1632 e 1704. Seu livro mais importante chama-se Um ensaio sobre o entendimento humano, de 1690. Nele, Locke tenta explicar duas questões. Em primeiro lugar, ele pergunta de onde os homens tiram os seus pensamentos e as suas noções. Em segundo, pergunta se podemos confiar no que nossos sentidos nos dizem.
— Um projeto e tanto…
— Vamos tomar um problema de cada vez. Locke está convencido de que todos os nossos pensamentos e todas as nossas noções nada mais são do que um reflexo daquilo que um dia já sentimos ou percebemos através de nossos sentidos. Antes de sentirmos qualquer coisa, nossa mente é como uma tábula rasa, uma “lousa vazia”.
— Isto parece evidente.
— Antes de experimentarmos qualquer coisa, portanto, nossa mente é tão vazia quanto uma lousa antes de o professor entrar na sala de aula. Locke também compara a mente com uma sala em que não há um móvel sequer. Mas então é a vez de os nossos sentidos entrarem em ação: podemos ver o mundo à nossa volta, sentir o cheiro das coisas, seu gosto, podemos tocá-las e ouvi-las. E ninguém faz isto de forma mais intensa do que as crianças. Surgem, assim, as idéias sensoriais simples. Só que a mente não recebe passivamente essas impressões exteriores. Dentro da nossa mente também acontece alguma coisa. As idéias sensoriais simples são retrabalhadas pela reflexão, pela crença e pela dúvida. E o resultado disso, segundo Locke, são as idéias da reflexão. Locke estabelece a distinção, portanto, entre “sensação” e “reflexão”. Isto porque a mente, a consciência, não é um mero receptor passivo. E é exatamente nesse ponto que precisamos ficar alertas.
— Ficar alertas?
— Locke afirma que, através dos sentidos, não conseguimos senão impressões simples. Quando como uma maçã, por exemplo, posso “sentir” a maçã inteira numa única e simples sensação. Na verdade, estou recebendo toda uma série de impressões simples: uma coisa verde, fresca, cheirosa, suculenta e de sabor levemente ácido. Só depois de já ter comido muitas maçãs é que posso pensar que estou comendo “uma maçã”. Locke diz que, neste momento, conseguimos formar a noção complexa de uma maçã. Quando éramos pequenos e comemos maçã pela primeira vez, não possuíamos essa noção complexa. Mas víamos uma coisa verde, sentíamos o gosto de uma coisa fresca e suculenta, nham, nham…, e também um pouco ácida. Aos poucos vamos “amarrando” muitas impressões sensoriais e formando conceitos como “maçã”, “pêra” e “laranja”. Mas é aos nossos órgãos de sentidos que devemos, em última análise, todo o material de que se serve o nosso conhecimento do mundo. E é por isso que é falso e precisa ser eliminado o conhecimento que não pode ser atribuído a impressões sensoriais simples.
— Seja como for, podemos ter certeza de que aquilo que vemos e ouvimos, de que sentimos o cheiro e o gosto, corresponde exatamente ao que sentimos.
— Sim e não. Esta é a segunda questão que Locke se propõe a discutir. Primeiro ele explica de onde retiramos nossas idéias e noções. Em seguida ele pergunta se o mundo é realmente do jeito que nós o percebemos. E isto não é uma coisa absolutamente evidente, Sofia. Não podemos colocar o carro na frente dos bois. Aliás, esta é a única coisa que um verdadeiro filósofo não deve fazer.
— Esqueça o que eu disse.
— Locke estabelece a diferença entre aquilo que chama de qualidades sensórias “primárias” e “secundárias”. E nesse ponto ele estende a mão aos filósofos que o precederam: por exemplo, a Descartes.
— Me explique isto!
— Por qualidades sensoriais primárias Locke entende a extensão, peso, forma, movimento e número das coisas. Com relação a essas propriedades, podemos estar certos de que nossos sentidos reproduzem as verdadeiras propriedades das coisas. Mas nós também percebemos outras características das coisas. Dizemos que uma coisa é doce ou azeda, verde ou vermelha, quente ou fria. Locke chama isto de qualidades sensoriais secundárias. Tais impressões sensoriais, como as cores, o cheiro, o gosto ou os sons, por exemplo, não reproduzem as características verdadeiras, presentes na coisa em si. Elas reproduzem apenas o efeito que essas características exteriores exercem sobre os nossos sentidos.
— Gosto não se discute.
— Exatamente. Podemos estar de acordo sobre as propriedades primárias, como tamanho e peso, por exemplo, pois elas são inerentes às coisas em si. Mas as propriedades secundárias, como cor e gosto, por exemplo, podem variar de animal para animal, de homem para homem, dependendo de como são constituídos os órgãos de sentidos de cada indivíduo.
— Quando Jorunn chupa uma laranja, ela faz a mesma cara que outras pessoas fazem quando chupam um limão. Geralmente, ela não consegue ir até o fim. “Está azeda”, costuma dizer. E na maioria das vezes eu acho a mesma laranja doce e gostosa.
— E nenhuma de vocês tem razão, porque também nenhuma de vocês está errada. Ao falar sobre suas impressões, vocês apenas estão descrevendo o efeito desta laranja sobre os seus sentidos. O mesmo ocorre com as cores. Pode ser que determinado tom de vermelho não agrade você. Se Jorunn compra um vestido exatamente desse tom, é melhor você guardar para si a sua opinião sobre ele. Não que o vestido seja feio ou bonito; é que vocês duas percebem de forma diferente este mesmo tom de vermelho.
— Mas todos concordam que uma laranja é redonda.
— Sim. Quando você segura uma laranja, não dá para dizer que ela tem a forma de um cubo, por exemplo. Você pode achá-la doce ou azeda, mas não pode “achar” que ela pesa oito quilos, se o peso dela não passa de duzentos gramas. Você pode talvez “acreditar” que ela pese muitos quilos, mas este é um caminho que não vai dar em nada. Se muitas pessoas tentam adivinhar quanto pesa um objeto, sempre haverá uma que estará mais certa que as outras. O mesmo vale para o número das coisas. Ou há 986 ervilhas numa tigela, ou não. E o mesmo vale também para o movimento: ou um carro está em movimento, ou então está parado.
— Entendo.
— No que se refere à “realidade estendida”, portanto, Locke compartilha da mesma opinião de Descartes, ou seja, que a realidade possui certas características que o homem pode captar com sua razão.
— Não é muito difícil concordar com isto.
— Também em outras áreas Locke admite o que chama de conhecimento “intuitivo” ou “demonstrativo”. Por exemplo, ele acha que certas diretrizes éticas valem para todos. Neste caso, podemos dizer que ele acredita no chamado pensamento do direito natural e que este é um traço racionalista que podemos identificar em seu pensamento. Outro traço claramente racionalista: Locke acredita que é inerente à razão humana saber que existe um Deus.
— Talvez ele tivesse razão.
— Razão em quê?
— Em que existe um Deus.
— É possível. Mas ele não deixa que esta problemática se reduza a uma questão de fé. Para ele, a idéia que o homem faz de Deus nasce da própria razão humana. E este é um traço racionalista do seu pensamento. Devo acrescentar que Locke defendia a liberdade de opinião e a tolerância. Além disso, defendia também a igualdade de direitos entre os sexos. Para ele, a posição de inferioridade das mulheres havia sido criada pelos homens. Assim sendo, ela podia ser corrigida.
— Concordo plenamente.
— Locke foi um dos primeiros filósofos dos tempos modernos a se ocupar com a questão dos papéis sexuais. Isto foi de grande importância mais tarde para John Stuart Mill, uma personalidade por sua vez muito importante para a luta pela igualdade de direitos entre os sexos. Locke expressou muito cedo pensamentos liberais que só floresceram em sua plenitude durante o Iluminismo francês do século XVIII. Por exemplo, ele foi o primeiro a propagar o princípio da divisão dos poderes…
— Isto significa que o poder do Estado é dividido em diferentes instituições.
— Você ainda se lembra que instituições são essas?
— O Legislativo, ou o Parlamento, o Judiciário, ou o Tribunal, e o Executivo, ou o próprio governo.
— Esta tripartição vem do filósofo iluminista francês Montesquieu. Locke chamou a atenção sobretudo para o fato de termos de separar o Poder Legislativo do Poder Executivo, se quisermos evitar a tirania. E ele foi contemporâneo de Luís XIV, que reunia em suas mãos todo o poder e costumava dizer “O Estado sou eu”. Dizemos que Luís XIV foi um governante “absoluto” e que “seu” Estado era mais arbitrário do que de direito. Contrariando esta idéia, Locke achava que para se assegurar um Estado de direito os representantes do povo tinham que promulgar leis que seriam depois executadas pelo rei e pelo governo.
CAPÍTULO 21 (EXCERTO)
HUME
(Páginas 287-301.)
Alberto tinha os olhos fixos na mesinha que havia entre os dois. Em dado momento, virou-se e olhou para o céu emoldurado pela janela.
— O tempo está carregado — disse Sofia.
— Sim, está muito abafado.
— Vamos falar agora sobre Berkeley?
— Ele foi o segundo dos empíricos britânicos. Mas como Berkeley é um capítulo à parte, vamos nos concentrar primeiramente em David Hume, que viveu de 1711 a 1776. Sua filosofia é considerada ainda hoje a mais importante filosofia empírica. Além disso, Hume é de fundamental importância, pois inspirou o grande filósofo Immanuel Kant na execução de seu próprio projeto filosófico.
— E o fato de eu estar muito mais interessada na filosofia de Berkeley não conta?
— Não, não conta. Hume cresceu nas proximidades de Edimburgo, na Escócia, e sua família queria muito que ele fosse um jurista. Ele próprio afirmava, porém, que sentia “uma insuperável aversão a tudo, menos à filosofia e à erudição”. Como os grandes pensadores franceses Voltaire e Rousseau, Hume viveu em pleno Iluminismo e viajou muito pela Europa, antes de voltar a se estabelecer em Edimburgo. Sua obra mais importante, Tratado sobre a natureza humana, foi publicada quando Hume tinha vinte e oito anos. Ele mesmo dizia, porém, que desde os quinze já tinhas as idéias para este livro.
— Estou vendo que preciso me apressar.
— Você já começou.
— Mas se um dia eu tiver minha própria filosofia, ela será completamente diferente de tudo o que tenho ouvido até agora.
— Você está sentindo falta de alguma coisa em especial?
— Em primeiro lugar, todos os filósofos de que ouvi falar até agora foram homens. E os homens parecem viver num mundo só deles. Eu estou mais interessada no mundo real: flores, animais e crianças, que nascem e crescem. Os seus filósofos falam sempre do homem enquanto ser humano e vira e mexe aparece um tratado sobre a natureza humana. Só que este homem, este ser humano, parece sempre ser um homem de meia-idade, e a vida começa com a gravidez e o nascimento. Acho que até agora vi poucas fraldas e ouvi muito pouco choro de nenê nesta história toda. Acho, também, que esta história tem muito pouco amor e amizade.
— Neste ponto você tem toda a razão. Mas talvez Hume seja exatamente um filósofo que pensa um pouco diferente. Mais do que qualquer outro, ele toma o mundo cotidiano como ponto de partida para a sua reflexão. Acredito até que Hume foi muito sensível ao modo como as crianças, esses novos cidadãos do mundo, experimentam a vida.
— Então vamos lá. Quero ouvir.
— Como empírico, Hume considerava sua tarefa eliminar todos os conceitos obscuros e os raciocínios intrincados criados até então por esses filósofos homens a que você se referiu. Naquela época, circulavam por escrito e oralmente toda a sorte de antigos resquícios de concepções medievais e conceitos das filosofias racionalistas do século XVII. Hume queria retornar à forma original pela qual o homem experimentava o mundo. Para ele, nenhuma filosofia que não aquela a que chegamos pela reflexão sobre o nosso cotidiano seria capaz de nos conduzir para além dessas mesmas experiências cotidianas.
— Até agora tudo isto soa muito promissor. Será que você poderia dar um exemplo?
— Na época de Hume, acreditava-se amplamente na existência dos anjos. Por anjo entendemos uma forma humana alada. Você já viu um anjo, Sofia?
— Não.
— Mas você já viu uma forma humana, não viu?
— Que pergunta boba…
— E você já viu asas?
— Claro, só que nunca numa pessoa.
— Pois bem, para Hume, o “anjo” é uma noção complexa. Ela se constitui de duas experiências diferentes, que ocorrem simultaneamente na imaginação humana, já que na realidade estão dissociadas. Em outras palavras, esta noção é falsa e como tal deve ser rejeitada. Do mesmo modo, temos de proceder a uma verdadeira limpeza em nossos pensamentos e idéias, pois, como Hume afirmou, “se tomamos um livro sobre a doutrina divina, ou sobre metafísica, devemos perguntar o seguinte: ele contém algum raciocínio abstrato sobre tamanho ou números? Não. Contém algum raciocínio sobre fatos e sobre a vida que seja baseado em experiências? Não. Atira-o, então, ao fogo, pois tudo o que ele contém não passa de fantasmagoria e ilusão”.
— Muito drástico.
— Sim, mas depois dessa limpeza toda sobra o mundo, Sofia, e muito mais vivo e de contornos mais nítidos do que antes. Hume queria retornar ao modo como a criança experimenta o mundo, antes de o espaço de sua mente ser tomado por pensamentos e reflexões. Você não disse que muitos dos filósofos sobre os quais falamos vivem num mundo só deles e que você se interessa mais pelo mundo real?
— Sim, foi mais ou menos isso.
— Pois bem, estas palavras poderiam ter sido de Hume. Mas vamos acompanhar mais de perto o seu raciocínio.
— Estou ouvindo.
— A primeira coisa que Hume constata é que o homem possui impressões, de um lado, e idéias, de outro. Por impressão ele entende a percepção imediata da realidade exterior. Por idéia ele entende a lembrança de tal impressão.
— Você pode me dar um exemplo?
— Se você queima a mão no fogão, o que você experimenta é uma impressão imediata. Mais tarde pode ser que você se lembre de que se queimou, e esta lembrança Hume a chama de idéia, noção. A diferença entre elas é que a impressão é mais forte e mais viva do que a lembrança que se tem dela mais tarde. Podemos chamar a impressão sensorial de original, e a idéia, ou a lembrança que se tem dela, de uma cópia pálida do original. Afinal, a impressão é a causa direta da idéia guardada na mente.
— Até aqui deu para acompanhar.
— Mas Hume também chama a atenção para o fato de tanto a impressão quanto a idéia poderem ser ou simples ou complexas. Você ainda se lembra do exemplo da maçã quando conversamos sobre Locke? Como tal, a experiência direta de uma maçã é uma impressão complexa. Da mesma forma, a idéia que a mente faz de uma maçã também é uma idéia complexa.
— Desculpe-me interrompê-lo, mas isto é mesmo importante?
— Se é importante? E como! Embora os filósofos tenham se ocupado de uma série de problemas aparentemente banais, você não pode recuar diante da oportunidade de participar da construção de um raciocínio. Na certa Hume teria concordado com Descartes quanto ao fato de um raciocínio ter de ser construído a começar pela sua base.
— Eu me rendo…
— Hume está preocupado com o fato de que às vezes formamos idéias e noções complexas, para as quais não há correspondentes complexos na realidade material. É dessa forma que surgem noções falsas sobre coisas que não existem na natureza. Já citamos o exemplo do anjo. E anteriormente falamos também do crocofante. Outro exemplo pode ser Pégaso, o cavalo alado. Em todos esses exemplos, temos de admitir que foi nossa mente, sozinha, que construiu essas coisas, juntando a impressão de um par de asas com a impressão de um cavalo, por exemplo. Esses dois componentes foram experimentados por nós um dia e entraram para o teatro da mente como impressões “verdadeiras”. No fundo, a mente não inventou nada. Ela só teve o trabalho de pegar tesoura e cola para construir essas noções falsas.
— Entendo. E entendo também que isto pode ser muito importante.
— Ótimo. Hume quer estudar cada noção, cada idéia, a fim de verificar se sua composição encontra um correlato na realidade. Nesse sentido, ele pergunta: de que impressões surgiu esta idéia? Em primeiríssimo lugar, ele precisa decompor uma noção complexa em suas noções simples constituintes. É assim que ele pretende chegar a um método crítico de análise das idéias do homem. E também é assim que ele pretende “fazer uma faxina” nos nossos pensamentos e idéias.
— Você teria um ou dois exemplos?
— Na época de Hume, as pessoas tinham uma noção muito clara do céu. Talvez você ainda se lembre das palavras de Descartes, segundo as quais as noções claras e distintas seriam, em si, garantia para a existência do correspondente desta idéia na realidade.
— Já disse que não sou do tipo que se esquece facilmente das coisas.
— Não é difícil ver que a noção de “céu” é uma noção extremamente complexa. Vamos citar apenas alguns elementos: no “céu” existem um “portão de pérolas”, “ruas de ouro”, “exércitos de anjos” etc. etc. E podemos ir mais além em nosso trabalho de decomposição dos elementos em seus fatores constituintes, pois também o “portão de pérolas”, as “ruas de ouro” e os “exércitos de anjos” são noções complexas. Somente quando nos damos conta de que nossa noção complexa de “céu” se compõe de noções simples tais como “portão”, “pérola”, “rua”, “ouro”, “figuras humanas vestidas de branco” e “asas” é que podemos nos perguntar se algum dia já experimentamos na realidade essas “impressões simples”.
— E na verdade já as experimentamos. Só que depois nós as combinamos para formar uma imagem onírica.
— Exatamente. Pois quando sonhamos, usamos tesoura e cola, por assim dizer. Para Hume, porém, todo o material que usamos para compor nossas imagens oníricas chegou um dia à nossa consciência por meio de impressões simples. Uma pessoa que nunca viu ouro não consegue imaginar o que seja uma rua de ouro.
— Muito inteligente da parte dele. E quanto à “noção clara de Deus”, de Descartes?
— Também para isto Hume tem uma resposta. Digamos que, para nós, Deus é uma criatura infinitamente inteligente, sábia e boa. Temos aí, portanto, uma noção complexa formada por algo infinitamente inteligente, infinitamente sábio e infinitamente bom. Se nunca tivéssemos experimentado a inteligência, a sabedoria e a bondade, não poderíamos ter tal conceito de Deus. E pode ser também que nossa imagem de Deus nos fale de um pai severo, mas justo. Quer dizer, outra noção complexa composta por “pai”, “severo” e “justo”. E assim por diante. Depois de Hume, muitos críticos da religião chamaram a atenção para o fato de tal noção de Deus ser atribuída ao modo como nós, quando crianças, “experimentamos” nosso próprio pai. Para esses críticos, a noção de um pai levou à noção de um Pai do Céu.
— Talvez isto seja verdade. Mas eu nunca aceitei que Deus fosse necessariamente um homem. E para compensar isto, minha mãe às vezes diz “pelo amor da Deusa”, ou coisa parecida.
— Portanto, Hume quer atacar todo e qualquer pensamento ou idéia que não possa ser atribuído a uma impressão sensorial correspondente. Ele costumava dizer que queria banir para bem longe esse absurdo que durante tanto tempo dominara o pensamento metafísico, acabando por condená-lo ao descrédito. Mas também na vida cotidiana empregamos conceitos complexos, sem nos perguntarmos se eles têm alguma validade. É o caso, por exemplo, da noção de um Eu, ou de um núcleo da personalidade. Foi esta a noção que serviu de base para a filosofia de Descartes. Ela foi a noção clara e nítida sobre a qual ele construiu toda a sua filosofia.
— Espero que Hume não tenha tentado negar que eu sou eu, pois nesse caso ele não passaria de um cabeça-oca.
— Sofia, se eu pudesse escolher uma única coisa para você aprender de todo este curso de filosofia, eu diria para você aprender a não tirar conclusões precipitadas.
— Continue.
— Não… você mesma pode aplicar o método de Hume para analisar o que entende por seu “eu”.
— Nesse caso preciso começar perguntando se a noção de “eu” é simples ou complexa.
— E você tem uma resposta para esta pergunta?
— Bem, tenho de admitir que me sinto extremamente complexa. Por exemplo, no que se refere ao humor, sou muito inconsistente. E também acho difícil decidir por alguma coisa. Além disso, posso gostar de uma pessoa hoje e detestá-la amanhã.
— Sua noção de “eu” é complexa, portanto.
— Certo. Em seguida tenho de perguntar se tenho uma impressão complexa correspondente a esta noção complexa de “eu”. E acho que tenho. Acho que sempre tive.
— Isso faz de você uma pessoa insegura?
— Não sei. É que estou mudando o tempo todo. Por exemplo, não sou hoje a mesma Sofia de quatro anos atrás. Meu humor e a forma como eu mesma me vejo modificam-se de um minuto para outro. É como se de repente eu passasse a ser outra pessoa, completamente diferente.
— Quer dizer que é falsa a sensação de que nossa personalidade possui um núcleo constante. Nossa noção de eu compõe-se, na verdade, de uma longa cadeia de impressões isoladas, que nunca conseguimos vivenciar simultaneamente. Hume fala de um “feixe de diferentes conteúdos de consciência, que se sucedem numa rapidez inimaginável e que estão em constante fluxo e movimento”. Nossa mente seria, então, “uma espécie de teatro”, no qual estes diferentes conteúdos “se sucedem em suas entradas e saídas de cena, e se misturam numa infinidade desordenada de posições e de tipos”. Para Hume, portanto, o homem não possui uma “base” de personalidade, atrás ou abaixo da qual se desenrola a cena de que são atores as percepções e as sensações. É como as imagens numa tela de cinema: elas se alternam tão rapidamente que não vemos que o filme de compõe de imagens isoladas. Na verdade, essas imagens não estão conectadas. O filme é uma soma de instantes.
— Acho que desisto.
— Isto significa que você desiste da idéia de que sua personalidade tem um núcleo constante, imutável?
— Acho que sim.
— E um minuto atrás você tinha uma opinião completamente diferente! Bem, resta acrescentar que a análise de Hume da consciência humana e a sua recusa em aceitar um núcleo constante e imutável para a personalidade já tinham sido defendidas dois mil e quinhentos anos antes, do outro lado do mundo.
— Por quem?
— Por Buda. É muito intrigante como os dois se expressam de forma parecida. Buda considerava a vida humana uma sucessão ininterrupta de processos físicos e mentais, que modificavam as pessoas a cada momento. O bebê de colo não é a mesma pessoa em idade adulta; hoje não sou o mesmo de ontem. Buda pregava que não posso dizer que alguma coisa me pertença, assim como não posso dizer que este sou eu. Não há, portanto, um eu, e a personalidade não possui um núcleo rígido, imutável.
— Sim, a semelhança com Hume é surpreendente.
— Como conseqüência direta da noção de um eu imutável, muitos racionalistas consideravam evidente o fato de o homem possuir uma alma imortal.
— Mas isto também é uma noção falsa?
— Pelo menos é o que dizem Hume e Buda. Você sabe o que dizem que Buda teria dito a seus seguidores pouco antes de morrer?
— Não. Como posso saber?
— “Todas as coisas complexas estão condenadas à decadência.” Hume poderia ter dito a mesma coisa. Ou mesmo Demócrito. Seja como for, sabemos que Hume rejeitou toda e qualquer tentativa de provar a imortalidade da alma ou a existência de Deus. Isto não significa que ele considerava impossíveis ambas as coisas; significa apenas que considerava um absurdo racionalista achar que seria possível provar a fé religiosa com a razão humana. Hume não era cristão; também não era um ateu convicto. Ele era o que chamamos de agnóstico.
— E o que significa isto?
— Um agnóstico é uma pessoa que não sabe se Deus existe. Em seu leito de morte, Hume recebeu a visita de um amigo que lhe perguntou se ele acreditava numa vida após a morte. Contam que Hume respondeu que também era possível um pedaço de carvão ser atirado ao fogo e não se queimar.
— Entendo…
— Foi a resposta típica de um homem que não abria mão da sua imparcialidade. Ele só aceitava como verdade aquilo que podia experimentar pelos sentidos, mas todas as demais possibilidades continuavam em aberto. Hume não rejeitava nem a fé em Jesus Cristo, nem a crença em milagres. Só que em ambos os casos trata-se de crença e não de razão. Podemos dizer que os últimos elos que ligavam a crença ao conhecimento foram quebrados pela filosofia de Hume.
— Você disse que ele não rejeitou categoricamente a idéia do milagre.
— O que também não significa que ele acreditava em milagres. Em muitas passagens, Hume afirma que os homens têm evidentemente uma forte necessidade de acreditar em acontecimentos que hoje chamaríamos de “sobrenaturais”. Só que todos os milagres de que ouvimos falar aconteceram em algum lugar distante de onde estamos, ou então há muitos, muitos anos. Hume só se recusa a acreditar em milagres porque nunca experimentou um milagre. Da mesma forma, e inversamente, ele também nunca experimentou o fato de que milagres não acontecem.
— Explique melhor.
— Hume chama de milagre a um evento que pressupõe a ruptura das leis da natureza. Mas também não podemos afirmar que experimentamos as leis da natureza. Podemos experimentar, isto sim, que uma pedra cai no chão quando a soltamos. Da mesma forma, se ela não caísse, poderíamos experimentar o fato de ela não cair.
— Eu chamaria isto de milagre, ou então de algo sobrenatural.
— Quer dizer que você acredita em duas naturezas: uma natureza e uma “sobrenatureza”. Será que com isto você não está tomando o caminho de volta ao discurso racionalista?
— Pode ser, mas acho que a pedra cai no chão toda a vez que a soltamos.
— E por quê?
— Agora você está sendo impiedoso.
— Não estou não, Sofia. Para um filósofo nunca é errado fazer perguntas. Pode ser que este seja justamente o ponto mais importante da filosofia de Hume. Responda-me: como você pode ter tanta certeza de que a pedra sempre cai no chão?
— É que eu já vi isto tantas vezes que tenho certeza absoluta.
— Hume diria que você já experimentou muitas vezes que uma pedra cai no chão quando a soltamos. Só que você não experimentou o fato de que ela irá sempre cair. Em geral dizemos que a pedra cai ao solo por força da gravidade. Só que nós nunca experimentamos esta lei. Tudo o que experimentamos é que as coisas caem.
— E não é a mesma coisa?
— Não exatamente. Você disse que acredita que a pedra irá sempre cair porque já viu isto muitas vezes. E é exatamente isto que preocupa Hume. Você está tão acostumada com um evento se seguindo ao outro que acha que ele vai acontecer todas as vezes que você soltar uma pedra. É assim que surgem as noções do que chamamos de “leis imutáveis da natureza”.
— Será que ele realmente acha possível que uma pedra não caia no chão quando a soltarmos?
— Na certa ele estava tão convencido quanto você de que a pedra cairia no chão a cada nova tentativa. Mas ele apenas chama a atenção para o fato de não termos experimentado o porquê de as coisas serem assim.
— Não estamos de novo nos afastando um pouco dos bebês e das flores?
— Não, ao contrário. Você pode muito bem tomar as crianças como testemunhas para as afirmações de Hume. Quem você acha que ficaria mais surpreso se a pedra flutuasse no ar por um ou dois segundos, você ou um bebê de um ano?
— Eu ficaria mais surpresa.
— E por que, Sofia?
— Talvez porque eu entenda melhor do que a criança que isto contraria a natureza.
— E por que a criança não entende isto?
— Porque ela ainda não aprendeu o que é a natureza.
— Ou porque a natureza ainda não se tornou um hábito para ela.
— Entendo o que você quer dizer. Hume queria levar as pessoas a observar melhor as coisas.
— Vou lhe dar uma tarefa: se você e um bebê assistirem juntos a um grande número de mágica, um número de levitação, por exemplo, quem você acha que se divertiria mais com o número?
— Acho que… eu.
— E por quê?
— Porque eu saberia que o que vejo é impossível.
— Muito bem. A criança não acha graça no fato de a levitação contrariar as leis da natureza, simplesmente porque ela ainda não as conhece.
— Sim, acho que é por isso mesmo.
— E ainda estamos no ponto crucial da filosofia da experiência de Hume. Ele teria acrescentado que a criança ainda não se tornou escrava de suas expectativas. A criança tem, portanto, menos preconceitos do que você. Podemos perguntar até mesmo se a criança não seria o maior filósofo. É que uma criança não possui opiniões preconcebidas. E isto, minha querida Sofia, é a maior virtude da filosofia. A criança experimenta o mundo tal como ele é, sem acrescentar coisas ao que experimenta.
— Sempre me sinto muito mal quando reconheço que tenho algum preconceito.
— Quando Hume aborda a questão da força do hábito, ele se concentra na chamada lei da causa. Segundo esta lei, tudo o que acontece precisa ter uma causa. Hume cita o exemplo de duas bolas de bilhar. Quando você empurra com o taco uma bola preta para cima de uma bola branca que estava em repouso, o que acontece com a bola branca?
— Quando a preta atinge a branca, a branca começa a se mover.
— E por que ela começa a se mover?
— Porque foi atingida pela bola preta.
— Neste caso, dizemos que o impacto da bola preta é a causa do início do movimento da bola branca. Mas não devemos nos esquecer de que só podemos falar com certeza sobre coisas que experimentamos.
— Eu mesma já experimentei isto várias vezes. É que a Jorunn tem uma mesa de bilhar no porão.
— Hume diz que você só experimentou o fato de que a bola preta bate na branca e que a branca começa a rolar sobre a mesa, e não a causa em si do movimento da bola branca. Você experimentou o fato de um acontecimento se suceder temporalmente ao outro, mas não experimentou que o segundo evento ocorre por causa do primeiro.
— Esta não é uma diferença sutil demais?
— Não, é uma coisa muito importante. Hume insiste em que a expectativa de que um evento se suceda ao outro não está nas coisas em si, mas em nossa mente. Novamente, a criança não arregalaria os olhos de espanto se uma bola atingisse a outra e ambas ficassem paradas sobre a mesa. Quando falamos de “leis da natureza” ou de “causa e efeito” estamos falando na verdade de hábitos humanos e não de algo racional. As leis da natureza não são racionais nem irracionais. Elas simplesmente são. A expectativa de que a bola branca de bilhar entre em movimento quando atingida pela preta não é, portanto, uma coisa inata. Não nascemos com expectativas já prontas acerca de como o mundo é, ou de como as coisas se comportam no mundo. O mundo é como é, e nós vamos experimentando isto pouco a pouco.
— Começo a ter novamente a sensação de que isto tudo não é assim tão importante.
— Mas isto pode ser importante quando, movidos por nossas expectativas, somos tentados a tirar conclusões precipitadas. Hume não rejeita o fato de existirem leis naturais imutáveis. Só que como não somos capazes de experimentar tais leis em si, podemos facilmente tirar conclusões erradas.
— Você poderia citar alguns exemplos?
— O fato de eu ver uma manada de cavalos pretos não significa que todos os cavalos sejam pretos.
— Nesse ponto você tem razão.
— E mesmo o fato de durante toda a minha vida eu só ter visto corvos pretos não significa que não haja corvos brancos. Para um filósofo e para um cientista pode ser importante provar que não existem corvos brancos. Se quiser, você pode até dizer que a procura por um corvo branco é a tarefa mais importante de toda a ciência.
— Entendo.
— Quando se trata da relação entre causa e efeito, é provável que muitos considerem o raio a causa do trovão, pois o trovão sempre se segue ao raio. Este exemplo não é muito diferente do exemplo das bolas de bilhar. Mas será que o raio é mesmo a causa do trovão?
— Não exatamente. De fato, o raio e o trovão acontecem ao mesmo tempo.
— Pois tanto o raio quanto o trovão são conseqüências de uma descarga elétrica. Mesmo tendo sempre experimentado que o trovão se segue ao raio, isto não significa que o raio é a causa do trovão. Na verdade, ambos são provocados por um terceiro fator.
— Entendo.
— Um empírico de nosso século [XX], Bertrand Russell, deu um exemplo um pouco mais grotesco: um pintinho, que todos os dias vive a experiência de ganhar comida quando o avicultor vem ao galinheiro, vai acabar tirando a conclusão de que existe uma relação entre os passos do avicultor no galinheiro e a comida na tigela.
— Mas um dia ele não aprende a achar seu próprio alimento?
— Um dia o avicultor entra no galinheiro e torce o pescoço do frango.
— Ui, que horror!
— O fato de as coisas se sucederem temporalmente às outras não significa, portanto, que exista uma relação de causa e efeito entre elas. Uma das mais importantes tarefas da filosofia é advertir as pessoas quanto ao perigo das conclusões precipitadas. Além disso, as conclusões precipitadas podem levar a várias formas de superstição.
— Como?
— Você vê um gato preto atravessando a rua. Neste mesmo dia, um pouco mais tarde, você tropeça, cai e quebra o braço. Isto não significa que exista uma relação de causa e efeito entre os dois eventos. Também na ciência é muito importante não tirar conclusões precipitadas. Embora muitas pessoas fiquem curadas depois de tomar determinado medicamento, isto não significa que foi o medicamento que as curou. Por isso precisamos ter um grupo de controle formado por indivíduos que acreditam estar tomando o mesmo medicamento, quando na verdade estão tomando bolinhas de farinha e água. Se estas pessoas também se curarem, então deve haver um terceiro fator que as curou: por exemplo, a fé no poder de cura do medicamento.
— Acho que aos poucos estou entendendo o que significa empirismo.
— Também no âmbito da ética e da moral Hume se opôs ao pensamento racionalista. Os racionalistas consideravam uma qualidade inata da razão humana o fato de ela poder distinguir entre certo e errado. Esta idéia do chamado direito natural nós já a encontramos em muitos filósofos, de Sócrates a Locke. Mas Hume não acredita que a razão determina o que dizemos e fazemos.
— Se não é ela, o que seria?
— Nossos sentimentos. Quando você decide ajudar um necessitado, foram os sentimentos que levaram você a isto, e não a razão.
— E se eu não tiver vontade de ajudar?
— Também nesse caso os sentimentos são decisivos. Não ajudar um necessitado não é uma coisa nem racional, nem irracional, mas pode ser uma coisa impiedosa.
— Contudo, certamente deve haver um limite em algum lugar. Todos nós sabemos que não é certo matar uma pessoa.
— Segundo Hume, todos nós temos um sentimento acerca do bem-estar e do mal-estar dos outros. Temos, portanto, a capacidade de sentir compaixão pelos outros. Mas nada disso tem a ver com a razão.
— Não sei se estou bem certa sobre isto.
— Nem sempre é um ato de irracionalidade tirar alguém de nosso caminho, Sofia. Quando se quer conseguir alguma coisa, esta pode ser uma boa forma de se atingir este objetivo.
— Francamente! Protesto!
— Então me explique por que não podemos eliminar alguém que nos estorva.
— O outro também ama a vida. Por isso não podemos eliminá-lo.
— Isto é uma explicação lógica?
— Não faço a menor idéia.
— O que você fez foi derivar de uma oração descritiva, como “O outro também ama a vida”, uma oração normativa: “Por isso não podemos eliminá-lo.” Do ponto de vista estritamente racional, isto é um absurdo. Do mesmo modo, do fato de que muitas pessoas sonegam impostos você poderia concluir que também pode e deve sonegar. Hume deixou claro que as conclusões não devem ser tiradas saltando-se de sentenças do ser para sentenças do dever ser. Não obstante, isto acontece com muita freqüência, inclusive em artigos de jornal, programas de partidos e discursos de parlamentares. Você gostaria de ouvir alguns exemplos?
— Sim.
— “Cada vez mais pessoas viajam de avião. Por esta razão, é preciso construir mais aeroportos.” Você acha a conclusão convincente?
— Não. É uma conclusão idiota, pois temos de pensar também no meio ambiente. Pessoalmente, acho que seria preferível ampliar a rede de trilhos das ferroviárias.
— Veja outro exemplo: “A ampliação dos poços de petróleo vai aumentar em 10% o padrão de vida da população. Por esta razão, é preciso abrir o quanto antes novos poços de petróleo”.
— Absurdo. Também neste caso é preciso pensar no meio ambiente. Além disso, nosso padrão de vida já é elevado o suficiente.
— Outro exemplo muito comum: “Esta lei foi promulgada pelo Parlamento e por isso todos os cidadãos têm de respeitá-la”. Acontece que não são raros os casos em que a observância de leis que são “baixadas” contraria as convicções mais profundas das pessoas.
— Entendo.
— Vimos, portanto, que não podemos demonstrar por meio da razão como devemos nos comportar. Quando agimos cientes de nossa responsabilidade, isto não significa que estamos aguçando nossa razão, mas que estamos aguçando nossos sentimentos pelo bem-estar dos outros. Hume costumava dizer que, do ponto de vista da razão, preferir a destruição do mundo a um arranhão no dedo era algo que se justificava.
— Que afirmação mais terrível!
— E pode ser mais terrível ainda. Você sabe que os nazistas eliminaram milhões de judeus. O que você diria que não estava certo com os nazistas: sua razão ou o seu sentimento?
— Acho que não havia alguma coisa certa era com o sentimento deles.
— Pois é. Em muitos casos, tratava-se de pessoas mentalmente sãs. Aliás, não são raras as vezes em que encontramos um frio calculismo por trás de decisões as mais insensíveis. Depois da guerra, muitos nazistas foram condenados, mas não por terem sido irracionais. Foram condenados por sua crueldade. E o oposto também é possível: acontece de pessoas mentalmente perturbadas serem absolvidas por seus crimes. Chamamos isto de “inimputabilidade no momento da ação”. Por outro lado, nunca ninguém foi absolvido por “falta de sentimento” no momento do crime.
— Só faltava essa!
— Mas não precisamos recorrer aos exemplos mais grotescos. Depois de uma grande enchente, por exemplo, quando há milhares de desabrigados precisando de ajuda, são os nossos sentimentos que decidem se vamos ajudar ou não. Se fôssemos pessoas insensíveis e deixássemos esta decisão à “frieza da razão”, poderíamos pensar que num mundo que sofre com a superpopulação até que seria bom se alguns milhares de pessoas morressem.
— Fico furiosa quando me passa pela cabeça que alguém possa pensar assim.
— E neste caso não é a sua razão que fica furiosa.
— Acho que podemos parar por aqui.
CAPÍTULO 22 (EXCERTO)
BERKELEY
(Páginas 302-305.)
(…)
Alberto não respondeu. Atravessou a sala e sentou-se na poltrona, ao lado da mesinha.
— Ainda precisamos conversar um pouco sobre Berkeley — disse ele.
Sofia já tinha se sentado. Sem querer, flagrou-se roendo as unhas.
— George Berkeley foi um bispo irlandês, que viveu entre 1685 e 1753 — começou Alberto, e depois ficou um bom tempo sem dizer mais nada.
— Berkeley foi um bispo irlandês… — repetiu Sofia para retomar o fio da meada.
— Mas ele foi também um filósofo…
— Sim?
— …para quem a filosofia e a ciência de seu tempo constituíam uma ameaça para a visão cristã do mundo. Além disso, Berkeley achava que o materialismo, cada vez mais consistente e difundido, colocava em risco a crença cristã de que Deus criou e mantém vivo tudo o que existe na natureza…
— Sim?
— Ao mesmo tempo, porém, Berkeley foi um dos mais coerentes representantes do empirismo.
— Ele também era da opinião de que não podemos saber do mundo mais do que percebemos pelos nossos sentidos?
— E não apenas isto. Berkeley dizia que as coisas do mundo são, de fato, exatamente da forma como nós as percebemos, mas que não são “coisas”.
— Explique um pouco melhor.
— Você ainda se lembra de que Locke chamara a atenção para o fato de não podermos afirmar nada sobre as “qualidades secundárias” das coisas. Nesse caso, não podemos afirmar que uma maçã é verde ou azeda. Tudo o que podemos dizer é que nós a percebemos assim. Mas Locke disse também que as “qualidades primárias”, tais como a densidade, o peso, a gravidade, realmente pertencem à realidade que nos cerca. Esta realidade exterior teria, portanto, uma “substância” física.
— Lembro-me muito bem disso. Aliás, acho que Locke conseguiu mostrar uma diferença muito importante.
— Ah, Sofia, se fosse só isso…
— Continue!
— Locke, assim como Descartes e Spinoza, considerava o mundo físico, portanto, uma realidade.
— Sim?
— É justamente isto que Berkeley coloca em dúvida. E ele o faz baseado num empirismo muito coerente. Berkeley diz que tudo o que existe é só o que percebemos, mas que aquilo que percebemos não é “matéria” ou “substância”. Não percebemos as coisas como “coisas” tangíveis. Para ele, pressupor que aquilo que percebemos possui uma “substância” que lhe é inerente não passa de uma conclusão precipitada. Nesse caso, faltam-nos meios para provar o que afirmamos com base na experiência.
— Besteira! Dê uma olhada nisso.
E, dizendo isto, Sofia bateu com a mão fechada na mesa.
— Ai! — deixou escapar, pois não previu a intensidade da batida. — Isto aqui não é a prova de que a mesa é uma mesa de verdade e de que ela é sim matéria ou substância?
— O que você sentiu quando bateu com o punho fechado na mesa?
— O impacto da mão contra uma coisa dura.
— Você experimentou nitidamente a sensação de bater em alguma coisa dura, mas não sentiu a verdadeira matéria da mesa. Da mesma forma, você pode sonhar que está batendo em alguma coisa dura, embora no sonho esta coisa não exista, não é mesmo?
— É… no sonho não existe.
— Você deve saber que é perfeitamente possível induzir alguém a achar que ele ou ela é capaz de “sentir” qualquer tipo de coisa. Uma pessoa pode ser hipnotizada e achar que sente calor e frio, ou então que está sendo acariciada ou levando um soco na cara.
— Mas se não foi a solidez da mesa em si, o que me levou a sentir o que eu senti?
— Berkeley acreditava que foi a vontade ou o espírito. Ele acreditava também que todas as nossas idéias tinham uma causa fora de nossa consciência, mas que esta causa não era de natureza material. Para Berkeley, esta causa era de natureza espiritual.
Sofia recomeçara a roer as unhas. Alberto continuou:
— Segundo Berkeley, portanto, minha alma pode ser a causa das minhas próprias idéias, assim como acontece quando sonho, mas só outra vontade, só outro espírito pode ser a causa das idéias que formam nosso mundo material. Berkeley dizia que tudo vinha do espírito “onipresente, por meio do qual tudo existe”.
— E que espírito seria este?
— É claro que Berkeley está pensando em Deus. Ele chegou mesmo a afirmar que percebemos com mais nitidez a existência de Deus do que a de qualquer outra pessoa.
— Quer dizer que não podemos ter certeza de que existimos?
— Bem… para Berkeley, tudo o que vemos e sentimos é um efeito da força de Deus, pois Deus está presente no fundo de nossa consciência e é a causa de toda a multiplicidade de idéias e sensações a que estamos constantemente sujeitos. Toda a natureza que nos cerca, e também toda a nossa existência, estariam portanto em Deus. Ele seria a causa única de tudo o que existe.
— Estou totalmente confusa, para dizer o mínimo.
— “Ser ou não ser” não seria, portanto, a questão central. Importante seria perguntar também o quê somos. Será que somos pessoas de verdade, feitas de carne e osso? Será que o nosso mundo consiste em coisas reais, ou será que tudo o que nos cerca não passa de consciência?
De novo Sofia começou a roer as unhas. Alberto continuou:
— Pois Berkeley não duvida apenas da realidade material. Ele duvida também que o tempo e o espaço possuam uma existência absoluta ou autônoma. Nossa percepção de tempo e espaço pode estar apenas em nossa consciência. Uma ou duas semanas para nós não precisam ser necessariamente uma ou duas semanas para Deus…
CAPÍTULO 24 (EXCERTO)
O ILUMINISMO
(Páginas 336-342.)
(…)
Sofia fechou a porta e colocou o boletim cheio de boas notas sobre a mesa da cozinha. Depois atravessou de gatinhas a sebe do jardim e se embrenhou na floresta.
Mais uma vez teve de atravessar o lago a remo. Alberto estava sentado à porta da cabana quando ela chegou. Ele acenou para que ela viesse se sentar a seu lado.
O tempo estava bom, se bem que do lago vinha uma corrente de ar frio, penetrante. O lago parecia não ter se recuperado ainda da tormenta do dia anterior.
— Vamos direto ao assunto — disse Alberto. — Depois de Hume, o alemão Kant foi o próximo grande construtor de um sistema filosófico. Mas também a França teve muitos pensadores importantes no século XVIII. Podemos dizer que na primeira metade do século XVIII o centro filosófico da Europa esteve na Inglaterra, em meados do século se deslocou para a França e em fins do século para a Alemanha.
— Para resumir, um deslocamento da parte ocidental para a oriental.
— Exatamente. Vou resumir de forma extremamente breve alguns pensamentos que eram comuns a todos os filósofos do Iluminismo francês. Trata-se aqui de nomes importantes como Montesquieu, Voltaire, Rousseau e muitos, muitos outros. Vou me concentrar em sete pontos.
(…)
— (…) Muito bem, o primeiro conceito-chave é, portanto, a revolta contra as autoridades. Muitos dos filósofos do Iluminismo francês tinham visitado a Inglaterra, que em certo sentido era mais liberal do que a própria França. A ciência natural inglesa, sobretudo Newton e sua física universal, fascinou esses filósofos franceses. Mas também os filósofos ingleses foram fonte de inspiração para eles, principalmente Locke e sua filosofia política. De volta à sua pátria, a França, eles começaram pouco a pouco a se rebelar contra o velho autoritarismo. Eles achavam que era muito importante permanecerem céticos a todas as verdades herdadas e acreditavam que o próprio indivíduo deveria encontrar respostas às suas perguntas. Nesse ponto, a fonte de inspiração era a tradição de Descartes.
— Pois ele propunha a reconstrução de tudo de baixo para cima.
— Exatamente. A revolta contra o velho autoritarismo não tardou a se voltar também contra o poder da Igreja, do rei e da aristocracia. No século XVIII, essas instituições eram muito mais poderosas na França do que na Inglaterra.
— E então veio a Revolução.
— Sim, no ano de 1789. As novas idéias, porém, vieram mais cedo. Nosso próximo conceito chave é o racionalismo.
— Eu pensei que o racionalismo tivesse sido enterrado junto com Hume.
— Hume só morreu em 1776, vinte anos depois de Montesquieu e só dois anos antes de Voltaire e de Rousseau, que morreram em 1778. Talvez você se lembre de que Locke não foi um empírico muito coerente. Ele achava, por exemplo, que a crença em Deus e em certas normas morais era parte integrante da consciência humana. Esta idéia também foi o núcleo da filosofia do Iluminismo francês.
— Você também disse que os franceses sempre foram mais racionalistas do que os ingleses.
— E esta diferença remonta à Idade Média. Quando os ingleses falam de common sense, os franceses gostam de falar de évidence. A expressão inglesa pode ser traduzida por “o que é do conhecimento de todos” e a expressão francesa por “evidência”. O common sense apelava à razão, e o fato de ela existir era évident.
— Entendo.
— À semelhança dos humanistas da Antigüidade, como Sócrates e os estóicos, a maioria dos filósofos do Iluminismo tinha uma crença inabalável na razão humana. Isto era algo tão evidente que muitos chamam o período do Iluminismo francês simplesmente de “racionalismo”. A nova ciência natural deixara claro que tudo na natureza era racional. Assim, os filósofos iluministas consideravam sua tarefa criar um alicerce para a moral, a ética e a religião que estivesse em sintonia com a razão imutável do homem. E isto levou ao pensamento do Iluminismo propriamente dito.
— Nosso terceiro ponto.
— Dizia-se, então, que era chegado o momento de “iluminar” as amplas camadas da população, ou seja, de esclarecê-las. Esta seria a condição sine qua non de uma sociedade melhor. Entre o povo, porém, imperavam a incerteza e a superstição. Por isso, dedicou-se especial atenção à educação. Não é por acaso que a pedagogia, como ciência, foi fundada na época do Iluminismo.
— Quer dizer que o sistema educacional vem da Idade Média e a pedagogia do Iluminismo.
— Podemos dizer que sim. O grande monumento do Iluminismo é, paradigmaticamente, uma enciclopédia. Refiro-me à chamada Enciclopédia surgida entre 1751 e 1772 em vinte e oito volumes, com contribuições de todos os grandes filósofos iluministas. Dizia-se que ali “havia de tudo, da produção de agulhas à fundição de canhões”.
— O próximo ponto é o otimismo cultural.
— Você poderia deixar este cartão de lado enquanto estou falando?
— Desculpe.
— Os filósofos iluministas diziam que somente quando a razão e o conhecimento se tivessem difundido entre todos é que a humanidade faria grandes progressos. Era apenas uma questão de tempo para que desaparecessem a irracionalidade e a ignorância e surgisse uma humanidade iluminada, esclarecida. Este pensamento dominou a Europa ocidental até há poucos décadas. Hoje não estamos assim tão convencidos de que o progresso do conhecimento leva necessariamente a melhores condições de vida. Mas esta crítica da “civilização” já tinha sido feita pelos próprios filósofos do Iluminismo.
— Então deveríamos ter ouvido o que eles disseram.
— “De volta à natureza!”: esta era a palavra de ordem da crítica à civilização. Só que para os filósofos do Iluminismo a natureza era quase a mesma coisa que a razão. Isto porque, para eles, a razão era uma dádiva da natureza ao homem, em oposição, por exemplo, à Igreja ou à civilização. Enfatizava-se que os “povos naturais” eram freqüentemente mais sadios e mais felizes do que os europeus, exatamente porque não possuíam uma civilização. A palavra de ordem “De volta à natureza” é de Jean-Jacques Rousseau. Ele dizia que a natureza era boa e que o homem, portanto, era “naturalmente bom”. Todo o mal estaria na sociedade civilizada, que afasta o homem de sua natureza. Por isso Rousseau também queria que as crianças vivessem por mais tempo possível em seu estado “natural” de inocência. Podemos dizer que a noção de um valor próprio da infância vem do Iluminismo. Até então, a infância tinha sido vista como uma preparação para a vida adulta. Mas somos todos seres humanos, e vivemos nossa vida na Terra também como crianças.
— Concordo plenamente.
— Por fim, os filósofos do Iluminismo se preocuparam também com uma “religião natural”.
— E o que eles queriam dizer com isto?
— Queriam dizer que a religião também devia estar em consonância com a “razão natural” do homem. Muitos lutaram por aquilo que podemos chamar de cristianismo humanista, nosso sexto ponto da lista. É claro que também houve os materialistas convictos, que não acreditavam em Deus e professavam o ateísmo. Mas a maioria dos filósofos iluministas achava irracional imaginar um mundo sem Deus. Para eles, o mundo era racional demais para ser encarado de outra forma. Newton, por exemplo, defendera o mesmo ponto de vista. Da mesma forma, a crença na imortalidade da alma era vista como algo racional. À semelhança de Descartes, para os filósofos do Iluminismo a questão de saber se o homem possuía uma alma imortal também era mais uma questão da razão do que da fé.
— É exatamente isto que me incomoda um pouco. Para mim, este é um exemplo típico de algo em que só se pode acreditar, mas que não se pode saber.
— Mas você não vive no século XVIII. Os filósofos iluministas queriam libertar o cristianismo dos muitos dogmas e princípios religiosos irracionais que, ao longo da história da Igreja, tinham sido amalgamados à simplicidade dos ensinamentos de Jesus Cristo.
— Ah, bom. Nesse caso acho que entendo o que eles queriam dizer.
— Muitos também professavam o chamado deísmo.
— Explicação, por favor.
— Por deísmo entende-se uma concepção segundo a qual Deus criou o mundo em tempos há muito passados, mas nunca se revelou a ele desde então. Desse modo, Deus é visto como um ser superior, que só se revela ao homem através da natureza e de suas leis, mas nunca através de uma forma “sobrenatural”. Tal “Deus filosófico”, nós o encontramos já em Aristóteles. Para ele, Deus era a causa primeira, o impulsor do universo.
— Só nos resta agora um ponto: os direitos humanos.
— Em compensação, talvez ele seja o mais importante. Podemos dizer com segurança que a filosofia do Iluminismo francês era mais prática do que a inglesa.
— Você quer dizer que as conclusões que eles tiravam de sua filosofia eram aplicadas diretamente na prática?
— Sim. Os filósofos iluministas franceses não se contentaram apenas com concepções teóricas sobre o lugar do homem na sociedade. Eles lutaram ativamente por aquilo que chamaram de “direitos naturais” dos cidadãos. Tratava-se sobretudo de uma luta contra a censura, ou seja, pela liberdade de imprensa. No que respeita à religião, à moral e à política, o indivíduo precisava ter assegurado o seu direito à liberdade de pensamento e de expressão de seus pontos de vista. Além disso, lutou-se contra a escravidão e por um tratamento mais humano dos infratores das leis.
— Acho que concordo com tudo isto.
— O princípio da “inviolabilidade do indivíduo” acabou resultando na “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, promulgada pela Assembléia Nacional Francesa em 1789. Esta declaração dos direitos humanos foi uma base importante para a Constituição da Noruega, de 1814.
— Mas muitas pessoas ainda precisam continuar lutando por esses direitos.
— Sim, infelizmente. Os filósofos do Iluminismo queriam estabelecer determinados direitos de que todas as pessoas seriam titulares, simplesmente por terem nascido como seres humanos. É isto que eles chamam de “direito natural”. Até hoje falamos do “direito natural” que em certos casos pode se opor frontalmente às leis oficiais de um país. E até hoje vemos indivíduos – ou mesmo populações inteiras – que evocam esses “direitos naturais” para se defender da falta de liberdade, da falta de direitos e da repressão.
— Como eram os direitos da mulher naquela época?
— A Revolução Francesa de 1789 declarou uma série de direitos que deveriam valer para todos os cidadãos. Só que cidadãos eram basicamente os homens. Apesar disso, é exatamente durante a Revolução Francesa que surge o primeiro exemplo de um movimento de mulheres.
— Já não era sem tempo!
— Já em 1787, o filósofo iluminista Condorcet publica um artigo sobre os direitos da mulher. Nele, o filósofo garante às mulheres os mesmos direitos naturais dos homens. Durante a Revolução Francesa de 1789, muitas mulheres participaram ativamente da luta contra a aristocracia. Por exemplo, foram elas que lideraram as passeatas que acabaram levando o rei a abandonar o seu castelo em Versalhes. Em Paris, formaram-se diferentes grupos de mulheres. Paralelamente à igualdade de direitos políticos em relação aos homens, elas reivindicavam também mudanças na legislação conjugal e melhores condições de vida.
— E elas conseguiram esses direitos?
— Não. Conforme aconteceu outras vezes mais tarde, a questão dos direitos da mulher foi colocada no bojo de uma revolução. Contudo, logo que as coisas se acalmaram numa nova ordem, a antiga predominância dos homens foi restabelecida.
— Típico…
— Uma das que mais lutaram pelos direitos da mulher durante a Revolução Francesa foi Olympe de Gouges. Em 1791, dois anos depois da Revolução, portanto, ela publicou uma declaração dos direitos da mulher. É que a “Declaração dos direitos do homem e do cidadão” não tinha dedicado muito espaço aos direitos naturais das mulheres. Olympe de Gouges reivindicava para as mulheres exatamente os mesmos direitos dos homens.
— E qual foi o resultado disso?
— Ela foi decapitada em 1793 e as mulheres proibidas de toda e qualquer atividade política.
— Que loucura!
— Somente no século XIX é que o movimento de mulheres começa efetivamente a ganhar terreno, tanto na França quanto em toda a Europa. E foi muito lentamente que essa luta começou a dar os seus primeiros frutos. Na Noruega, por exemplo, as mulheres só passaram a ter direito ao voto em 1913. E em muitos países elas continuam a lutar pela igualdade de direitos.
— Pois elas podem contar com a minha ajuda.
CAPÍTULO 25 (EXCERTO)
KANT
(Páginas 346-360.)
(…)
— (…) Vamos nos sentar perto da lareira. Vou lhe contar alguma coisa sobre Kant.
Nesse momento, Sofia encontrou uns óculos sobre uma mesinha colocada entre duas poltronas. Ela percebeu que as duas lentes eram vermelhas. Talvez fosse um par de óculos de sol bem fortes…
— São quase duas horas — disse ela. — Preciso estar em casa o mais tardar às cinco. Minha mãe na certa deve ter planejado alguma coisa para o meu aniversário.
— Então temos três horas.
— Vamos começar.
— Immanuel Kant nasceu em Königsberg, uma cidade da Prússia oriental, em 1724. Ele era filho de um seleiro e passou quase toda a sua vida em sua cidade natal, até falecer aos oitenta anos. Sua família era muito fervorosa em sua fé cristã, razão pela qual a convicção religiosa do próprio Kant foi um elemento muito importante para a sua filosofia. Como Berkeley, Kant também queria salvar o fundamento da fé cristã.
— Já ouvi o bastante sobre Berkeley, obrigada.
— Dos filósofos de que falamos, Kant foi o primeiro a trabalhar como professor numa universidade. Ele foi o que freqüentemente chamamos de “especialista em filosofia”.
— Especialista em filosofia?
— A palavra “filósofo” é empregada hoje em dia em dois sentidos levemente diferentes. Por filósofo entendemos, sobretudo, aquele que tenta encontrar suas próprias respostas para questões filosóficas. Mas um filósofo também pode ser um especialista em história da filosofia, sem necessariamente querer desenvolver sua própria filosofia.
— E Kant foi um especialista em filosofia?
— Ele foi ambas as coisas. Se tivesse sido apenas um professor brilhante, um especialista, portanto, no pensamento de outros, ele não ocuparia um lugar tão importante na história da filosofia. Igualmente importante, porém, é o fato de Kant realmente conhecer como poucos a tradição filosófica. Ele conhecia muito bem tanto os racionalistas como Descartes e Spinoza, quanto empíricos como Locke, Berkeley e Hume.
— Já pedi para você não tocar mais no nome de Berkeley.
— Sabemos que, para os racionalistas, a base de todo o conhecimento humano estava na consciência do homem. E sabemos também que os empíricos queriam derivar das impressões dos sentidos todo o conhecimento do mundo. Além disso, Hume chamara a atenção para o fato de haver limites definidos para as conclusões que podemos tirar com a ajuda dos nossos sentidos.
— E com qual deles Kant concordava?
— Ele achava que todos tinham um pouco de razão, mas que também tinham se enganado em alguns pontos. De qualquer forma, todos eles tinham se dedicado à tarefa de investigar o que podemos saber do mundo. Este era o projeto filosófico comum a todos os filósofos depois de Descartes. Havia duas possibilidades em discussão: o mundo seria exatamente como nós o percebemos, ou como se mostra à nossa razão?
— E o que Kant achava?
— Kant achava que tanto os sentidos quanto a razão eram muito importantes para a nossa experiência do mundo. Contudo, ele achava que os racionalistas atribuíam uma importância exagerada à razão, enquanto os empíricos eram parciais demais ao defender a experiência centrada nos sentidos.
— Se você não citar logo um exemplo, tudo isto não vai passar de palavras.
— Como ponto de partida, Kant concorda com Hume e com os empíricos quanto ao fato de que devemos todos os nossos conhecimentos às impressões dos sentidos. Mas, e nesse ponto ele concorda com os racionalistas, nossa razão também contém pressupostos importantes para o modo como percebemos o mundo à nossa volta. Em nós mesmos, portanto, existem certas condições que determinam nossa concepção do mundo.
— É este o exemplo?
— Acho melhor fazermos um experimento. Você poderia pegar os óculos que estão sobre a mesinha? Isso, obrigado. Agora coloque-os.
Sofia colocou os óculos. Tudo à sua volta ficou vermelho. As cores claras ficaram vermelho-claras e as escuras vermelho-escuras.
— O que você está vendo?
— O mesmo de antes, só que tudo vermelho.
— A explicação para isto é que as lentes dos óculos determinam o modo como você percebe a realidade. Tudo o que você vê é parte do mundo que está fora de você mesma; mas o modo como você enxerga tudo isto também é determinado pelas lentes dos óculos. Você não pode dizer que o mundo é vermelho, ainda que neste momento ele pareça vermelho.
— Não, é claro que não…
— Se você caminhar com eles pela floresta, ou usá-los em casa, na curva do capitão, você verá tudo o que sempre viu. Contudo, não importa o que você visse, tudo seria vermelho.
— Até que eu tirasse os óculos, certo?
— Os óculos são a premissa para o modo como você enxerga o mundo. Da mesma maneira, para Kant, também possuímos certas premissas em nossa razão, que deixam suas marcas em todas as nossas experiências.
— A que premissas ele está se referindo?
— Não importa o que possamos ver, sempre perceberemos o que vemos sobretudo como fenômenos no tempo e no espaço. Kant chamava o tempo e o espaço de “formas da sensibilidade”. E ele sublinhava que essas duas formas já existem em nossa consciência antes de qualquer experiência. Isto significa que podemos saber, antes de experimentar alguma coisa, que vamos experimentá-la como fenômeno no tempo e no espaço. Somos incapazes, por assim dizer, de tirar os óculos da razão.
— Ele achava, portanto, que o fato de percebermos as coisas no tempo e no espaço era uma característica inata aos seres humanos?
— De certa forma, sim. O que vemos depende de termos crescido na Índia ou na Groenlândia. Em toda a parte, porém, percebemos o mundo como algo no tempo e no espaço. E isto é uma coisa que podemos afirmar de antemão.
— Quer dizer que o tempo e o espaço não existem fora de nós mesmos?
— Não. Ou pelo menos isto não é o mais importante. Kant explica que o espaço e o tempo pertencem à condição humana. Tempo e espaço são sobretudo propriedades da nossa consciência, e não atributos do mundo físico.
— Esta é uma visão totalmente nova.
— A consciência humana não é, portanto, uma “placa” que só registra passivamente as impressões sensoriais vindas de fora. Ela também é criativa; é uma instância formadora. A própria consciência coloca sua marca no modo como percebemos o mundo. Talvez possamos comparar isto com o que acontece quando colocamos água num jarro de vidro. A água toma a forma do jarro. Do mesmo modo, as impressões dos sentidos se adaptam às nossas “formas da sensibilidade”.
— Acho que entendo o que você quer dizer.
— Kant afirma que não é apenas a consciência que se adapta às coisas. As coisas também se adaptam à consciência. O próprio Kant chama isto de “a virada de Copérnico” na questão do conhecimento humano. Com isto ele quer dizer que esta reflexão é tão nova e tão radical em relação à tradição quanto a afirmação de Copérnico de que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário.
— Agora entendo o que ele queria dizer quando afirmou que tanto os racionalistas quanto os empíricos estavam certos em parte. De certa forma, os racionalistas tinham esquecido a importância da experiência dos sentidos, enquanto os empíricos não quiseram ver que a razão co-determina nossa concepção de mundo.
— Para Kant, até a lei da causalidade, que, segundo Hume, o homem era incapaz de experimentar, é elemento componente da razão humana.
— Explique um pouco melhor.
— Você ainda se lembra de que, para Hume, era a força do hábito que nos fazia ver uma relação de causa entre os processos da natureza. Isto porque Hume achava que não podemos sentir que a bola preta de bilhar é a causa do início do movimento da bola branca. Por esta razão, segundo ele, não podemos provar que a bola preta sempre colocará em movimento a branca.
— Ainda me lembro disso.
— Mas Kant considera uma propriedade da razão humana exatamente isto que, para Hume, não pode ser provado. A lei da causalidade é eterna e absoluta, simplesmente porque a razão humana considera tudo o que acontece dentro de uma relação de causa e efeito.
— E novamente eu diria que a lei da causalidade está na natureza e não em nós mesmos.
— Kant diz que ela está dentro de nós. Ele concorda com Hume em que não podemos saber com certeza como o mundo é “em si”. Só podemos saber como o mundo é “para mim” e, portanto, para todos os homens. A diferença que Kant estabelece entre as “coisas em si” e as “coisas para nós” é a sua mais importante contribuição para a filosofia. Nunca seremos capazes de saber com toda a certeza como as coisas são “em si”. Só podemos saber como elas “se mostram” a nós. Em compensação, podemos dizer com certeza como as coisas serão percebidas pela razão humana.
— E isto está certo?
— De manhã, antes de sair de casa, você não pode saber o que vai ver e vivenciar no dia que está começando. Entretanto, você pode saber que o que verá e viverá será percebido como um evento no tempo e no espaço. Além disso, você pode estar certa de que a lei da causa e efeito terá validade, simplesmente porque você a carrega consigo enquanto parte da sua consciência.
— E poderia ser de outro jeito?
— Sim. Nossos sentidos poderiam ser outros, completamente diferentes, e também poderíamos perceber o tempo e o espaço de uma maneira completamente diferente. Além disso, poderíamos ser feitos de modo a não buscar a causa para os acontecimentos à nossa volta.
— Você tem um exemplo?
— Imagine um gato deitado no chão do quarto. Imagine, então, uma bola rolando pelo chão. O que o gato faz neste caso?
— Já fiz esta experiência. O gato corre atrás da bola.
— Certo. Agora imagine que, em vez do gato, você esteja no quarto. Se de repente você vê uma bola rolando, você sai correndo atrás dela?
— Primeiro eu me viro para ver de onde a bola veio.
— Sim, isto porque você é uma pessoa e quer necessariamente saber a causa daquele acontecimento. A lei da causalidade faz parte, portanto, da sua constituição.
— Mas isso é verdade mesmo?
— Hume tinha explicado que não podemos nem sentir, nem provar as leis da natureza. Kant se sentia muito pouco à vontade em relação a esta afirmação. Ele acreditava poder provar a validade absoluta das leis da natureza, à medida que mostrasse que quando falamos em leis da natureza estamos falando, na verdade, de leis do conhecimento humano.
— Será que um bebê também se viraria para tentar descobrir quem tinha empurrado a bola?
— Provavelmente não. Mas Kant diz que, numa criança, a razão ainda não está plenamente desenvolvida, porque ela ainda não dispõe de material sensitivo para trabalhar. De um lado, temos as condições exteriores, sobre as quais nada podemos saber antes de as termos percebido. Podemos chamá-las de material do conhecimento. De outro, temos as condições intrínsecas ao próprio homem: por exemplo, o fato de que percebemos tudo como eventos no tempo e no espaço e como processos sujeitos a uma imutável lei da causalidade. A isto podemos chamar de forma do conhecimento.
(…)
[Alberto continuou:]
— Kant também chamou a atenção para o fato de haver limites bem claros para o que o homem pode saber. Podemos dizer que são os óculos da razão que nos impõem esses limites.
— Como assim?
— Você ainda deve se lembrar de quais tinham sido as “grandes” questões filosóficas dos filósofos anteriores a Kant: se o homem possui uma alma imortal, se Deus existe, se a natureza é composta por unidades mínimas indivisíveis, se o universo é infinito ou não.
— Sim.
— Kant achava que o homem jamais seria capaz de chegar a um conhecimento seguro acerca dessas coisas. Isto não significa que ele não queria se ocupar dessas questões. Ao contrário. Se ele simplesmente tivesse se recusado a abordar essas questões, dificilmente poderíamos chamá-lo de filósofo.
— E o que ele fez?
— Sim, agora você vai precisar de um pouco de paciência. Kant achava que precisamente nessas grandes questões filosóficas a razão operava fora dos limites daquilo que nós, seres humanos, podemos compreender. Por outro lado, uma característica intrínseca à nossa natureza, à nossa razão, seria justamente um impulso básico no sentido de colocar estas perguntas. Só que quando perguntamos, por exemplo, se o universo é finito ou infinito, na verdade estamos querendo saber algo sobre um todo do qual nós mesmos somos apenas uma (ínfima) parte. Assim, nunca poderemos conhecer inteiramente este todo.
— Por que não?
— Quando você colocou os óculos de lentes vermelhas, ficamos sabendo que, para Kant, existem dois elementos que contribuem para o nosso conhecimento do mundo.
— Sim, a experiência dos sentidos e a razão.
— Isso mesmo. O material para o nosso conhecimento nos é dado através dos sentidos, mas este material se adapta, por assim dizer, às características de nossa razão. Uma dessas características, por exemplo, é a de perguntar pela causa dos acontecimentos.
— Por exemplo, querer saber quem atirou a bola que vem rolando pelo quarto.
— Ou qualquer outra coisa. Mas quando nos perguntamos de onde vem o mundo, e discutimos algumas respostas possíveis, a consciência fica como que parada, pois não possui qualquer material sensorial para “processar”; não possui o registro de qualquer experiência que possa retrabalhar. Isto porque, como dissemos, nunca iremos experimentar toda a enorme realidade de que somos apenas uma ínfima parte.
— De certa forma, somos uma pequena parte da bola que rola no chão. E por isso não podemos saber de onde ela vem.
— Só que sempre continuará sendo uma característica da razão humana perguntar de onde a bola vem. Por esta razão é que perguntamos e perguntamos a nos esforçamos a mais não poder para encontrar respostas a estas graves perguntas. O problema é que não temos nada de sólido a que nos apegar. Nunca conseguimos chegar a respostas seguras, pois nossa razão está em ponto morto, por assim dizer.
— Conheço muito bem esse sentimento.
— Nas grandes questões que concernem à realidade como um todo, dois pontos de vista exatamente opostos parecerão sempre igualmente prováveis e igualmente improváveis.
— Exemplos, por favor.
— Faz tanto sentido dizer que o mundo teve um começo no tempo, quanto dizer que não houve começo algum. A razão não é capaz de decidir sobre as duas possibilidades, pois não é capaz de “abarcar” nenhuma delas. Podemos afirmar que o mundo sempre existiu, mas será que alguma coisa pode ter sempre existido sem nunca ter tido um começo? E se adotamos o ponto de vista oposto e dizemos que o mundo teve de começar em algum momento, isto significa que ele teve de surgir do nada, senão estaríamos falando apenas da passagem de um estado para outro. E, nesse caso, pode alguma coisa surgir do nada, Sofia?
— Não, as duas possibilidades são igualmente inconcebíveis. E, apesar disso, uma deve estar certa e a outra errada.
— Você ainda se lembra de que Demócrito e os materialistas disseram que a natureza consiste em minúsculas unidades, a partir das quais tudo se compõe. Outros, como Descartes por exemplo, acreditavam que a realidade estendida podia ser dividida em partes cada vez menores. Qual dos dois tinha razão?
— Ambos… e também nenhum dos dois.
— Continuando, muitos filósofos disseram que a liberdade do homem era uma de suas principais características. Ao mesmo tempo, encontramos filósofos, como os estóicos e Spinoza, por exemplo, para quem tudo no mundo acontece necessariamente por força das leis da natureza. Também nesse ponto Kant acha que a razão do homem não pode emitir um julgamento seguro.
— Ambos os pontos de vista são igualmente sensatos e insensatos.
— E, por fim, também não podemos provar a existência de Deus com nossa razão. Aqui, racionalistas como Descartes, por exemplo, tentaram provar que deve haver um Deus, simplesmente porque temos em nós a idéia de um ser perfeito. Outros, dentre eles Aristóteles e são Tomás de Aquino, defendiam a opinião de que deveria haver um Deus, porque tudo precisa ter uma causa impulsora.
— E o que achava Kant?
— Ele rejeitava ambas as provas da existência de Deus. Nem a razão, nem a experiência são capazes de embasar com segurança a afirmação de que Deus existe. Para a razão, é tanto provável quanto improvável que Deus exista.
— Mas no começo você disse que Kant queria salvar os fundamentos da fé cristã.
— Sim, e de fato ele garante espaço para a religião em seu pensamento justamente naquela zona à qual não conseguem chegar nem a nossa experiência, nem a nossa razão. E justamente este vácuo pode ser preenchido pela fé religiosa.
— E foi assim que ele salvou o cristianismo?
— Podemos dizer que sim. É preciso observar que Kant era protestante. Desde a Reforma, um traço do cristianismo protestante era justamente a fé. Desde o início da Idade Média, a Igreja católica acreditava mais na razão como um pilar da fé.
— Entendo.
— Mas Kant foi mais além do que simplesmente constatar que estas questões mais abrangentes deveriam ser deixadas à fé do homem. Ele achava que as premissas de que a alma é imortal, de que existe um Deus e de que o homem possui livre-arbítrio eram pressupostos de certa forma imprescindíveis para a moral do homem.
— Isso se parece com Descartes. Primeiro ele reflete de forma bastante crítica sobre o que podemos ou não compreender. Depois coloca Deus e tudo o mais para dentro de casa pela porta dos fundos.
— Em contraposição a Descartes, porém, Kant afirma expressamente que não foi a razão, e sim a fé, que o levou até a este ponto. Ele mesmo chama de postulado prático a fé numa alma imortal, em Deus e no livre-arbítrio do homem.
— O que significa isto?
— Postular alguma coisa significa afirmar alguma coisa que não se pode provar. Por postulado prático Kant entende algo que precisa ser afirmado para a “prática” do homem; para o seu agir e, portanto, para a sua moral. “É moralmente necessário supor a existência de Deus”, dizia ele.
(…)
[Alberto continuou:]
— (…) Antes de terminarmos nossa conversa de hoje, ainda preciso falar um pouco sobre a ética de Kant.
— Então se apresse, pois tenho de ir para casa.
— O ceticismo de Hume quanto ao que a razão e os sentidos realmente são capazes de nos dizer levou Kant a repensar muitas das questões mais importantes da vida. E isto também vale para o campo da moral.
— Hume disse que não podemos provar o que é certo e o que é errado, pois não podemos tirar nossas conclusões saltando de uma “oração do ser” para uma do “dever ser”.
— Hume achava que nem a nossa razão, nem as nossas experiências podiam estabelecer a diferença entre certo e errado. Para ele, isto era tarefa exclusiva dos nossos sentimentos. Aos olhos de Kant, este era um fundamento frágil demais.
— Dá para entender muito bem.
— Desde o início, Kant tinha a forte impressão de que a diferença entre certo e errado tinha de ser mais do que uma questão de sentimento. Nesse ponto ele concordava com os racionalistas, para quem a diferenciação entre certo e errado era algo inerente à razão humana. Todas as pessoas sabem o que é certo e o que é errado; e não o sabem porque aprenderam, e sim porque isto é algo inerente à nossa razão. Kant acreditava que todos os homens possuem uma razão prática, que nos diz a cada um o que é certo e o que é errado no campo da moral.
— Ela é uma coisa inata, portanto.
— A capacidade de distinguir entre certo e errado é tão inata quanto todas as outras propriedades da razão. Todas as pessoas entendem os acontecimentos do mundo como causados por alguma coisa e todos têm também acesso à mesma lei moral universal. Esta lei moral tem a mesma e absoluta validade das leis do mundo físico. Ela é tão basilar para a nossa vida moral quanto é fundamental para a nossa razão o fato de que tudo possui uma causa, ou de que sete mais cinco são doze.
— E o que diz esta lei moral?
— Uma vez que ela é anterior a toda e qualquer experiência, ela é “formal”. Isto significa que ela não está ligada a um grupo específico de opções na esfera da moral. Ela vale para todas as pessoas, em todas as sociedades, em todos os tempos. Ela não diz, portanto, o que você deve fazer nesta ou naquela situação. Ela diz como você deve se comportar em todas as situações.
— Mas que sentido tem uma lei moral que não nos diz como nos devemos comportar em determinada situação?
— Kant formula sua lei moral como um imperativo categórico. Por imperativo categórico Kant entende que a lei moral é “categórica”, ou seja, vale para todas as situações. Além disso, ela é também um “imperativo”, uma “ordem”, portanto, e também é absolutamente inevitável.
— Hmm…
— Entretanto, Kant formula o seu imperativo categórico de várias maneiras. Primeiro ele diz que devemos sempre agir de modo a podermos desejar que a regra a partir da qual agimos se transforme numa lei geral. Literalmente, Kant diz: “Age apenas segundo aquelas máximas através das quais possas, ao mesmo tempo, querer que elas se transformem numa lei geral”.
— Quando faço alguma coisa, preciso estar certa de que posso desejar que todos os outros façam a mesma coisa na mesma situação.
— Exatamente. Só assim você estará agindo em consonância com a lei moral interna. Kant formulou o imperativo categórico de modo a que nós tratemos as outras pessoas sempre como um fim em si mesmo, e não como um simples meio para se chegar a outra coisa.
— Não devemos, portanto, “usar” as outras pessoas em proveito próprio.
— Não, pois todas as pessoas são um fim em si mesmas. Mas isto não vale apenas para os outros; vale também para nós. Da mesma forma, não devemos usar nós mesmos como meios para se chegar a outra coisa.
— Isso me lembra um pouco a “regra de ouro”: “não faças para os outros aquilo que não desejas para ti”.
— Sim, e esta é uma diretriz formal que compreende basicamente todas as possibilidades de escolhas éticas. Podemos dizer que esta regra de ouro expressa, de certa maneira, o que Kant chamou de lei moral.
— Mas tudo isto não passa de afirmações. Hume na certa tinha razão quando disse que não podemos provar com nossa razão o que é certo e o que é errado.
— Kant considerava a lei moral tão absoluta e universal quanto a lei da causalidade, por exemplo. Esta também não pode ser provada pela razão, e nem por isso deixa de ser inevitável. Ninguém contestaria isto.
— Começo a sentir que estamos falando mesmo é sobre a consciência. Todo mundo tem uma consciência, não tem?
— Sim, quando Kant descreve a lei moral, o que ele descreve é a consciência humana. Não podemos provar o que a consciência diz, mas sabemos o que ela diz.
— Às vezes sou muito simpática e dócil para com outras pessoas, simplesmente porque sei que aquilo será bom para mim. Dessa forma, posso ser querida dos outros, por exemplo.
— Mas se você é simpática e dócil para com os outros apenas para se tornar querida das pessoas, então você não está agindo de acordo com a lei moral. Talvez você esteja agindo apenas superficialmente de acordo com ela, o que já é alguma coisa, mas aquilo que se pode chamar de ação moral tem de ser o resultado do esforço em superar-se a si mesmo. Só quando você faz alguma coisa por considerar seu dever seguir a lei moral é que você pode falar de uma ação moral. Por isso é que a ética de Kant também é freqüentemente chamada de ética do dever.
— Posso considerar meu dever conseguir dinheiro para os que não têm o que comer ou onde morar.
— Sim, e o importante é que você o faça porque considera isto certo. Mesmo que o dinheiro que você conseguiu ajuntar se perca a caminho e jamais chegue a saciar a fome daqueles a quem se destinava, ainda assim você seguiu a lei moral. A sua atitude estava correta e a atitude correta é para Kant decisiva para que possamos chamar algo de moralmente correto, não as conseqüências da ação. Por isso é que também chamamos a ética de Kant de ética da atitude.
— Por que era tão importante para ele saber quando exatamente estamos agindo segundo a lei moral? Não é muito mais importante que o que fazemos sirva às outras pessoas?
— Sim, Kant certamente concordaria com você. Mas só quando nós mesmos sabemos que estamos agindo segundo a lei moral é que agimos em liberdade.
— Só porque obedecemos a uma lei estamos agindo em liberdade? Isto não é um pouco estranho?
— Kant acha que não. Você ainda se lembra de que ele teve de “afirmar” ou “postular” que o homem possui livre-arbítrio. Este é um ponto importante, pois Kant também acredita que tudo segue a lei da causalidade. Nesse caso, como poderíamos ter livre-arbítrio?
— Boa pergunta.
— Aqui Kant divide a humanidade em duas partes, e nesse sentido ele lembra Descartes, para quem o homem era um ser dual composto de um corpo e de uma razão. Para Kant, enquanto seres sensíveis, estamos absolutamente entregues às imutáveis leis da causalidade. Não decidimos o que sentimos: os sentimentos e sensações aparecem forçosamente e nos marcam, queiramos ou não. Mas o homem não é apenas um ser dotado de sentidos. Ele é também um ser dotado de razão.
— Explique.
— Enquanto seres dotados de sentidos pertencemos inteiramente à ordem da natureza; por conseqüência, também estamos sujeitos à lei da causalidade. Desse ponto de vista, não possuímos livre-arbítrio. Como seres dotados de razão, porém, também temos em nós uma parte do mundo “em si”, ou seja, do mundo que existe independentemente de nossos sentidos. Somente quando seguimos nossa “razão prática”, que nos habilita a fazer uma escolha moral, é que possuímos livre-arbítrio. Isto porque ao nos curvarmos à lei moral somos nós mesmos que estamos determinando a lei que vai nos governar.
— Sim, de certa forma isto está certo. Afinal, sou eu, ou alguma coisa em mim, quem diz que não devo maltratar os outros.
— Quando você mesma decide não maltratar mais os outros, ainda que isto venha a ferir os seus próprios interesses, nesse momento você está agindo em liberdade.
— De qualquer forma, ninguém é particularmente livre e independente quando segue apenas os seus desejos.
— A gente pode se escravizar a toda a sorte de coisas. Podemos nos tornar escravos do nosso próprio egoísmo, por exemplo. Ir além de seus próprios desejos e vícios é uma coisa que requer exatamente autonomia e liberdade.
— E quanto aos animais? Eles só seguem a sua vontade e a sua necessidade. Isto significa que eles não têm a liberdade de seguir uma lei moral?
— Isso mesmo. E é exatamente esta liberdade que faz de nós seres humanos.
— Agora entendi.
— Para concluir, podemos dizer que Kant conseguiu encontrar uma saída para o impasse a que a filosofia tinha chegado através da briga entre racionalistas e empíricos. Com Kant termina, assim, toda uma épica da história da filosofia. Ele morreu em 1804, no início da época que chamamos de Romantismo. A lápide de seu túmulo em Königsberg traz inscrita uma de suas citações mais conhecidas: “Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e freqüentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”. Aí estão os grandes enigmas que o moveram e à sua filosofia.
CAPÍTULO 26 (EXCERTO)
O ROMANTISMO
(Páginas 368-378.)
(…)
Também desta vez Alberto Knox estava sentado à soleira da porta quando Sofia chegou.
— Sente-se aqui — disse ele, e foi logo entrando no assunto. — Até agora falamos do Renascimento, do Barroco e do Iluminismo. Hoje vamos conversar sobre o Romantismo, que podemos chamar de a última grande época cultural da Europa. Estamos chegando ao fim de uma longa história, Sofia.
— O Romantismo durou tanto tempo assim?
— Ele começou em fins do século XVIII e durou até meados do século passado [XIX]. Depois de 1850, não faz muito sentido falarmos de épocas inteiras que compreendam igualmente a poesia, a filosofia, a arte, a ciência e a música.
— O Romantismo foi uma dessas épocas?
— Sim, e, como dissemos, a última na Europa. Ele começou na Alemanha como reação à parcialidade do culto à razão apregoado pelo Iluminismo. Depois de Kant e de sua fria filosofia da razão, os jovens alemães finalmente podiam respirar aliviados.
— E o que eles colocaram no lugar da razão?
— As novas palavras de ordem eram “sentimento”, “imaginação”, “experiência” e “anseio”. Alguns pensadores do Iluminismo também tinham alertado para a importância dos sentimentos, como Rousseau, por exemplo, e criticado o fato de os iluministas enfatizarem apenas a razão. Agora, no Romantismo, esta corrente secundária se transformou no veio principal da vida cultural alemã.
— Quer dizer que a popularidade de Kant não durou muito tempo?
— Sim e não. Muitos românticos chegaram a se considerar sucessores de Kant, pois Kant havia dito que há limites para o que podemos saber. Além disso, ele também havia mostrado o quanto é importante a contribuição do nosso eu para o processo de aquisição de conhecimento. E agora, no Romantismo, o indivíduo encontrava o caminho livre, por assim dizer, para fazer a sua interpretação pessoal da vida. Os românticos professavam uma glorificação quase irrestrita do eu. A essência da personalidade romântica é, por isso mesmo, o gênio do artista.
— E houve muitos gênios durante esta época?
— Alguns. Beethoven, por exemplo. Sua música nos mostra uma pessoa que consegue exprimir seus próprios sentimentos e anseios. Nesse sentido, Beethoven foi um artista “livre”, ao contrário de mestres do Barroco como Bach e Handel, que compunham suas obras em louvor a Deus e freqüentemente segundo rígidas normas de composição.
— De Beethoven eu só conheço a Sonata ao luar e a Quinta sinfonia.
— Ouvindo essas peças dá para perceber como Beethoven conseguiu dar vazão a todo o seu romantismo na Sonata ao luar e a toda a sua dramaticidade na Quinta sinfonia.
— Em algum momento você disse que os humanistas do Renascimento também eram individualistas.
— Sim. Há muitos paralelos entre o Renascimento e o Romantismo. Um deles é a importância que se dá ao papel da arte no processo de conhecimento humano. Nesse ponto, a contribuição de Kant foi muito importante. Em sua estética, Kant investigou o que acontece quando somos arrebatados por algo de belo. Uma obra de arte, por exemplo. Quando nos voltamos para uma obra de arte sem qualquer outro interesse senão o de “vivenciá-la” o mais intensamente possível, nós ultrapassamos as fronteiras do que podemos “saber”. Ultrapassamos, portanto, as fronteiras de nossa razão.
— Quer dizer que o artista pode nos dizer coisas que o filósofo não é capaz de nos dizer?
— Era isto o que achavam Kant e os românticos. Para Kant, o artista brinca livremente com sua capacidade de cognição. O poeta Friedrich Schiller desenvolveu um pouco mais os pensamentos de Kant. Schiller disse que o processo de criação do artista é uma atividade lúdica e que só nela o homem é verdadeiramente livre, pois ele próprio determina suas regras. Os românticos acreditavam, portanto, que só a arte era capaz de nos aproximar do “indizível”. Alguns levaram esta reflexão às últimas conseqüências e chegaram a comparar o artista com Deus.
— Provavelmente porque o artista cria a sua própria realidade, exatamente como Deus criou o mundo.
— Costumava-se dizer que o artista possuía uma espécie de imaginação criadora do mundo. Em seu êxtase artístico, ele seria capaz de experimentar um estado em que as fronteiras entre sonho e realidade desaparecem. O poeta Novalis, um dos jovens gênios do Romantismo, disse: “O mundo se transforma em sonho e o sonho em mundo”. Novalis escreveu um romance ambientado na Idade Média e intitulado Heinrich von Ofterdingen, que ficou inacabado quando o autor faleceu no ano de 1801, mas que foi de grande importância para o Romantismo. Nele encontramos o jovem Heinrich, que procura incansavelmente a “flor azul” que um dia viu em sonho e por quem se apaixonou desde então. O romântico inglês Coleridge expressou assim o mesmo pensamento:
E se você dormisse? E se você sonhasse? E se, em seu sonho, você fosse ao Paraíso e lá colhesse uma flor bela e estranha? E se, ao despertar, você tivesse a flor entre as mãos? Ah, e então?
— Lindo.
— Este anseio por algo longínquo e inatingível foi um traço típico dos românticos. Vem daí o seu forte interesse por tempos passados, como a Idade Média, por exemplo, que no Iluminismo ainda era tida como uma época de trevas, mas que agora voltava a ser energicamente revalorizada; ou então por culturas distantes, por exemplo a “terra do sol nascente” e toda a sua mística. Os românticos sentiam-se atraídos pela noite, pelo “crepúsculo”, por antigas ruínas e pelo sobrenatural. Interessava-lhes muito aquilo que costumamos chamar de o lado oculto da vida: o obscuro, o misterioso, o místico.
— Acho que deve ter sido uma época muito interessante. Mas quem eram esses românticos?
— O Romantismo foi sobretudo um fenômeno urbano. Precisamente na primeira metade do século passado [XIX], a cultura urbana vivia um período de apogeu em muitas regiões da Europa, e também na Alemanha. Os “românticos” típicos eram jovens, muitas vezes estudantes, embora nem sempre fossem alunos exemplares. Eles tinham uma postura marcadamente antiburguesa e chamavam os “simples mortais”, a polícia ou a locatária dos quartos em que moravam, de “filisteus”, ou simplesmente de “inimigos”.
— Pois eu não alugaria um quarto para um romântico.
— Por volta de 1800, os românticos da primeira geração eram muito jovens. Desse ponto de vista, podemos chamar o movimento romântico de a primeira revolta de jovens da Europa. Podemos até mesmo traçar paralelos claros entre eles e a cultura hippie que viria cento e cinqüenta anos mais tarde.
— Você está se referindo a flores, cabelos compridos, sons de guitarra e ociosidade?
— Sim. Dizia-se que a ociosidade era o ideal do gênio e a indolência a primeira virtude do romântico. Era dever do romântico viver a vida, ou imaginar-se distante dela. As obrigações e tarefas cotidianas eram preocupações dos filisteus.
— Houve românticos na Noruega?
— Wergeland e Welhaven são dois exemplos. Wergeland defendia também muitos ideais iluministas, mas sua vida foi a de um típico romântico. Ele era um galanteador e vivia apaixonado, só que a Stella a quem dedicava seus poemas, e agora temos um traço tipicamente romântico, era tão distante e inatingível quanto a “flor azul” de Novalis. O próprio Novalis apaixonou-se por uma jovem de apenas catorze anos. Ela morreu quatro dias após completar quinze anos, mas Novalis a amou por toda a vida.
— Ela morreu mesmo só quatro dias depois de completar quinze anos?
— Sim…
— Estou fazendo quinze anos e quatro dias hoje…
— É verdade.
— Como ela se chamava?
— Sophie.
— O quê?
— Sim, era este…
— Você está me assustando! Será que isto é uma coincidência?
— Não faço a menor idéia. Mas que ela se chamava Sophie, isto se chamava.
— Continue contando.
— Novalis só viveu até os vinte e nove anos. Ele foi mais um dos chamados “mortos jovens”, pois os românticos morriam muito cedo, freqüentemente de tuberculose. Alguns cometiam suicídio…
— Deus meu!
— E os que chegavam a envelhecer geralmente deixavam de ser românticos. Assim, aos trinta anos mais ou menos, muitos abandonavam a vida de romântico e passavam a ser totalmente burgueses e conservadores.
— Quer dizer, passavam para o lado do inimigo.
— Sim, pode ser. Mas nós estávamos falando do amor na época do Romantismo: a grande obra sobre o amor inatingível é o romance de Goethe Os sofrimentos do jovem Werther, de 1774. O romance termina quando o jovem Werther se suicida porque não pode ter aquela que ama…
— Mas isto não era ir longe demais?
— Bem, os contemporâneos de Goethe identificaram-se com os motivos que tinham levado Werther ao suicídio. Por toda a parte em que o romance circulou, os índices de suicídio aumentaram rapidamente. Na Dinamarca e na Noruega, Werther chegou mesmo a ser proibido por um bom tempo. Ser um romântico autêntico não era coisa das mais seguras. Havia sentimentos e emoções fortes em jogo.
— Quando você diz “romântico”, penso naqueles quadros que retratam grandes paisagens, com florestas misteriosas e uma natureza exuberante… geralmente envolta em neblina.
— De fato, uma das características mais importantes do Romantismo era o amor pela natureza e por sua mística. Este traço também era um fenômeno urbano, como dissemos, pois dificilmente ele apareceria em zonas rurais. Você certamente ainda se lembra de que a expressão “De volta à natureza!” é de Rousseau. Só agora, no Romantismo, é que esta palavra de ordem ganha impulso. O Romantismo também foi uma reação à visão de mundo mecanicista do Iluminismo. Não é sem razão que se diz que o Romantismo trouxe consigo um renascimento do antigo pensamento holístico.
— Me explique isto, por favor.
— Isto significa, sobretudo, que a natureza voltou a ser vista como um todo, como uma unidade. Nesse sentido, os românticos se reportavam não apenas a Spinoza, mas também a Plotino e aos filósofos do Renascimento tais como Jakob Böhme e Giordano Bruno. Todos eles tinham experimentado um “eu” divino na natureza.
— Eles foram panteístas…
— Descartes e Hume tinham estabelecido uma nítida divisão entre o eu e a realidade “estendida”. Kant também colocara uma divisão estanque entre o eu cognitivo e a natureza “em si”. Agora a natureza era vista como um único e grande “eu”. Os românticos usavam também expressões como a “alma do mundo” ou o “espírito do mundo”.
— Entendo.
— O filósofo mais importante do Romantismo foi Friedrich Wilhelm Schelling, que viveu de 1775 a 1854. Ele tentou suprimir a divisão entre “espírito” e “matéria”. Schelling dizia que a natureza inteira, tanto a alma humana quanto a realidade física, era expressão de um único Deus ou do “espírito do mundo”.
— Sim, isto me lembra Spinoza.
— Para Schelling, a natureza era o espírito visível, e o espírito a natureza invisível, pois por toda a parte podemos perceber e sentir a ação de um espírito ordenador, estruturador. Para ele, a matéria era uma espécie de inteligência adormecida.
— Isto você precisa explicar um pouco melhor.
— Schelling via o espírito do mundo na natureza, mas também via este espírito na consciência humana. Nesse sentido, tanto a natureza física quanto a consciência humana seriam expressão de uma única e mesma coisa.
— Sim, por que não?
— O espírito do mundo deve ser procurado, portanto, tanto na natureza quanto dentro de cada um. Por isso Novalis pôde dizer que “o caminho do mistério aponta para dentro”. Com isto ele queria dizer que o homem traz o universo inteiro dentro de si e que a melhor forma de se vivenciar o mistério do mundo seria mergulhar em si mesmo.
— É um belo pensamento.
— Para muitos românticos, a filosofia, a pesquisa natural e a poesia formavam uma unidade superior. Se alguém estivesse sentado em seu quarto escrevendo inspirados poemas, ou se estudasse a vida das flores e a composição das pedras, estas coisas seriam apenas duas faces da mesma moeda, pois a natureza não era um mecanismo morto, mas o espírito vivo do mundo.
— Se você continuar falando, vou acabar me tornando uma romântica.
— O pesquisador natural norueguês Henrik Steffens, que Wergeland chamava de “a folha de louro que o vento soprou da Noruega”, porque Steffens se mudou para a Alemanha, foi a Copenhague em 1801 para fazer palestras sobre o Romantismo alemão. Ele caracterizou o movimento romântico com as seguintes palavras: “Cansados da eterna luta por abrir um caminho pela matéria bruta, escolhemos outro caminho e nos lançamos, apressados, aos braços do infinito. Mergulhamos em nós mesmos e criamos um novo mundo”.
— Como você conseguiu aprender tudo isto de cor?
— Isto é só um detalhe sem importância, Sofia.
— Continue!
— Schelling também via na natureza uma evolução que ia das pedras até a consciência humana. Nesse sentido, ele chamava a atenção para estágios de evolução que iam da natureza inanimada até às formas de vida mais complexas. A visão romântica da natureza era absolutamente marcada pela concepção de natureza como um organismo, como uma unidade, portanto, capaz de desenvolver ao longo do tempo as potencialidades que lhe são inerentes. A natureza é como uma planta que desenvolve folhas e florescências. Ou como um poeta que cria seus poemas.
— Isto não lembra um pouco Aristóteles?
— Claro que lembra. A filosofia romântica apresenta traços tanto aristotélicos, quanto neoplatônicos. Aristóteles tinha uma concepção mais orgânica dos processos naturais do que os materialistas mecanicistas.
— Entendo.
— Podemos encontrar pensamentos análogos também numa nova visão de história. Para os românticos, foram de grande importância as reflexões do filósofo da história Gottfried Herder, que viveu de 1744 até 1803. Para ele, o curso da história era o resultado de um processo voltado para um objetivo específico. Justamente por isto chamamos de “dinâmica” sua visão da história. Os filósofos do Renascimento tinham freqüentemente uma visão estática da história. Para eles, só o que havia era uma única razão universal, que se concretizava às vezes mais, às vezes menos, nas diferentes épocas. Herder, ao contrário, explica que cada época da história tem um valor que lhe é peculiar e cada povo a sua forma especial de ser, sua própria “alma”. A questão seria saber se somos capazes de penetrar em outros tempos e em outras culturas para entendê-los, e como podemos fazer isto.
— Assim como às vezes temos de nos colocar no lugar de outra pessoa para entendê-la melhor, também precisamos “entrar” em outra cultura para entendê-la melhor.
— Hoje em dia, isto é uma coisa que se tornou praticamente evidente. Na época do Romantismo, porém, esta visão era nova. Desse ponto de vista, o Romantismo contribuiu para intensificar o sentimento de identidade própria de cada nação. Não é por acaso que, na Noruega, a luta pela independência nacional tenha eclodido exatamente em 1814.
— Entendo.
— Devido ao fato de o Romantismo ter trazido consigo uma reorientação em tantos setores, costumamos distinguir duas formas de Romantismo. Por Romantismo entendemos, de um lado, aquilo que podemos chamar de Romantismo universal. Nesse sentido, estamos pensando nos românticos que se preocupavam com a natureza, a alma do mundo e o gênio artístico. Esta forma de Romantismo veio primeiro e atingiu o seu apogeu por volta de 1800, sobretudo na cidade alemã de Iena.
— E a outra forma de Romantismo?
— Foi o chamado Romantismo nacional. Ele veio um pouco mais tarde e teve Heidelberg como centro. Os românticos nacionais interessavam-se sobretudo pela história do povo, sua língua e também pela assim chamada cultura “popular”. Pois o povo também era visto como um organismo preocupado em desenvolver as possibilidades que lhe eram inerentes. Exatamente como a natureza e a história.
— Diga-me onde moras e te direi quem és.
— O que unia essas duas vertentes do Romantismo era sobretudo a palavra-chave “organismo”. Todos os românticos consideravam um organismo vivo tanto uma planta quanto todo um povo e até mesmo uma obra poética. Por isto é que também não há um limite bem definido entre as duas vertentes. O espírito do mundo estava presente tanto no povo e na cultura popular, quanto na natureza e na arte.
— Entendo.
— Herder já havia recolhido canções populares de muitos países e dado à sua coletânea o eloqüente título de “As vozes dos povos em canções”. Ele chegou mesmo a chamar os contos populares de “a língua materna dos povos”. Em Heidelberg começou, então, um trabalho de coleta de canções e contos populares. Você na certa já ouviu falar dos contos dos irmãos Grimm, não ouviu?
— Claro: Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Gata Borralheira e João e Maria…
— E muitos, muitos outros. Na Noruega tivemos Asbjørnsen e Moe, que percorreram o país de ponta a ponta em busca de material para a sua coletânea dos “Contos do povo”. Realizar este trabalho era como colher em abundância um fruto suculento, cujo sabor delicioso e nutritivo acabasse de ser descoberto. E era preciso ser rápido: os frutos já estavam começando a cair das árvores. Landstad reuniu canções populares e Ivar Aasen reuniu, por assim dizer, a própria língua norueguesa. Os mitos e os poemas épicos da era pagã também foram redescobertos em meados do século XIX. E os compositores de quase toda a Europa passaram a usar em suas composições os temas de canções populares, entendidas aqui como canções folclóricas. Desta forma, eles tentavam construir uma ponte entre a chamada “música artística” e a música popular.
— Música artística?
— Estamos chamando de “música artística” aquela composta por determinado compositor, quer dizer, a música que era fruto da imaginação de um artista. A música de Beethoven, por exemplo. A música popular, por outro lado, não era criada por um compositor em particular, mas pelo povo inteiro, por assim dizer. Tratava-se, neste caso, de uma música cujo autor e data de composição não podiam ser identificados com precisão. Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos estabelecer a diferença entre os contos populares e os “contos artísticos”, também chamados por alguns de “contos fantásticos”.
— O que são esses “contos artísticos”?
— São contos que usam a estrutura dos contos populares, mas que são fruto da imaginação de determinado escritor. Por exemplo, os contos de Hans Christian Andersen. O gênero dos contos fantásticos foi cultivado com especial apreciação pelos românticos. Um dos mestres alemães nesse gênero foi E. T. A. Hoffmann.
— Acho que já ouvi falar dos “Contos de Hoffmann”.
— O conto fantástico era o ideal literário dos românticos, mais ou menos como o teatro foi a forma artística preferida do Barroco. Isto porque no conto o escritor podia usar livre e ludicamente toda a sua força criativa.
— Ele podia brincar de Deus num mundo de ficção.
— Exatamente. Bem, agora talvez fosse o caso de fazermos um resumo de tudo o que dissemos.
— Por favor.
— Os filósofos do Romantismo concebiam o que chamavam de “alma do mundo” como um “eu” capaz de criar todas as coisas do mundo num estado semelhante ao do sonho. O filósofo Johann Gottlieb Fichte disse que a natureza provinha de uma força imaginativa superior, inconsciente. Schelling afirmou expressamente que o mundo “era em Deus”. Para ele, Deus era consciente de alguma coisa, mas havia aspectos da natureza que representavam o inconsciente em Deus, pois Deus também teria um “lado obscuro”.
— Este pensamento é assustador e fascinante ao mesmo tempo. Ele me faz pensar em Berkeley.
— Mais ou menos semelhante era o modo como se concebia a relação entre o poeta e sua obra. O conto fantástico dava ao escritor a possibilidade de explorar ao seu bel-prazer a força de sua imaginação criativa; a força de uma imaginação que era capaz de criar mundos. E nem sempre o ato da criação acontecia de forma muito consciente. Não raro o escritor romântico tinha a sensação de que sua história nascia de uma força que estava além dele. Algo como escrever sob um estado de transe hipnótico, se você entende o que digo.
— É mesmo?
— Ao mesmo tempo, porém, o escritor também podia romper esta ilusão, intervindo na narrativa com breves e irônicos comentários endereçados ao leitor. Tudo isto para lembrá-lo de que o conto fantástico não passava de fantasia.
— Entendo.
— Assim procedendo, o escritor podia lembrar o leitor de que sua própria existência também era “fantástica”. Esta forma de se romper a ilusão é comumente chamada de ironia romântica. O escritor norueguês Hendrik Ibsen, por exemplo, colocou a seguinte frase na boca de uma das personagens de sua peça Peer Gynt: “Mas não se pode morrer no meio do quinto ato”.
— Acho que entendo o que há de estranho na fala desta personagem. Ela está dizendo claramente que não passa de imaginação.
— Esta afirmação é tão paradoxal, que acho que deveríamos usá-la para encerrar esta seção.
CAPÍTULO 27 (EXCERTO)
HEGEL
(Páginas 385-395.)
(…)
Alberto e Sofia sentaram-se nas poltronas junto à janela que dava vista para o lago.
— Georg Wilhelm Friedrich Hegel foi um legítimo filho do Romantismo — começou Alberto. — Poderíamos até dizer que ele seguiu fielmente a evolução do espírito alemão. Hegel nasceu em 1770, em Stuttgard, e aos dezoito anos começou a cursar teologia em Tübingen. A partir de 1799, começou a trabalhar com Schelling em Iena, justamente quando e onde o movimento romântico viveu seu período de crescimento mais explosivo. Depois de ter lecionado em Iena, Hegel passou a trabalhar como professor universitário em Heidelberg, centro do Romantismo nacional alemão. Por fim, em 1818, tornou-se professor em Berlim, exatamente na época em que esta cidade começou a se transformar no centro intelectual da Europa. Em novembro de 1831, Hegel morreu de cólera. A esta altura, porém, o “hegelianismo” já tinha muitos adeptos em quase todas as universidades alemãs.
— Quer dizer que ele presenciou quase tudo o que aconteceu de importante.
— Sim, e o mesmo vale também para a sua filosofia. Nela, Hegel reuniu e desenvolveu quase todos os pensamentos surgidos entre os românticos. Mas também foi um crítico severo; por exemplo, da filosofia de Schelling.
— O que ele criticou em Schelling?
— Schelling e os outros românticos viam a razão mais profunda da existência no chamado espírito do mundo. Hegel também emprega o conceito de “espírito do mundo”, mas lhe atribui outro sentido. Quando Hegel fala de espírito do mundo ou “razão do mundo”, ele está se referindo à soma de todas as manifestações humanas. Isto porque, a seu ver, só o homem possui um espírito. Nesse sentido, Hegel pode falar também da marcha do espírito do mundo através da história. Não devemos nos esquecer, porém, de que ele fala da vida do homem, dos pensamentos do homem e da cultura do homem.
— Quer dizer que este espírito de que ele fala é muito menos fantasmagórico. Não se trata, por exemplo, de uma espécie de consciência adormecida que está à espreita dentro de pedras e árvores…
— Muito bem. Na certa você se lembra de que Kant se referiu a um conceito que chamou de “a coisa em si”. Embora contestasse que o homem pudesse ter um conhecimento claro dos segredos mais recônditos da natureza, Kant acena para a possibilidade de existir uma espécie de verdade inatingível. Hegel dizia que a verdade era basicamente subjetiva e contestava a possibilidade de ainda haver uma verdade acima ou além da razão humana. Todo conhecimento é conhecimento humano, ele dizia.
— Ele teve de trazer a filosofia de volta à terra, não é?
— Sim. Talvez possamos formular a coisa com essas palavras. Bem, a filosofia de Hegel é tão diversificada e cheia de nuances, que neste curso vamos nos limitar a comentar apenas alguns de seus pontos mais importantes. Na verdade, há dúvidas sobre se podemos dizer que Hegel teve a sua própria filosofia. O que chamamos de filosofia de Hegel é, de fato, um método para se entender o curso da história. Na verdade, a filosofia de Hegel não nos ensina nada sobre “a natureza mais profunda da existência”, mas pode nos ensinar a pensar de uma forma extremamente frutífera.
— O que não deixa de ser muito importante.
— Todos os sistemas filosóficos anteriores a Hegel tinham tentado estabelecer critérios para o que o homem pode saber sobre o mundo. Isto vale para Descartes e Spinoza, Hume e Kant. Cada um deles se interessou por aquilo que constitui a base de todo o conhecimento humano. Só que todos eles falaram sobre premissas atemporais para o conhecimento do homem sobre o mundo.
— E não é esta a tarefa do filósofo?
— Hegel achava impossível encontrar tais pressupostos atemporais. Ele achava que as bases do conhecimento humano mudavam de geração para geração. Por conseqüência, também não existiam “verdades eternas” para ele. Não existe uma razão desvinculada de um tempo. O único ponto fixo a que a filosofia pode se ater é a própria história.
— Não, não… explique isto melhor. Se a história vive mudando, como ela pode ser um ponto fixo?
— Um rio também muda constantemente. Isto não significa, porém, que você não possa falar sobre este rio. Só que você não pode perguntar em que ponto do vale o rio é o rio “mais verdadeiro”.
— É verdade, pois o rio é o rio, não importa onde.
— Para Hegel, a história era como a corrente de um rio. O menor movimento na água num certo ponto do rio é determinado pela queda e pelo torvelinho das águas em algum outro ponto rio acima. Só que também são importantes as pedras e as curvas que existem no rio no ponto em que você se encontra e o observa.
— Acho que entendo.
— A história do pensamento, ou da razão, também é como a corrente do rio. Ela contém todos os pensamentos formulados por gerações de pessoas antes de você; e todos esses pensamentos determinam a sua maneira de pensar do mesmo modo como também o fazem as condições de vida do seu próprio tempo. Assim, não podemos afirmar que determinado pensamento está certo para sempre. Este pensamento pode estar correto no ponto em que você se encontra.
— Mas isto não quer dizer que todas as coisas são igualmente falsas, ou igualmente certas, quer?
— Não, só que uma coisa pode ser certa ou errada apenas em relação a um contexto histórico. Se em 1990 você faz todo um discurso defendendo a escravidão, na melhor das hipóteses você vai parecer ridícula. Mas há dois mil e quinhentos anos isto não era tão ridículo, embora naquela época algumas vozes progressistas já reivindicassem o fim da escravidão. Vamos citar um exemplo mais próximo. Há cerca de cem anos, não era tão insensato assim queimar extensas áreas de florestas para transformá-las em campos de cultivo. Hoje isto é de uma insensatez descabida. É que hoje possuímos outras, e melhores, premissas para este julgamento.
— Agora entendi.
— Hegel diz que a razão também é algo dinâmico, um processo. E a “verdade” não é outra coisa senão este processo. É que fora do processo histórico não existe qualquer critério capaz de decidir sobre o que é mais verdadeiro e o que é mais racional.
— Exemplos, por favor.
— Você não pode simplesmente pincelar alguns pensamentos da Antigüidade ou da Idade Média, do Renascimento ou do Iluminismo, e dizer que tais e tais estão certos e que tais e tais estão errados. Da mesma forma, você também não pode dizer que Platão se enganou ou que Aristóteles tinha razão; ou ainda que Hume estava totalmente enganado, enquanto Kant e Schelling tinham razão. Esta é uma forma “não histórica” de pensar.
— É… isto não me soa muito bem mesmo.
— Assim, para Hegel, não podemos separar uma filosofia ou um pensamento de seu contexto histórico. Mas, e agora estou me aproximando de outro ponto, a razão é “progressiva”, pois sempre se acrescenta algo de novo ao que já existia. Isto significa que o conhecimento humano progride cada vez mais e caminha com a humanidade toda em sua marcha “para a frente”.
— Pensando assim, a filosofia de Kant estava mesmo um pouco mais certa do que a de Platão, não é?
— É. Entre Platão e Kant o “espírito do mundo” desenvolveu-se, progrediu. Retomando a imagem do rio, podemos dizer que ele tem agora um volume maior de água. Entre um ponto e outro mais de dois mil anos se passaram. Mas Kant não deve achar que suas “verdades” ficarão como pedras irremovíveis à margem do rio. Os seus pensamentos também não são a derradeira expressão da sabedoria e serão expostos às severas críticas da geração subseqüente. E foi assim mesmo que aconteceu.
— Mas este rio de que você fala…
— Sim?
— Para onde ele corre?
— Hegel dizia que o espírito do mundo progredia rumo a uma consciência cada vez maior de si mesmo. Os rios também ficam cada vez mais largos, à medida que se aproximam do mar. Para Hegel, a história descreve a saga do espírito do mundo, que pouco a pouco desperta para a consciência de si mesmo. O mundo sempre existiu, mas por meio da cultura e da evolução do homem o espírito do mundo se torna cada vez mais consciente de suas peculiaridades.
— Como ele podia ter tanta certeza?
— Ele achava isto um fato absolutamente demonstrável, e não apenas uma espécie de profecia. Hegel dizia que quem estuda história sabe muito bem que a humanidade caminha rumo a um autoconhecimento e um autodesenvolvimento cada vez maiores. A história, segundo ele, demonstra de forma inequívoca a evolução rumo a uma racionalidade e liberdade, maiores. É claro que às vezes ela dá umas cabriolas, mas o todo revela uma marcha inexorável para a frente. Para Hegel, portanto, a história persegue um objetivo definido.
— Quer dizer que evoluímos cada vez mais. Bom… isto significa que ainda há esperança.
— Para Hegel, a história é a única e longa cadeia de pensamentos, cujos elos não se unem ao acaso, mas segundo determinadas regras. Quem se dedica ao estudo sério da história percebe que geralmente um novo pensamento surge com base em outros formulados anteriormente. Uma vez formulado, porém, o novo pensamento será inevitavelmente contradito por outro. Aparecem, assim, duas formas de pensar que se opõem e entre elas há uma tensão. Esta tensão é quebrada quando um terceiro pensamento é formulado, dentro do qual se acomoda o que havia de melhor nos dois pontos de vista precedentes. É isto que Hegel chama de evolução dialética.
— Você teria um exemplo?
— Você talvez ainda se lembre de que os pré-socráticos discutiam a questão da substância primordial e das transformações.
— Mais ou menos.
— Depois os eleatas declararam impossível toda e qualquer transformação. Para tanto, tiveram de negar todas as transformações, ainda que as percebessem por meio de seus sentidos. Os eleatas defendiam uma proposição, e tal proposição Hegel a chama de posição.
— Sim?
— Entretanto, toda vez que se formula uma proposição clara, surge outra, que se opõe à primeira. Esta Hegel chama de negação. A negação da filosofia dos eleatas é a filosofia de Heráclito, segundo a qual “tudo flui”. Surge, então, uma tensão entre duas maneiras de pensar diametralmente opostas. Mas esta tensão é “abolida” quando Empédocles chama a atenção para o fato de que ambas estavam certas em alguns pontos e enganadas em outros.
— Estou começando a entender…
— Os eleatas tinham razão quando afirmavam que nada se transformava; mas não estavam certos quando diziam que não podemos confiar em nossos sentidos. Heráclito tinha razão quando dizia que podemos confiar em nossos sentidos, mas não estava certo quando afirmava que “tudo flui”.
— Isto porque existe mais do que apenas uma substância primordial. A composição se altera, mas não a substância em si.
— Exatamente. O pensamento de Empédocles, que estabelecia uma ponte entre os dois pontos de vista opostos, é chamada por Hegel de a negação da negação.
— Deus meu!
— Esses três estágios do conhecimento também foram chamados por Hegel de tese, antítese e síntese. Podemos chamar de tese o racionalismo de Descartes, depois contradito pela antítese empírica de Hume. Mas esta oposição, esta tensão entre duas formas de pensar diferentes, foi suprimida com a síntese de Kant. Kant deu razão de um lado aos racionalistas e de outro aos empíricos. Ele também mostrou que ambos estavam enganados em pontos importantes. Mas a história não termina com Kant. A síntese de Kant se transformou em ponto de partida para a nova cadeia tripartite de pensamento, também chamada de “tríade”. Pois a síntese também se transforma em tese, e a esta segue-se uma nova antítese.
— Tudo isso é horrivelmente teórico.
— Sim, é teórico. Mas ainda que soe tremendamente teórico, Hegel não quis moldar a história a um esquema preestabelecido. Ele acreditava poder derivar da própria história este modelo dialético. Hegel estava plenamente convencido de que tinha descoberto leis para a evolução da razão, ou para a marcha do “espírito do mundo” ao longo da história.
— Entendo.
— Mas a dialética de Hegel não se aplica apenas à história. Quando discutimos, também pensamos dialeticamente, pois tentamos identificar falhas em determinada forma de pensar. Hegel chamou isto de “pensamento negativo”. Só que ao detectarmos falhas em determinada forma de pensar, estamos ao mesmo tempo preservando o que ela tem de melhor.
— Exemplos!
— Se um socialista e um conservador sentam-se para tentar resolver um problema social, não demora muito para que surja uma tensão entre duas formas de pensar. Isto não significa, porém, que só um tem razão ou que só o outro está enganado. É perfeitamente possível que ambos tenham um pouco de razão e que ambos estejam errados em alguns pontos. No decorrer da discussão, se forem espertos, eles saberão conservar os melhores argumentos de ambos os lados.
— Tomara.
— Quando estamos no meio de uma discussão como essa, infelizmente nem sempre é fácil saber qual das duas posturas é a mais racional. Por esta razão é que, no fundo, a história é que decide o que está certo e o que está errado. Para Hegel, só o que é racional é viável.
— Quer dizer que o que sobrevive está certo?
— Ou o contrário: o que está certo sobrevive.
— Você não teria outro exemplo? Tudo isto soa tão abstrato…
— Há cento e cinqüenta anos, muitos lutavam pelos direitos das mulheres. E também havia muitos que lutavam energicamente contra eles. Se analisarmos hoje os argumentos de ambas as partes, não temos dificuldades em ver quem eram os mais racionais. Mas não podemos nos esquecer de que estamos analisando o assunto a posteriori. Ficou provado que os que defendiam a igualdade de direitos estavam certos. Muitas pessoas sem dúvida se sentiriam envergonhadas se lessem o que seus avós disseram a respeito deste tema.
— Sim, posso imaginar. E o que Hegel achava?
— Sobre a igualdade de direitos?
— Sim. Ou é melhor não falarmos sobre o assunto?
— Você quer ouvir uma citação?
— Com prazer.
— Vamos lá: “A diferença entre um homem e uma mulher é a mesma que existe entre um animal e uma planta. O animal corresponde mais ao caráter do homem, a planta mais ao da mulher, pois o seu desenvolvimento é mais tranqüilo, já que tem por princípio a unidade mais vaga do sentimento. Se as mulheres estão à frente do governo, o Estado está em perigo, pois elas não agem segundo as reivindicações do conjunto, mas segundo a inclinação e a opinião casuais. A formação das mulheres ocorre, não se sabe ao certo como, por meio da atmosfera das idéias, por assim dizer: mais pela vida do que pela aquisição de conhecimentos. Os homens, ao contrário, só chegam à sua posição às custas de muito pensar e de muitos esforços técnicos”.
— Obrigada, é o bastante. Prefiro não ouvir mais citações desse tipo.
— Mas a citação é um exemplo muito elucidativo de como se modificam nossas noções sobre o que é “racional”. Ela mostra que Hegel também era um autêntico produto de sua época, exatamente como nós somos. Muito daquilo que nos parece “evidente” hoje não passará no teste da história.
— Você teria um exemplo?
— Não, não tenho.
— Por que não?
— Pois não posso falar de uma coisa que está se transformando agora. Eu não poderia dizer, por exemplo, que andar de carro é uma coisa absolutamente idiota porque polui a natureza. Muitas pessoas já acham isto. Não seria, portanto, um bom exemplo. Mas a história vai mostrar que muito do que consideramos óbvio não resistirá ao teste da história.
— Entendo.
— E ainda é preciso acrescentar uma coisa: o fato de os homens na época de Hegel externarem enfaticamente seus julgamentos grosseiros sobre a inferioridade da mulher incentivou ainda mais o movimento das mulheres.
— Como assim?
— Para usar as palavras de Hegel, os homens propuseram uma tese. O motivo para eles considerarem isto absolutamente necessário foi o fato de as mulheres já terem começado a se articular em sua defesa. Afinal, não é necessário ter uma opinião tão decidida sobre algo em torno do qual todos estão de acordo. Contudo, quanto mais grosseira era a discriminação dos homens em relação às mulheres, mais forte foi se tornando a antítese, ou a negação.
— Acho que entendo.
— Podemos dizer, portanto, que os oponentes mais enérgicos são a melhor coisa que pode acontecer com uma idéia. Quanto mais enérgicos melhor, pois tanto mais forte será a negação da negação. Não é por acaso que existe a expressão “jogar lenha na fogueira”.
— Posso sentir o fogo da minha indignação ardendo em fortes labaredas.
— Do ponto de vista puramente lógico ou filosófico, freqüentemente existe uma tensão entre dois conceitos.
— Exemplos, por favor.
— Se reflito sobre o conceito de “ser”, não tenho como deixar de lado da minha reflexão o conceito oposto, ou seja, o “não ser”. É impossível pensarmos que somos, sem que no momento seguinte nos lembremos de que um dia não seremos mais. A tensão entre “ser” e “não ser” é resolvida pelo conceito de “transformar-se”. Pois o fato de uma coisa se transformar significa, de certa forma, que ela é e não é.
— Entendo.
— A razão de Hegel é, portanto, uma razão dinâmica. Como a realidade está impregnada de opostos e contradições, uma descrição da realidade tem necessariamente de ser cheia de opostos e contradições. Aqui vai um exemplo: diz-se que o físico atômico Niels Bohr mandou pendurar uma ferradura na porta de sua casa.
— Isto é para dar sorte.
— Mas isto não passa de superstição e Niels Bohr podia ser qualquer coisa, menos supersticioso. Um dia recebeu a visita de um amigo, que pensou a mesma coisa: “Quer dizer que você acredita nessas coisas”, observou o amigo. E Bohr respondeu: “Não. Mas me disseram que apesar disso a coisa funciona mesmo”.
— Sem comentários.
— Mas a resposta de Bohr foi bastante dialética. Muitos diriam até que foi uma resposta altamente contraditória. Niels Bohr, como também o poeta norueguês Vinje, era conhecido pela sua visão dialética do mundo. Certa vez, ele disse que havia dois tipos de verdades: as verdades superficiais, cujos opostos eram obviamente errados, e as verdades profundas, cujos opostos eram tão certos quanto elas mesmas.
— Que verdades seriam estas?
— Quando digo, por exemplo, que a vida é breve…
— Concordo com você.
— Em outra situação, porém, posso abrir os braços e dizer que a vida é longa.
— Você tem razão. De certa forma isto também é verdade.
— Para terminar, quero dar ainda um exemplo de como uma tensão dialética pode desencadear uma ação espontânea, que leva a uma subida mudança.
— Vamos lá!
— Imagine uma menina que só diz “Sim, mamãe”, “Está certo, mamãe”, “Como você quiser, mamãe”, “É para já, mamãe!”.
— Fico arrepiada só de pensar.
— Um belo dia, a mãe se enerva com o fato de sua filha ser sempre tão obediente e grita, nervosa: “Não seja tão obediente!”. E a filha responde: “Sim, mamãe”.
— Eu daria uma bofetada nela!
— É verdade. Mas o que você faria se, em vez disso, ela tivesse respondido: “Mas eu quero ser obediente”?
— Seria uma resposta muito esquisita. Acho que ainda assim ela levaria a bofetada.
— Em outras palavras, a situação chegou a um impasse. A tensão dialética chegou a ponto tal que é preciso acontecer uma transformação.
— A bofetada, você quer dizer.
— Precisamos mencionar ainda um último aspecto da filosofia de Hegel.
— Sou toda ouvidos.
— Você está lembrada de que chamamos os românticos de individualistas.
— O caminho do mistério aponta para dentro.
— Precisamente este individualismo encontra sua “negação” na filosofia de Hegel. É que Hegel atribui uma importância enorme àquilo que chamou de “forças objetivas”. Ele se refere com isto à família e ao Estado. Podemos dizer que, nesse sentido, Hegel não perde totalmente de vista o indivíduo, mas o vê sobretudo como uma parte orgânica de uma comunidade. Para Hegel, a razão ou o espírito do mundo só se tornam visíveis na interação das pessoas.
— Explique melhor.
— A razão se revela sobretudo através da língua. E a língua é o universo dentro do qual nascemos. A língua norueguesa pode muito bem sobreviver sem o senhor Hansen, mas o senhor Hansen dificilmente sobreviveria sem a língua norueguesa. Não é o indivíduo que cria a língua, mas a língua que cria o indivíduo.
— Acho que concordo com isto.
— Assim como o indivíduo nasce no interior de uma língua, ele também nasce no interior de um meio histórico. E ninguém tem uma relação “livre” com este meio. Quem não consegue seu lugar no Estado é, portanto, um ser “a-histórico”. Você deve se lembrar de que este pensamento foi muito importante para os grandes filósofos de Atenas. Um Estado sem cidadãos é tão inconcebível quanto um cidadão sem Estado.
— Entendo.
— Para Hegel, o Estado é “mais” do que o cidadão isolado. Ele é mais do que a soma de todos os cidadãos. Hegel acha impossível “desligar-se” da sociedade, por assim dizer. Para ele, quem dá as costas à sociedade em que vive e prefere “encontrar-se a si mesmo” é um louco.
— Não sei se concordo com ele, mas tudo bem.
— Para Hegel, não é o indivíduo que se encontra a si mesmo, mas o espírito do mundo.
— O espírito do mundo se encontra a si mesmo?
— Hegel tentou mostrar que o espírito do mundo retorna a si mesmo em três estágios. Com isto ele queria dizer que o espírito do mundo passa por três estágios rumo à conscientização de si mesmo.
— Quais são esses estágios?
— Em primeiro lugar, o espírito do mundo se conscientiza de si mesmo no indivíduo. Hegel chama isto de razão subjetiva. Depois, o espírito do mundo atinge um nível mais elevado de consciência na família, na sociedade e no Estado. Hegel chama isto de razão objetiva, pois trata-se de uma razão que surge na interação entre as pessoas. Mas há ainda um terceiro estágio…
— Agora estou ansiosa para saber.
— O espírito do mundo atinge a forma mais elevada do autoconhecimento na razão absoluta. E esta razão absoluta são a arte, a religião e a filosofia. Dentre elas, a filosofia é a forma mais elevada da razão, pois na filosofia o espírito do mundo reflete sobre seu próprio papel na história. Portanto, só na filosofia é que o espírito do mundo se encontra a si mesmo. Desse ponto de vista, a filosofia pode ser considerada o espelho do espírito do mundo.
— Isto soa tão místico que vou precisar de um tempo para conseguir digerir. Mas gostei desta última frase que você disse.
CAPÍTULO 28 (EXCERTO)
KIERKEGAARD
(Páginas 398-410.)
(…)
De repente, Sofia ouviu alguém batendo na porta. Alberto olhou para ela muito sério.
— Não queremos ser perturbados, queremos?
Bateram mais forte.
— Vamos falar agora sobre um filósofo dinamarquês, que ficou muito irritado com a filosofia de Hegel — disse Alberto.
Mas começaram a bater tão forte que a porta chegava a tremer.
— É claro que é o major nos enviando outra de suas personagens fantásticas, só para ver se consegue nos pegar de novo — disse Alberto. — Para ele isto não é problema.
— Mas se não abrirmos e vermos quem é, ele também não terá o menor problema em demolir a casa inteira.
— Talvez você tenha razão. Vamos abrir.
Foram até a porta. Pela força das batidas, Sofia estava esperando um gigante, no mínimo. Mas lá fora só havia uma menina com um vestido florido e longos cabelos loiros. Na mão ela segurava dois frascos: um era vermelho, o outro azul.
— Olá! — disse Sofia. — Quem é você?
— Meu nome é Alice — respondeu a menina enquanto fazia um gesto de cortesia meio envergonhada.
— Foi o que pensei — disse Alberto. — É Alice no País das Maravilhas.
— Mas como ela chegou até aqui?
A própria Alice explicou:
— O País das Maravilhas é um lugar sem fronteiras, o que significa que ele está por toda a parte. Mais ou menos como a ONU. Por isso o País das Maravilhas deveria se tornar membro honorário da ONU. Precisamos de um representante em cada comitê.
— Ah, o major! — disse Alberto, sorrindo satisfeito.
— E o que traz você aqui? — perguntou Sofia.
— Eu trouxe estes dois frascos da filosofia para você.
Entregou a Sofia os dois frascos; num deles havia um líquido vermelho e no outro um líquido azul. No frasco vermelho estava escrito “BEBA-ME!” e, no azul, “BEBA-ME TAMBÉM!”
No instante seguinte, um coelho branco passou correndo pela cabana. Ele corria sobre duas patas e usava um colete e um paletó. Quando passou na frente da cabana, tirou do bolso do colete um relógio e disse:
— É tarde! É tarde!
E continuou a correr. Alice fez menção de sair correndo atrás dele; antes, porém, voltou-se para Sofia e Alberto, fez uma reverência e disse:
— Vai começar tudo de novo!
— Mande um abraço para Diná e para a Rainha! — disse Sofia para Alice, que a esta altura já tinha saído atrás do coelho.
Pouco depois, Alice desapareceu na floresta. Alberto e Sofia ficaram parados à entrada da cabana olhando os dois frascos.
— “BEBA-ME!” e “BEBA-ME TAMBÉM!” — leu Sofia. — Não sei se devo. Pode ser veneno.
Alberto sacudiu os ombros.
— Esses vidros vêm do major e tudo o que vem do major é pura imaginação. Portanto, isso aí não passa de um suco imaginário.
Sofia tirou a rolha do vidro vermelho e encostou-o cautelosamente nos lábios. O suco tinha um gosto adocicado e estranho. Mas isto não era tudo. Imediatamente aconteceu algo à sua volta: primeiro, foi como se a imagem do lago, da floresta e da cabana se fundissem numa coisa só. Depois lhe pareceu que tudo o que ela via era apenas uma pessoa e que esta pessoa era ela mesma. Quando finalmente olhou para Alberto, ele também parecia ter se transformado numa parte dela mesma.
— Que coisa estranha — disse ela. — De repente, tudo o que vejo parece estar relacionado. Tenho a sensação de que tudo é apenas uma única consciência.
Alberto concordou com a cabeça, mas Sofia teve a sensação de que era ela mesma quem concordava.
— Isto é o panteísmo, ou a filosofia da unidade — disse Alberto. — É o espírito do mundo dos românticos, que experimentavam tudo como um único e grande “eu”. Mas é também Hegel, que, sem perder o indivíduo totalmente de vista, considerava tudo expressão de uma razão universal.
— Você acha que eu devo beber o líquido do outro vidro?
— É o que está escrito aí.
Sofia tirou a rolha do outro vidro e deu uma boa golada. O líquido azul tinha um gosto mais fresco e mais azedo do que o vermelho. Mas também desta vez tudo à sua volta se transformou de imediato: no mesmo instante passou o efeito do líquido vermelho e tudo voltou ao seu lugar. Alberto voltou a ser Alberto, as árvores da floresta voltaram a ser árvores da floresta e o lago voltou a ser lago. Mas isto também durou apenas um segundo, e então tudo o que Sofia via começou a se desmanchar. Para começar, a floresta deixou de ser floresta; era como se, de repente, a menor das árvores fosse um mundo em si, cada galho uma aventura sobre a qual podiam ser contados milhares de contos de fadas. O pequeno lago transformou-se para ela num oceano infinito, não porque fosse grande e profundo, mas por causa de seus milhares de detalhes cintilantes e por suas ondas de formas e tamanhos fascinantes. Sofia entendeu que poderia ficar observando este pequeno lago pelo resto de sua vida e ainda assim ele continuaria sendo um mistério indecifrável para ela.
Sofia olhou, então, para a copa de uma árvore. Ali, três pardais estavam entretidos numa brincadeira divertida. Eles já tinham pousado na árvore antes de Sofia beber o líquido vermelho, mas só agora é que ela realmente os tinha percebido. O líquido vermelho, que ela bebera da primeira vez, apagara todos os contrastes e todas as diferenças individuais.
Sofia levantou-se do degrau de pedra em que estava sentada, ajoelhou-se e observou a grama. E ali também encontrou um mundo à parte, mais ou menos como se tivesse dado um mergulho e abrisse os olhos pela primeira vez no fundo do mar. Entre os ramos e as folhinhas da grama, milhares de formas de vida movimentavam-se febrilmente. Sofia viu uma aranha que se movia segura e energicamente sobre o musgo, um pulgão subindo e descendo por um raminho de grama e um pequeno exército de formigas trabalhando em conjunto. E mesmo entre as formigas, cada uma tinha o seu jeito particular de levantar as pernas.
O mais curioso de tudo, porém, foi quando Sofia se levantou novamente e olhou para Alberto, que continuava de pé à soleira da porta. De repente ela viu nele um ser completamente fora do comum, uma espécie de homem de outro planeta, ou uma personagem saída de um conto de fadas diferente daquele que ela vivia no momento. Ao mesmo tempo, ela também se percebeu a si mesma de uma maneira completamente diferente; ela era uma pessoa especial, extraordinária, não apenas uma pessoa comum, não apenas uma jovem de quinze anos: ela era Sofia Amundsen e só ela era assim!
— O que você está vendo? — perguntou Alberto.
— Vejo que você é um pássaro muito esquisito.
— É mesmo?
— Acho que nunca vou entender como é ser outra pessoa. Não há duas pessoas iguais em todo o mundo.
— E a floresta?
— Ela não parece mais ser a mesma. Ela é como um universo de muitos contos fantásticos.
— Foi o que pensei. O vidro azul é o individualismo. Ele foi a reação de Søren Kierkegaard à filosofia da unidade do Romantismo. E não foi por acaso que o escritor de contos fantásticos Hans Christian Andersen foi contemporâneo de Kierkegaard. Ele tinha o mesmo olhar aguçado para a infinita riqueza de detalhes da natureza. Cem anos antes, este mesmo olhar já havia estado presente em Leibniz, que reagiu à filosofia da unidade de Spinoza do mesmo modo como Kierkegaard reagiu à de Hegel.
— Estou ouvindo o que você diz, mas você me parece tão estranho que tenho de me esforçar para não rir.
— Entendo. Então beba mais um golinho do vidro vermelho. Vamos nos sentar aqui na escada da entrada. Ainda temos de falar alguma coisa sobre Kierkegaard antes de terminarmos nosso encontro de hoje.
Sentaram-se e Sofia bebeu um golinho do vidro vermelho. No mesmo instante as coisas dispersas voltaram a se concentrar, só que um pouco demais, pois Sofia sentiu novamente que as diferenças haviam deixado de ser importantes. Tocou os lábios rapidamente no gargalo do frasco azul e o mundo ficou mais ou menos como era antes de Alice chegar trazendo aqueles frascos com líquidos estranhos.
— Mas qual é verdadeiro? — perguntou Sofia. — É o líquido vermelho ou o azul que nos permite experimentar o mundo como realmente ele é?
— Ambos, Sofia. Não podemos dizer que os românticos estavam enganados. Mas talvez eles tenham sido parciais demais.
— E o líquido azul?
— Acho que Kierkegaard deve ter tomado uns bons goles dele. De qualquer forma, ele tinha o olhar muito aguçado para a importância do indivíduo. Somos mais do que “filhos de nosso tempo”, dizia ele. Cada um de nós também é um indivíduo único, que só vive esta única vez.
— E parece que Hegel não se interessou muito por isto, não é?
— Exato. Hegel estava mais preocupado com as grandes linhas da história. E foi exatamente isto que deixou Kierkegaard irritado. Ele disse que a filosofia da unidade dos românticos e que o historicismo de Hegel tinham tirado do indivíduo a responsabilidade pela sua própria vida. Para Kierkegaard, Hegel e os românticos eram farinha do mesmo saco.
— É compreensível que ele tenha ficado furioso.
— Søren Kierkegaard nasceu em Copenhague em 1813 e foi criado por um pai muito severo, de quem herdou também certa melancolia religiosa.
— Isto não me parece nada bom.
— Não mesmo. Esta melancolia chegou mesmo a levar o jovem Kierkegaard a romper um noivado, fato que não foi bem recebido pela burguesia de Copenhague. Assim, desde muito cedo ele foi uma pessoa marginalizada e alvo de chacotas. Bem, a verdade é que logo ele passaria a dar o troco aos outros à sua volta e se tornaria paulatinamente aquilo que Ibsen chamou de “um inimigo do povo”.
— Tudo por causa do rompimento de um noivado?
— Não, não só por causa disso. No fim de sua vida, sobretudo, Kierkegaard se tornou um crítico severo de toda a cultura européia. Ele dizia que toda a Europa estava a caminho da bancarrota. Kierkegaard achava que os tempos em que vivia eram totalmente destituídos de paixão e engajamento, e criticava duramente a atitude tépida e frouxa da Igreja. Sua crítica à chamada “igreja de domingo” podia ser qualquer coisa menos sutil.
— Hoje em dia fala-se do “cristianismo da confirmação”. Isto porque muitas pessoas só passam pela confirmação para ganhar presentes.
— Sim, você tem razão. Para Kierkegaard, o cristianismo era ao mesmo tempo tão avassalador e tão adverso à razão que só podia ser “ou isto, ou aquilo”. Quer dizer, ele achava que não era possível ser “um pouco cristão”, ou então “cristão até certo ponto”. Pois ou Jesus Cristo tinha ressuscitado no domingo de Páscoa, ou não. E se ele realmente tivesse se levantado dos mortos, isto seria algo tão avassalador que teria necessariamente de marcar toda a nossa vida.
— Entendo.
— Mas Kierkegaard observava que a Igreja e a maioria dos cristãos de seu tempo tinham uma posição extremamente evasiva em relação às questões religiosas. E ele não aceitava isto de jeito nenhum. Religião e razão eram, para ele, como fogo e água. Kierkegaard achava que não bastava achar “verdadeiro” o cristianismo. Ter uma fé cristã significava seguir os passos de Jesus.
— E o que isto tinha a ver com Hegel?
— Opa! Talvez tenhamos começado pela ponta errada.
— Então sugiro que você engate marcha à ré e comece do começo.
— Aos dezessete anos, Kierkegaard começou a estudar teologia, mas logo foi se interessando cada vez mais por questões filosóficas. Doutorou-se aos vinte e oito anos com a tese “O conceito da ironia em Sócrates”. Nesta obra, Kierkegaard acerta as contas com a ironia romântica e com a forma descompromissada de os românticos brincarem com a ilusão. À ironia romântica Kierkegaard contrapõe a “ironia socrática”. Sócrates também fizera uso do recurso estilístico da ironia, mas só com o intuito de chamar a atenção de seus ouvintes para uma atitude mais séria em relação à vida. Sócrates era para Kierkegaard, ao contrário do que significa para os românticos, um pensador existencial, ou seja, alguém que transporta toda a sua existência para dentro de sua reflexão filosófica. Ao contrário dos românticos, que para Kierkegaard não tinham feito nada disso.
— Entendo.
— Depois de romper seu noivado, Kierkegaard viajou em 1841 para Berlim, onde assistiu a conferências de alguns filósofos, dentre eles Schelling.
— Ele chegou a se encontrar com Hegel em Berlim?
— Não. Hegel já havia falecido dez anos antes, embora continuasse a viver “em espírito” em Berlim e em muitas partes da Europa. Seu “sistema” era usado como uma espécie de explicação geral para todas as perguntas imagináveis. Kierkegaard assumiu uma posição radicalmente oposta e explicou que as “verdades objetivas”, com as quais se ocupava a filosofia hegeliana, eram totalmente irrelevantes para a existência do homem enquanto indivíduo.
— E que verdades seriam relevantes?
— Para Kierkegaard, mais importante do que a busca de uma VERDADE com letras maiúsculas era a busca por verdades que são importantes para a vida de cada indivíduo. Ele dizia que o importante era encontrar “a minha verdade”, a verdade de cada um. Ele opunha o indivíduo ao “sistema”, portanto. Kierkegaard dizia que Hegel também tinha se esquecido de que era apenas uma pessoa. Ele zombava do tipo do professor hegeliano que vivia no alto de uma torre de marfim e que, preocupado em explicar os mistérios da vida, esquecia o seu próprio nome, esquecia-se de que era uma pessoa, uma pessoa como outra qualquer, e não meia dúzia de parágrafos bem elaborados que de verbo tinham se tornado carne.
— E o que é o ser humano para Kierkegaard?
— Isto não dá para responder de uma maneira geral. Kierkegaard não está nem um pouco interessado numa descrição genérica da natureza ou do “ser” humano. Fundamental para ele é a existência de cada um. E o homem não experimenta sua existência atrás de uma escrivaninha. Somente quando agimos, e sobretudo quando fazemos uma escolha, é que nos relacionamos com nossa própria existência. Uma história que se conta sobre Buda pode ilustrar o que Kierkegaard quer dizer.
— Sobre Buda?
— Sim, pois a filosofia de Buda também tem como ponto de partida a existência humana. Certa vez, um monge disse a Buda que ele dava respostas pouco claras para perguntas importantes, tais como o que é o mundo ou o ser humano. Buda respondeu com o exemplo de uma pessoa que é ferida por uma seta envenenada. O ferido não tem qualquer interesse teórico em saber de que material a seta é feita, em que tipo de veneno ela foi embebida ou de que ângulo ela o atingiu.
— Provavelmente, o que ele quer é que alguém lhe extraia a seta envenenada e cuide do ferimento.
— Não é mesmo? Isto sim seria existencialmente importante para ele. Tanto Buda quanto Kierkegaard tinham plena consciência de que só viveriam por um curto período de tempo. E, como dissemos, nesse caso não dá para ficar sentado atrás de uma escrivaninha, especulando sobre o espírito do mundo.
— Entendo.
— Kierkegaard também disse que a verdade era “subjetiva”. Não no sentido de que é totalmente indiferente o que pensamos ou aquilo em que acreditamos. Kierkegaard só queria dizer que as verdades realmente importantes são pessoais. Somente tais verdades são “verdades para mim”, são verdades para cada um.
— Você poderia me dar um exemplo dessas verdades subjetivas?
— Uma questão importante, por exemplo, é a de se saber se o cristianismo é verdade. Para Kierkegaard, esta não é uma questão para ser encarada do ponto de vista teórico ou acadêmico. Para alguém que se entende como algo que existe, trata-se aqui de vida ou morte. E isto não se discute simplesmente porque se gosta de discutir. Trata-se de algo que deve ser abordado com absoluta paixão.
— Entendo.
— Quando você cai na água, você não fica teorizando sobre a questão de saber se vai ou não se afogar. Também não é interessante ou desinteressante saber se há crocodilos na água. Trata-se de uma questão de vida ou morte.
— Claro!
— É preciso distinguir, portanto, entre a questão filosófica de saber se Deus existe e a relação do indivíduo para com esta mesma questão. Trata-se aqui de questões com as quais cada um tem de se confrontar sozinho. Além disso, não podemos abordar estas questões através da fé. Kierkegaard não considera essencial aquilo que somos capazes de compreender com nossa razão.
— Não entendi.
— Oito mais quatro são doze, Sofia. Podemos estar absolutamente certos quanto a isto. Trata-se de um exemplo para as verdades racionais, sobre as quais falaram todos os filósofos desde Descartes. Mas nós as incluímos em nossas orações antes de dormir? E por acaso ficamos quebrando a cabeça sobre elas em nosso leito de morte? Não. Por mais “objetivas” ou “genéricas” que tais verdades sejam, é exatamente por isso que elas são tão pouco importantes para a existência de cada um.
— E a questão da fé?
— Você não pode saber se uma pessoa te perdoa quando você faz alguma coisa de errado para ela. Trata-se de uma questão com a qual você está profundamente envolvida. E exatamente por isso ela é existencialmente importante para você. Você só pode acreditar ou ter esperança de que assim seja. Apesar disso, essas coisas são mais importantes para você do que o fato incontestável de que a soma dos ângulos de um triângulo é cento e oitenta graus. Por fim, ninguém pensa na lei da causa e efeito ou nas “formas da sensibilidade” de Kant quando ganha o primeiro beijo.
— Não, isto seria uma loucura.
— E a fé assume importância maior quando se trata de questões religiosas. Kierkegaard acha que se quero entender Deus objetivamente, isto significa que eu não creio; e precisamente porque não posso entendê-lo objetivamente é que preciso crer. Assim, se quero preservar minha fé, preciso estar sempre atento para não me esquecer de que estou na incerteza objetiva “sobre setenta mil braças de água”, e ainda assim creio.
— Esta foi da pesada.
— Antes de Kierkegaard, muitos tinham tentado provar a existência de Deus ou então entendê-la racionalmente. Mas quando nos envolvemos com tais provas de existência de Deus ou com tais argumentos racionais, perdemos nossa fé e, com ela, nosso fervor religioso. Isto porque o fundamental não é saber se o cristianismo é verdadeiro, mas se é verdadeiro para mim. Na Idade Média expressava-se o mesmo pensamento com a fórmula “credo quia absurdum”.
— O quê?
— A expressão significa “Creio, porque é absurdo”. Se o cristianismo tivesse apelado à razão, e não ao nosso outro lado, ele não seria uma questão de fé.
— Agora entendi.
— Vimos, portanto, o que Kierkegaard entendia por “existência”, “verdade subjetiva” e “fé”. Kierkegaard chegou até esses conceitos por meio da crítica à razão filosófica, sobretudo a Hegel. Só que esses conceitos também expressam toda uma crítica da civilização. Para Kierkegaard, a sociedade urbana moderna transformou o homem em “público”, em “instância coletiva”, e a primeira característica da multidão é justamente este “palavrório” inconseqüente. Hoje talvez empregássemos a palavra “conformidade”, ou seja, o fato de que todos “acham” ou “defendem” uma mesma coisa, mas ninguém tem uma relação verdadeiramente apaixonada com o tema.
— Imagino o que Kierkegaard não teria dito aos pais de Jorunn!
— De fato, ele não foi muito indulgente com os outros. Foi um crítico mordaz, capaz de usar uma ironia cáustica. Ele escreveu, por exemplo: “A multidão é a inverdade”. Ou: “A verdade está sempre na minoria”. Kierkegaard disse também que a maioria das pessoas se relacionava de forma extremamente inconseqüente com a vida.
— Colecionar bonecas Barbie é uma coisa. Ser uma Barbie é ainda pior…
— Isto nos leva à teoria de Kierkegaard sobre os três estágios na trajetória da vida.
— O que você disse?
— Kierkegaard achava que havia três possibilidades diferentes de existência. Ele mesmo emprega a palavra “estágios”. A essas possibilidades ele dá o nome de “estágio estético”, “estágio ético” e “estágio religioso”. Quando emprega a palavra “estágio”, ele quer dizer que podemos estar vivendo num dos dois estágios inferiores e de repente conseguimos “saltar” para um estágio superior.
— Aposto que vem aí uma explicação. Eu mesma estou curiosa para saber em qual dos três estágios me encontro.
— Quem vive no estágio estético vive o momento e visa sempre ao prazer. Bom é aquilo que é belo, simpático ou agradável. Desse ponto de vista, tal pessoa vive inteiramente no mundo dos sentidos. O esteta acaba virando joguete de seus próprios prazeres e estados de ânimo. Negativo é tudo aquilo que aborrece, que “não é legal”, como se costuma dizer hoje em dia.
— Ah… Isso aí eu conheço muito bem.
— O romântico típico também é um esteta, pois não se trata aqui simplesmente de prazer sensorial. Uma pessoa que possui uma relação lúdica com a realidade, ou, por exemplo, com a arte ou a filosofia de que se ocupa, também vive num estágio estético. E mesmo diante da preocupação e do sofrimento é possível se adotar um comportamento estético ou “de mero observador”. Neste caso, é a vaidade que toma as rédeas de tudo. Peer Gynt, de Ibsen, é retrato do esteta típico.
— Acho que entendo o que Kierkegaard quer dizer.
— Você está se reconhecendo neste conceito?
— Não inteiramente. Mas acho que isto tudo lembra um pouco o major.
— Sim, sim, é possível, Sofia. Embora isto seja outro exemplo da ironia romântica kitsch que é peculiar a ele. Você deveria lavar a boca!!
— O que você disse?
— Bem… não foi sua culpa.
— Prossiga.
— Aquele que vive no estágio estético está sujeito a sentimentos de medo e a sensação de vazio. Mas se ele experimenta esses sentimentos, então também há esperança. Para Kierkegaard, o medo é uma coisa quase positiva. Ele é um sinal de que a pessoa se encontra numa “situação existencial”. O esteta pode então decidir se quer dar o salto para um estágio superior. Ou ele acontece, ou então não acontece. De nada ajuda estar na iminência de pular e depois não realizar o salto. Ou uma coisa ou outra. E também não é possível que outra pessoa dê o salto em seu lugar. Você mesma tem de decidir e você mesma tem que pular.
— É mais ou menos como quando alguém quer largar a bebida ou as drogas.
— Sim, talvez. Quando Kierkegaard fala dessa decisão, ele nos faz lembrar um pouco de Sócrates, para quem todo conhecimento verdadeiro vinha de dentro. A decisão que leva uma pessoa a saltar de uma visão de mundo estética para uma ética ou religiosa deve vir de dentro. É exatamente isto que Ibsen mostra em Peer Gynt. Outro exemplo magistral de uma escolha existencial nos é dado pelo romance Crime e castigo, do escritor russo Dostoievski. Quando terminarmos nosso curso de filosofia, você não pode deixar de ler este livro.
— Vamos ver. Quer dizer que Kierkegaard acha que quando a coisa fica séria para o lado de alguém, a pessoa escolhe outra forma de ver a vida.
— E talvez comece a viver num estágio ético. Este estágio é marcado pela seriedade e por decisões consistentes, tomadas segundo padrões morais. Você se recorda da ética do dever, de Kant, segundo a qual devemos tentar viver de acordo com a lei moral. Como Kant, Kierkegaard também dedica sua atenção neste assunto sobretudo ao temperamento humano. O essencial não é necessariamente o que se considera certo ou errado. O essencial é a decisão de se posicionar em relação ao que é certo e ao que é errado. O esteta se interessa apenas pelo que é divertido ou entediante.
— E não se corre o risco de se levar a vida um pouco a sério demais quando se vive assim?
— É claro que sim. Mas Kierkegaard ainda não está satisfeito com o estágio ético. Para ele, também chega o dia em que o homem zeloso se cansa de ser tão ordeiro e tão cônscio de seus deveres. Muitas pessoas passam bem tarde na vida por esta fase de tédio e de fadiga. E então é possível que algumas delas adotem uma atitude mais lúdica em relação à vida e retornem ao estágio estético. Outras, por sua vez, ousam mais um salto rumo ao próximo estágio, o estágio religioso. Elas ousam o grande salto rumo às “setenta mil braças de água” da fé. Elas preferem a fé ao prazer estético e aos mandamentos da razão. E embora possa ser desesperador “cair nas mãos do Deus vivo”, para usar uma expressão do próprio Kierkegaard, só nesse caso o homem pode se reconciliar com sua própria vida.
— Através do cristianismo, portanto.
— Sim. Para Kierkegaard, o estágio religioso era o cristianismo. Apesar disso, sua filosofia influenciou também muitos pensadores não-cristãos. Em nosso século [XX] surgiu uma chamada filosofia da existência, ou Existencialismo, fortemente inspirada em Kierkegaard.
Sofia olhou o relógio.
— São quase sete. Preciso voltar correndo para casa, senão minha mãe vai ficar louca comigo.
Despediu-se do seu professor de filosofia e desceu correndo rumo ao lago onde estava ancorado o barco a remo.
CAPÍTULO 29 (EXCERTO)
MARX
(Páginas 417-429.)
(…)
Mais uma vez sentaram-se à mesa próxima da janela que dava vista para o lago. Sofia ainda se lembrava muito bem de como tinha visto o lago depois de ter bebido o líquido azul. Agora os dois frascos estavam sobre o console da lareira. Sobre a mesa havia uma cópia em miniatura de um templo grego.
— O que é isto? — perguntou Sofia.
— Uma coisa de cada vez, minha cara.
E então Alberto começou a falar sobre Marx:
— Em 1841, quando Kierkegaard foi a Berlim, é provável que ele tenha se sentado ao lado de Karl Marx nas palestras de Schelling. Kierkegaard tinha escrito uma tese sobre Sócrates, e Karl Marx, na mesma época, tinha defendido o seu doutorado sobre Demócrito e Epicuro. Sobre o materialismo na Antigüidade, portanto. Nos trabalhos dos dois já estava embutido o rumo que suas reflexões filosóficas iriam tomar.
— Quer dizer, Kierkegaard se tornou um filósofo existencialista e Marx um materialista.
— Chamamos Marx de um materialista histórico. Voltaremos a isto mais adiante.
— Continue!
— Tanto Kierkegaard quanto Marx tomaram como ponto de partida a filosofia de Hegel. Ambos foram influenciados pela forma de pensar hegeliana, mas ambos também se distanciaram da noção hegeliana de espírito universal, ou daquilo que chamamos do idealismo de Hegel.
— Na certa Hegel era um tanto vago para eles.
— Exatamente. De modo muito geral, podemos dizer que a era dos grandes sistemas filosóficos terminou com Hegel. Depois dele, a filosofia toma um novo rumo. Os grandes sistemas especulativos dão lugar às “filosofias da existência” ou “filosofias da ação”, como também podemos chamá-las. É a isto que Marx se refere quando diz que até então os filósofos sempre tinham tentado interpretar o mundo, em vez de tentar modificá-lo. E são exatamente essas palavras que determinam uma virada importante na história da filosofia.
— Depois de ter me encontrado com Scrooge e com a menina da caixa de fósforos, posso entender tranqüilamente o que Marx quis dizer.
— O pensamento de Marx tem, portanto, um objetivo prático e político. É preciso salientar que ele não era apenas filósofo. Marx foi também historiador, sociólogo e economista.
— E ele foi pioneiro em todas essas áreas?
— De qualquer forma, nenhum outro filósofo foi mais importante para a prática política. Por outro lado, precisamos ter cuidado para não identificarmos com seu pensamento tudo o que depois dele se chamou de “marxista”. Dizem que o próprio Marx se tornou “marxista” por volta de 1845, mas que durante toda a sua vida ele manifestou seu desconforto quanto a esta designação.
— Jesus também não foi cristão?
— Também isto é discutível.
— Continue.
— Desde o início, seu amigo e colega Friedrich Engels contribuiu para o que mais tarde foi chamado de marxismo. No século passado, Lênin, Stalin, Mao e muitos outros reivindicaram o reconhecimento público por terem levado o marxismo mais adiante. Nos países do Leste, depois de Lênin, apareceu o conceito de “marxismo-leninismo”.
— Acho melhor a gente se concentrar no próprio Marx. Você o chamou de “materialista histórico”, não foi?
— Ele não foi um filósofo materialista como os atomistas da Antigüidade ou como os materialistas mecanicistas dos séculos XVII e XVIII. Mas ele achava que eram as condições materiais de vida numa sociedade que determinavam nosso pensamento e nossa consciência. Para ele, tais condições materiais eram decisivas também para a evolução da história.
— Isso soa verdadeiramente diferente de Hegel e de seu espírito universal.
— Hegel havia explicado que a evolução histórica surgia da tensão entre opostos, que eram resolvidos numa mudança repentina. Desaparecidos os opostos, desaparecia também a tensão, é claro. Marx concordava com este pensamento. Ele achava apenas que o pobre Hegel tinha colocado tudo de cabeça para baixo.
— Mas não o tempo todo, espero.
— Hegel chamava de “espírito universal” ou “razão universal” a força que impelia a história para frente. Marx achava que este ponto de vista colocava a realidade de cabeça para baixo. Ele queria mostrar que as condições materiais de vida eram decisivas para a história. Nesse sentido, Marx dizia que não eram os pressupostos espirituais numa sociedade que levavam a modificações materiais, mas exatamente o oposto: as condições materiais determinavam, em última instância, também as espirituais. Além disso, Marx achava que as forças econômicas numa sociedade eram as principais responsáveis pelas modificações em todos os outros setores e, conseqüentemente, pelos rumos do curso da história.
— Você poderia me dar um exemplo?
— A filosofia e a ciência na Antigüidade tinham sido cultivadas quase como algo completamente desvinculado da realidade prática. Os antigos filósofos não estavam muito interessados em saber se os seus conhecimentos teóricos poderiam modificar para melhor as coisas na prática.
— Não?
— Isto se explica pelo modo como eram organizadas as sociedades em que eles viviam. A vida e a produção de alimentos nas sociedades da Antigüidade tinham por base sobretudo o trabalho escravo. Por esta razão, os cidadãos não tinham a menor necessidade de melhorar a produção com novidades práticas. Temos aí um exemplo de como o pensamento pode ser influenciado pelas relações materiais numa sociedade.
— Entendo.
— As relações materiais, econômicas e sociais numa sociedade são chamadas por Marx de bases desta sociedade. O modo de pensar de uma sociedade, suas instituições políticas, suas leis e também sua religião, moral, arte, filosofia e ciência são por ele chamados de superestrutura.
— Base e superestrutura, portanto.
— E talvez agora você possa me passar o templo grego.
— Com todo o prazer.
— Isto é uma cópia em miniatura do antigo Partenon, na Acrópole. Você chegou a vê-lo como ele realmente é.
— Na fita de vídeo, você quer dizer.
— Observe que o templo possui um telhado realmente elegante e ricamente ornamentado. Talvez sejam o telhado e o frontão os dois elementos que mais nos chamam a atenção à primeira vista. E é exatamente isto que podemos chamar de superestrutura. Só que o telhado não pode pairar sozinho no ar.
— Ele é sustentado por colunas.
— A construção inteira precisa de um alicerce sólido, uma base que a sustenta como um todo. Para Marx, as condições materiais “sustentam”, por assim dizer, todos os pensamentos e idéias de uma sociedade. Isto significa que a superestrutura de uma sociedade é o reflexo de sua base material.
— Você está querendo dizer que a teoria das idéias de Platão era apenas um reflexo das olarias e da viticultura de Atenas?
— Não, não é tão simples assim. O próprio Marx chamou expressamente a atenção para isto. É claro que a base e a superestrutura de uma sociedade se condicionam reciprocamente. Se Marx tivesse negado isto, ele teria sido um “materialista mecanicista”. Mas por ele ter reconhecido que entre a base e a superestrutura de uma sociedade também existe uma interação, uma tensão, nós o chamamos de materialista dialético. Você deve estar lembrada do que Hegel entendia por uma evolução dialética. E, a propósito, é bom dizer que Platão não trabalhou nem como oleiro, nem como viticultor.
— Entendo. Você ainda vai falar mais um pouco sobre o templo?
— Sim. Observe cuidadosamente a base dele. Será que você poderia descrevê-la para mim?
— As colunas estão apoiadas numa fundação composta por três camadas, ou degraus.
— Da mesma forma, podemos distinguir numa sociedade três camadas. Embaixo de tudo está o que Marx chama de as condições naturais de produção de uma sociedade. Nela estão compreendidas as condições naturais, os recursos naturais que preexistem, por assim dizer, à própria sociedade: o tipo de vegetação, as matérias-primas, as riquezas do solo, entre outros. Tais condições constituem os verdadeiros muros de arrimo na fundação de uma sociedade; e estes muros de arrimo estabelecem claras restrições quanto ao tipo de produção possível e, por extensão, quanto ao próprio tipo de sociedade e de cultura que podem florescer em determinado lugar.
— Não se pode pescar arenque no Saara, nem plantar tâmaras na Lapônia.
— Isso mesmo. Numa cultura nômade, porém, as pessoas pensam de forma completamente diferente do que, por exemplo, num povoado de pescadores na Noruega. A próxima camada é formada, então, pelas forças de produção de uma sociedade. Aqui, Marx está pensando na força de trabalho do próprio homem, mas também nos tipos de equipamentos, ferramentas e máquinas, os chamados meios de produção.
— Antigamente, as pessoas saíam remando para apanhar os peixes. Hoje em dia eles são apanhados em traineiras gigantescas.
— E com isto você já está passando para a terceira camada da base de uma sociedade. A coisa aqui se complica um pouco, pois se trata de quem detém os meios de produção numa sociedade e de como o trabalho é organizado no interior da sociedade. Trata-se, portanto, das relações de posse e da divisão de trabalho. Marx chama isto de relações de produção de uma sociedade. Elas são, portanto, a terceira camada da base social.
— Entendo.
— Até aqui podemos concluir, portanto, que para Marx o modo de produção numa sociedade determina que relações políticas e ideológicas podemos encontrar nela. Não é por acaso que hoje em dia pensamos diferente, e possuímos uma moral diferente, das pessoas que viviam numa sociedade feudal antiga.
— Quer dizer que Marx não acreditava num direito natural válido para qualquer época.
— Não. Para Marx, a resposta à pergunta sobre o que é moralmente correto era um produto da base social. De fato, não é por acaso que nas antigas comunidades de camponeses os pais determinavam com quem seus filhos deviam se casar. Afinal, tratava-se também de saber quem herdaria as terras. Numa grande cidade moderna, as relações sociais são outras; conseqüentemente, também são outras as formas pelas quais as pessoas buscam seus parceiros. Podemos conhecer nossos companheiros ou companheiras numa festa, ou então numa discoteca, e, se nos sentirmos suficientemente apaixonados um pelo outro, podemos passar a dividir uma casa ou um apartamento.
— Eu não ia gostar nada se meus pais escolhessem meu futuro marido.
— Não, pois você é fruto de sua época. Marx também afirmava que em geral era a classe dominante numa sociedade que determinava o que é certo e o que é errado. Pois, para ele, toda a história era a história das lutas de classes, ou seja, das discussões sobre a quem deveriam pertencer os meios de produção.
— Mas os pensamentos e as idéias das pessoas também não contribuem para as mudanças da história?
— Sim e não. Marx tinha consciência de que as relações na superestrutura de uma sociedade tinham algum efeito sobre a sua base. Só que ele negava que a superestrutura tivesse uma história só sua, independente do resto. Para ele, o que tinha feito a história avançar da sociedade escravocrata da Antigüidade até a sociedade industrial eram sobretudo as modificações na base da sociedade.
— Sim, você já disse isso.
— Em todas as fases da história existe, segundo Marx, um conflito entre duas classes dominantes da sociedade. Na sociedade escravocrata da Antigüidade havia um conflito entre os cidadãos livres e os escravos; na sociedade feudal da Idade Média, um conflito entre os senhores feudais e os vassalos e, mais tarde, entre nobres e plebeus. Mas no tempo de Marx, numa sociedade burguesa ou, como dissemos, capitalista, ele via este conflito sobretudo entre capitalistas e trabalhadores, ou entre capitalistas e o proletariado, quer dizer, entre os que possuíam e os que não possuíam os meios de produção. E como a classe “que estava por cima” jamais abriria mão voluntariamente de sua posição de dominância, só uma revolução seria capaz de provocar uma modificação nesse estado de coisas.
— E a sociedade comunista?
— Marx dedicou-se especialmente à questão da transição de uma sociedade capitalista para uma sociedade comunista. Para tanto, ele fez uma análise detalhada do modo de produção capitalista. Só que antes de abordarmos esta questão, vamos falar um pouco sobre o que Marx pensava a respeito do trabalho humano.
— Vamos lá.
— Antes de se tornar comunista, o jovem Marx interessava-se pelo que realmente acontece com o homem quando ele trabalha. Hegel também analisou este aspecto e constatou uma relação de troca mútua, uma relação “dialética” entre o homem e a natureza. O jovem Marx chegou à mesma conclusão: quando o homem altera a natureza, ele mesmo também se altera. Ou, em outras palavras: quando o homem trabalha, ele interfere na natureza e deixa nela suas marcas; mas neste processo de trabalho também a natureza interfere no homem e deixa marcas em sua consciência.
— Diz-me com que trabalhas e te direi quem és.
— Exatamente. Marx dizia que o modo como trabalhamos marca a nossa consciência, mas a nossa consciência também marca o modo como trabalhamos. Podemos dizer que existe uma interação entre “mão” e “cabeça”. Desta forma, o conhecimento do homem está intimamente relacionado com seu trabalho.
— Então deve ser horrível ficar desempregado.
— Sim. De certa forma, quem não tem um trabalho está solto no ar. Hegel já havia dito isso. Para Hegel e Marx o trabalho é uma coisa positiva; uma coisa que pertence à condição humana.
— Então também deve ser positivo ser um trabalhador.
— Fundamentalmente, sim. Mas é exatamente sobre este ponto que Marx constrói sua crítica avassaladora do modo de produção capitalista.
— Estou curiosa!
— No sistema capitalista, o trabalhador trabalha para outra pessoa. Dessa forma, seu trabalho é algo externo a ele mesmo; em outras palavras, seu trabalho não lhe pertence. O trabalhador se aliena em relação a seu trabalho e, ao mesmo tempo, em relação a si mesmo. Ele perde sua dignidade humana. Usando uma expressão hegeliana, Marx fala de alienação.
— Entendo o que você está dizendo. Eu tenho uma tia que embrulha bombons há mais de vinte anos numa fábrica. Ela diz que odeia ir para o trabalho todos os dias.
— E se ela odeia seu trabalho, Sofia, de alguma forma ela também se odeia.
— De qualquer forma ela odeia bombons.
— Na sociedade capitalista, o trabalho é organizado de modo a que um trabalhador realize um trabalho escravo para outra classe social. Desta forma, o trabalhador “cede” não apenas sua própria força de trabalho, como também toda a sua existência humana.
— Mas é tão ruim assim mesmo?
— Estamos falando de como Marx via as coisas. Por isso precisamos tomar como ponto de partida as condições sociais vigentes na Europa por volta de 1850. E nesse caso, a resposta à sua pergunta é “SIM”, em alto e bom som. Na grande maioria dos casos, os trabalhadores cumpriam uma jornada de trabalho de catorze horas dentro de fábricas geladas. E o que ganhavam era tão pouco, que até crianças e mulheres grávidas tinham de trabalhar. Tudo isto levou a condições sociais indescritíveis. Muitas vezes, parte do salário era paga em forma de aguardente barata e muitas mulheres tinham de se prostituir. Seus clientes eram os respeitáveis cidadãos da cidade. Em poucas palavras: o trabalho, que deveria ser um símbolo da dignidade humana, transformara o trabalhador num verdadeiro animal.
— Fico furiosa com essas coisas.
— Marx também ficava. Ao mesmo tempo, os filhos dos burgueses podiam tocar violinos em salões amplos, aquecidos, depois de terem tomado um banho reconfortante. Ou então podiam sentar-se ao piano, antes de saborear um delicioso almoço com quatro pratos principais. Muitas vezes eles também tocavam violino ou piano à tardinha, depois de um longo passeio a cavalo.
— Que injustiça!
— Marx também achava. Em 1848, ele publicou junto com Friedrich Engels o famoso Manifesto comunista. A primeira frase desse manifesto é a seguinte: “Um fantasma ronda a Europa: o fantasma do comunismo”.
— Puxa… me dá até medo.
— Pois os burgueses sentiram a mesma coisa. E foi então que o proletariado começou a se rebelar. Você quer ouvir como termina o manifesto?
— Quero.
— Então vamos lá: “Os comunistas não se importam de revelar suas idéias e intenções. Eles declaram abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados por meio de uma violenta revolução de toda a ordem social existente. Que as classes dominantes tremam diante da revolução comunista. Os proletários não têm nada a perder além de seus grilhões. Eles têm um mundo a ganhar! Proletários de todo o mundo, uni-vos!”.
— Se as condições de vida eram tão ruins quanto você falou, eu também teria assinado este manifesto. Mas hoje em dia as coisas mudaram, não é mesmo?
— Na Noruega sim, mas não em todos os lugares. Ainda há milhões de pessoas vivendo em condições subumanas. Ao mesmo tempo, essas mesmas pessoas fabricam coisas que deixam cada vez mais ricos os capitalistas. É isto que Marx chama de exploração.
— Você poderia explicar um pouco melhor esta palavra?
— Quando o trabalhador fabrica uma mercadoria, ela tem certo valor de venda.
— Sim.
— Se você descontar do preço de venda da mercadoria o salário do trabalhador e outros custos de produção, sempre acaba sobrando certa quantia. Esta quantia Marx a chama de mais-valia, ou lucro. Isto significa que o capitalista toma para si um valor que na verdade foi gerado pelo trabalhador. E é isto que Marx chama de exploração.
— Entendo.
— Pode acontecer, então, de o capitalista aplicar uma parte do lucro em novo capital, por exemplo, na modernização das instalações de produção. Ele o faz porque quer produzir as mercadorias a preços mais baixos e espera que, com isto, seus lucros aumentem.
— Sim, isso é lógico.
— Sim, isso parece lógico. Mas Marx dizia que nesse caso, como em muitos outros, as coisas não aconteciam no longo prazo exatamente como o capitalista tinha imaginado.
— O que ele queria dizer com isso?
— Marx achava o modo de produção capitalista contraditório em si. Para ele, o capitalismo era um sistema econômico autodestrutivo, sobretudo porque lhe faltava um controle racional.
— Quer dizer que no fundo isto era bom para os oprimidos, não era?
— Podemos dizer que sim. Para Marx, em todo caso, era certo que o sistema capitalista acabaria perecendo vítima de suas próprias contradições. Ele considerava o capitalismo “progressivo”, isto é, algo que aponta para o futuro, mas só porque via nele um estágio necessário a caminho do comunismo.
— Você pode me dar um exemplo de como o capitalismo seria autodestrutivo?
— Sim. Dissemos que o capitalista fica com um excedente de dinheiro e aplica uma parte deste lucro na modernização de sua empresa. É claro que paralelamente a isto ele tem de pagar as aulas de violino e também arcar com os custos de certos hábitos caros de sua esposa.
— Sem dúvida.
— Mas isto não é tão importante nesse contexto. O capitalista se moderniza, portanto; quer dizer, compra novas máquinas e por isso não precisa mais de tantos empregados. E o faz para aumentar sua competitividade em relação às outras empresas.
— Entendo.
— Mas ele não é o único que pensa assim. Isto significa que toda a produção de um setor vai sendo aos poucos racionalizada e se tornando mais efetiva. As fábricas ficam cada vez maiores e vão caindo nas mãos de uns poucos. E o que acontece depois, Sofia?
— Hum…
— Cada vez se precisa de menos mão de obra e cada vez mais trabalhadores ficam desempregados. Em decorrência disso agravam-se os problemas sociais. Tais crises, nos diz Marx, seriam o sinal de que o capitalismo estaria se aproximando de seu fim. Mas Marx vê ainda outros traços autodestrutivos no capitalismo. Para aumentar a margem de lucro ligada aos meios de produção, sem diminuir a mais-valia que garante a produção a preços competitivos… o que faz o capitalista, hein? Será que você sabe me dizer?
— Não, não sei.
— Imagine que você possui uma fábrica, as finanças não vão muito bem e você corre perigo de abrir falência. O que você pode fazer para economizar dinheiro?
— Posso baixar os salários, por exemplo.
— Muito inteligente! Isto seria realmente a coisa mais inteligente que você poderia fazer. Mas se todos os capitalistas forem tão espertos quanto você, e eles são, os trabalhadores vão ficar tão empobrecidos que não terão dinheiro para comprar mais nada. Falamos, neste caso, de uma queda do poder aquisitivo de uma sociedade. E então entramos num círculo vicioso. Marx achava que a propriedade privada capitalista estava com os dias contados e que a situação descrita acima estava bem próxima de uma situação revolucionária.
— Entendo.
— Para resumir: Marx acreditava que, no fim, os proletários iam acabar se rebelando para tomar o poder sobre os meios de produção.
— E depois?
— Segundo Marx, o resultado disso seria o surgimento de uma nova sociedade de classes, na qual o proletariado subjugaria à força a burguesia. Esta fase de transição Marx a chama de ditadura do proletariado. Depois disso, acreditava ele, a ditadura do proletariado daria lugar a uma sociedade sem classes, o comunismo. E esta seria uma sociedade na qual os meios de produção pertenceriam “a todos”, isto é, ao povo. Em tal sociedade, “cada um trabalharia de acordo com sua capacidade e ganharia de acordo com suas necessidades”. O trabalho pertenceria ao próprio povo e terminaria, assim, a alienação.
— Isto soa muito bonito. Mas foi mesmo o que aconteceu? Não houve uma revolução?
— Sim e não. Os cientistas econômicos de hoje provam que Marx estava enganado em vários pontos importantes, inclusive em suas análises das crises do capitalismo. Marx também não prestou a devida atenção à exploração da natureza, que para nós é cada vez mais ameaçadora. Apesar disso…
— Sim?
— Apesar disso, o marxismo provocou grandes transformações. Não há dúvida de que o socialismo, que se baseia em Marx em sua luta pela igualdade social, apesar de não concordar com tudo o que ele disse e apesar de rejeitar a ditadura do proletariado, por exemplo, conseguiu a muito custo chegar a uma sociedade mais humana. Na Europa, pelo menos, vivemos hoje numa sociedade mais justa e mais solidária do que viviam as pessoas na época de Marx. E não podemos negar que devemos isso ao movimento socialista como um todo.
— Dá para explicar um pouco melhor este movimento socialista?
— Depois de Marx, o movimento socialista dividiu-se em duas correntes principais: de um lado, a democracia social; de outro, o leninismo. A democracia social, cujo objetivo era encontrar um caminho paulatino e pacífico para uma ordem social mais justa, prevaleceu na Europa ocidental. Podemos chamar o caminho por ela percorrido de uma lenta revolução. O leninismo, por sua vez, que continuou a acreditar que só uma revolução seria capaz de combater a antiga sociedade de classes, ganhou importância na Europa oriental, na Ásia e na África. Cada uma dessas ramificações procura lutar a seu modo contra a penúria e a opressão.
— Mas o resultado disso não acabou sendo uma nova forma de opressão? Por exemplo, na União Soviética e no Leste europeu?
— Sem dúvida. E aqui temos mais uma vez a prova de que tudo o que o homem toca se transforma numa mistura de bem e de mal. Seria totalmente errôneo responsabilizar Marx pelos descaminhos e pelo lado negro dos chamados países socialistas cinqüenta ou cem anos depois de sua morte. O que podemos dizer é que ele poderia ter pensado que até mesmo o comunismo, se é que um dia existiria, não poderia ser administrado senão por pessoas. E as pessoas cometem erros. Não é possível querer ter o céu na terra. As pessoas sempre criarão novos problemas.
— Com toda a certeza.
— Bem, acho que podemos ir colocando um ponto final por aqui, Sofia.
— Espere um pouco! Você não disse alguma coisa parecida com “só existe justiça entre iguais”?
— Não. Foi Scrooge quem disse isto.
— Como é que você sabe que foi ele quem disse isto?
— Bem, nós dois somos frutos da imaginação do mesmo autor. Deste modo estamos muito mais ligados um ao outro do que pode parecer à primeira vista.
— Você e sua ironia incorrigível!
— Ironia em dose dupla, Sofia.
— Mas vamos voltar um pouquinho a esta questão da injustiça. Você disse que Marx considerava o capitalismo uma sociedade injusta. Como você definiria uma sociedade justa?
— John Rawls, um filósofo da moral de inspiração marxista, sugeriu uma interessante situação hipotética para ilustrar este problema: imagine que você fosse membro de um Alto Conselho, cuja tarefa fosse elaborar todas as leis de uma sociedade do futuro.
— Eu bem que gostaria de fazer parte deste Conselho.
— Os membros do Conselho teriam de pensar em absolutamente tudo, pois assim que estivessem de acordo sobre todas as questões e assinassem as leis, cairiam mortos.
— Deus meu!
— E alguns segundos depois voltariam à vida exatamente na sociedade cujas leis tinham elaborado. E agora vem o mais importante: nenhum deles saberia onde acordaria nesta sociedade, quer dizer, ninguém saberia qual seria a posição que iria ocupar dentro dela.
— Entendo.
— Tal sociedade seria uma sociedade justa, pois cada um estaria entre seus iguais.
— E cada uma entre suas iguais!
— Claro. Isto porque no jogo proposto por Rawls ninguém saberia se acordaria homem ou mulher nesta nova sociedade. E como as chances seriam de cinqüenta por cento para cada probabilidade, a sociedade seria igualmente atrativa tanto para homens quanto para mulheres.
— Isto me soa muito atraente.
— Agora, diga-me: a Europa era uma sociedade assim nos tempos de Marx?
— Não!
— Talvez você possa me dar um exemplo de uma sociedade assim em nossos dias…
— Bem… boa pergunta.
— Pense sobre o assunto. Por ora chega de Marx.
— O que você disse?
— Próximo capítulo!
CAPÍTULO 30 (EXCERTO)
DARWIN
(Páginas 430-455.)
(…)
Nem bem Alberto tinha dito “fim do capítulo”, alguém bateu na porta da cabana.
— Que outra escolha nós temos? — perguntou Sofia.
— É verdade… — murmurou Alberto.
Lá fora havia um homem muito velho, com cabelos compridos e barba. Com a mão direita segurava um bordão e com a esquerda um cartaz que mostrava um navio apinhado de animais de todas as espécies e tamanhos.
— Quem é o senhor? — perguntou Alberto.
— Meu nome é Noé.
— Eu já podia imaginar.
— Sou o teu antecessor mais antigo, meu jovem. Será que já está fora de moda reconhecer o próprio antecessor?
— O que o senhor está segurando aí? — perguntou Sofia.
— Uma gravura que mostra todos os animais que foram salvos de um grande dilúvio. Tome, minha filha, é para você.
Sofia pegou o cartaz e o velho continuou:
— E agora preciso ir para casa regar as videiras.
Deu um pequeno salto, bateu os calcanhares no ar, e saiu pulando em direção à floresta como só um homem velho, mas de muito bom humor, seria capaz de fazer.
Sofia e Alberto fecharam a porta e sentaram-se. Sofia ficou olhando a gravura e ainda não tinha conseguido ver tudo, quando Alberto a arrancou de suas mãos.
— Primeiro vamos nos concentrar nas grandes linhas.
— Está certo.
— Esqueci de mencionar que Marx passou os últimos trinta e quatro anos de sua vida em Londres. Ele se mudou para lá em 1849 e morreu em 1883. Durante todo este tempo, Charles Darwin também morou nos arredores de Londres. Ele morreu em 1882 e foi sepultado com toda a pompa e circunstância na abadia de Westminster como um dos filhos mais ilustres da Inglaterra. Mas não é apenas no tempo e no espaço que os caminhos de Marx e Darwin se cruzam. Marx quis dedicar a Darwin a versão inglesa de sua grande obra, O capital, mas Darwin não aceitou. Quando Marx morreu, um ano depois de Darwin, seu amigo Friedrich Engels disse: “Assim como Darwin descobriu a lei da evolução da natureza orgânica, Marx descobriu a lei da evolução da história humana”.
— Entendo.
— Outro pensador importante, que também podemos relacionar com Darwin, foi o psicólogo Sigmund Freud. Mais de meio século mais tarde, Freud também passou seus últimos anos em Londres. Ele dizia que tanto a teoria da evolução, de Darwin, quanto sua própria psicologia do homem haviam ferido profundamente o “egoísmo ingênuo” do homem.
— São nomes demais. Vamos falar agora de Marx, Darwin ou Freud?
— Em termos bem gerais, podemos falar de uma corrente naturalista, que se estende de meados do século XIX até bem recentemente. Por “naturalismo” entende-se uma concepção de realidade que não aceita qualquer outra realidade a não ser a natureza e o mundo fenomenológico. Conseqüentemente, o naturalista considera o homem parte da natureza e o pesquisador natural parte exclusivamente de dados concretos da natureza, e não de especulações racionalistas ou de alguma outra forma de revelação divina.
— E isto vale tanto para Marx quanto para Darwin e Freud?
— Exatamente. As palavras-chave da filosofia e da ciência em meados do século passado [XIX] eram “natureza”, “meio ambiente”, “história”, “evolução” e “crescimento”. Marx havia dito que a consciência humana era um produto da base material de uma sociedade. Darwin mostrou que o homem era o produto de uma longa evolução biológica e o estudo de Freud sobre o inconsciente deixou claro que as ações dos homens freqüentemente são devidas a certos impulsos ou instintos “animais”, próprios de sua natureza.
— Acho que estou entendendo mais ou menos o que você está chamando de naturalismo. Mas não seria melhor falarmos de um de cada vez?
— Já falamos sobre Marx. Vamos falar agora sobre Darwin. Você certamente ainda se lembra de que os pré-socráticos queriam encontrar explicações naturais para os processos da natureza. Assim como através disso eles queriam se libertar das antigas explicações mitológicas, também Darwin precisava se libertar da doutrina cristã sobre a criação do homem e dos animais, vigente em sua época.
— Mas ele foi realmente um filósofo?
— Darwin era biólogo e pesquisador natural. Mas ele foi o cientista que, mais do que qualquer outro em tempos mais modernos, questionou e colocou em dúvida a visão bíblica sobre o lugar do homem na criação.
— Então seria bom você falar um pouco sobre a teoria da evolução de Darwin.
— Vamos começar pelo próprio Darwin. Ele nasceu em 1809 na cidadezinha de Shrewsbury. Seu pai, o doutor Robert Darwin, era um médico muito conhecido na cidade e educou seu filho de forma muito severa. Quando Charles entrou para o liceu de Shrewsbury, o reitor dizia que ele era um jovem que vivia disperso, não falava coisa com coisa, se gabava sem ter motivo para isto e não fazia nada de sensato. Para o reitor, “sensato” era ficar decorando vocábulos gregos e latinos. E quando falava em viver disperso, ele estava pensando, entre outras coisas, no fato de Charles colecionar besouros de várias espécies.
— Na certa ele acabou se arrependendo de suas palavras.
— Durante a época em que cursou teologia, Darwin interessou-se mais por aves e insetos do que pelas matérias de seu curso. Por esta razão, nunca tirava boas notas em suas provas do curso de teologia. Paralelamente ao curso de teologia, porém, ele conseguiu certo reconhecimento como pesquisador natural. Darwin também se interessava por geologia, provavelmente o ramo da ciência em fase de maior expansão naquela época. Em abril de 1831, depois de ter sido aprovado em seu exame de teologia, ele viajou pelo Norte do País de Gales a fim de estudar formações rochosas e pesquisar fósseis. Em agosto do mesmo ano, com apenas vinte e dois anos, recebeu uma carta que viria a determinar todo o seu futuro…
— O que estava escrito nesta carta?
— A carta vinha de John Steven Henslow, seu amigo e professor. Nela, Henslow dizia que lhe haviam pedido para indicar o nome de um pesquisador natural a um certo capitão Fitzroy, que, a mando do governo, partiria numa expedição com a incumbência de fazer o mapa cartográfico do extremo sul da América do Sul. Na carta, Henslow dizia que havia indicado o nome de Darwin, a seu ver a pessoa mais qualificada para tal missão; dizia, ainda, que não fazia a menor idéia de quanto pagariam para o tal pesquisador, mas que a viagem duraria dois anos…
— Como você consegue se lembrar de todos estes detalhes?
— Isso é fácil, Sofia.
— E Darwin concordou com a viagem?
— Ele ficou muito entusiasmado com a idéia, mas naquela época os jovens não podiam fazer nada sem o consentimento de seus pais. Darwin pediu a seu pai, que depois de muito vaivém acabou concordando e ainda teve de pagar a viagem do filho. Quanto ao salário, soube-se depois que não havia qualquer honorário previsto para o pesquisador…
— Oh…
— O navio era da Marinha e se chamava H. M. S. Beagle. Em 27 de dezembro de 1831, o Beagle zarpou de Plymouth com destino à América do Sul e só voltou para a Inglaterra em outubro de 1836. Os dois anos inicialmente previstos transformaram-se, portanto, em cinco. É que a viagem à América do Sul acabou se transformando numa volta ao mundo. E estamos falando aqui da mais importante viagem de pesquisa realizada em tempos mais modernos.
— Eles realmente viajaram o mundo todo?
— Sim, no sentido mais profundo da palavra “viagem”. Da América do Sul, o navio seguiu viagem pelo Pacífico até a Nova Zelândia, Austrália e Sul da África. De lá, passou novamente pela América do Sul e finalmente retornou à Inglaterra. O próprio Darwin se referiu à viagem com o Beagle como o acontecimento realmente mais importante de toda a sua vida.
— Não devia ser nada fácil ser pesquisador natural no mar…
— Sim, mas no primeiro ano da viagem o Beagle ficou viajando ao longo da costa da América do Sul. Isto proporcionou a Darwin muitas oportunidades de desembarcar e de se familiarizar com este continente. Muito importantes também foram as várias e rápidas visitas às ilhas Galápagos, no oceano Pacífico, a oeste da América do Sul. Darwin conseguiu reunir um farto material de pesquisa que, aos poucos, ia sendo enviado à sua terra natal. Suas reflexões sobre a natureza e sobre a história da vida, porém, ele as guardava para si. Quando voltou para casa, aos vinte e sete anos, já era um pesquisador famoso. E dentro de si já havia também uma clara noção daquilo que viria a ser a sua teoria da evolução. Apesar disso, muitos anos ainda se passaram até que ele publicou sua obra principal. Isto porque Darwin era um homem muito cauteloso, Sofia. E este é um traço característico de um bom pesquisador natural.
— Como se chamou esta sua obra principal?
— Bem, houve muitas. Mas o livro que suscitou na Inglaterra os mais calorosos debates foi Sobre a origem das espécies, publicado em 1859. Seu título completo é On the origin of species by means of natural selection or the preservation of favoured races in the struggle for life. Na verdade, este título longo resume a teoria de Darwin.
— Então você precisa traduzi-lo para mim.
— Isto não é uma coisa muito fácil, já que os conceitos que aparecem neste título foram traduzidos de formas diferentes desde então. Uma tradução feita hoje poderia ser a seguinte: “Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural ou A preservação de raças favorecidas na luta pela vida”. Alguns preferem falar em “sobrevivência” no lugar de “preservação”, outros em “esforço pela manutenção da vida”, em vez de “luta pela vida”, que teria um “tom bélico”.
— De qualquer forma, é um título muito rico em conteúdo.
— Vamos tomar cada parte separadamente. Em Origem das espécies, Darwin defendia duas teorias ou teses principais: em primeiro lugar, ele dizia que todas as espécies de plantas e animais que vivem hoje descendem de formas mais primitivas, que viveram em tempos passados. Ele pressupõe, portanto, uma evolução biológica. Em segundo, Darwin explica que esta evolução se deve à “seleção natural”.
— Só os mais fortes sobrevivem, não é isto?
— Vamos nos concentrar primeiro na sua reflexão sobre a evolução propriamente dita. Em si, esta idéia não tinha muito de original. Em alguns círculos de estudiosos, a suposição de uma evolução biológica já era bastante difundida por volta de 1800. O porta-voz desta idéia era o zoólogo francês Jean de Lamarck. Antes dele, o avô de Darwin, Erasmus Darwin, formulou uma teoria segundo a qual as plantas e os animais teriam evoluído a partir de poucas espécies primitivas. Só que nenhum deles tinha conseguido dar uma explicação aceitável para como essa evolução se processava. Por esta razão, a Igreja não os considerava rivais muito perigosos.
— O que não foi o caso com Darwin, não é mesmo?
— Sim, e não sem razão. Tanto os membros da Igreja quanto muitos cientistas eram partidários da teoria bíblica segundo a qual as diferentes espécies de plantas e animais eram imutáveis. Para eles, cada espécie animal tinha sido criada um dia, separadamente das outras e para todo o sempre, por um ato de criação especial. Além disso, esta visão cristã estava de acordo com as concepções de Platão e de Aristóteles.
— Como?
— A teoria das idéias de Platão tinha como ponto de partida a noção de que todas as espécies animais eram imutáveis, já que cada uma tinha sido criada a partir de um modelo correspondente a uma idéia ou forma eterna. O fato de as espécies animais serem imutáveis também é uma pedra fundamental na filosofia de Aristóteles. Na época de Darwin, porém, algumas observações e descobertas colocaram em dúvida esta concepção tradicional.
— Que observações e que descobertas?
— Em primeiro lugar, a descoberta de novos fósseis e, em segundo, a descoberta de restos de esqueletos de animais extintos. O próprio Darwin ficou surpreso com o fato de se encontrarem nas montanhas fósseis de animais marinhos. Na América do Sul, ele mesmo havia feito descobertas como essas no alto dos Andes. Mas o que animais marinhos estariam fazendo no alto dos Andes, Sofia? Será que você pode me responder?
— Não.
— Alguns achavam que eram os homens ou outros animais que os haviam deixado lá em cima. Outros diziam que Deus teria criado esses fósseis e restos de animais marinhos para confundir os incrédulos.
— E qual era a opinião da ciência?
— A maioria dos geólogos era adepta de uma “teoria das catástrofes”, segundo a qual a Terra teria sido castigada muitas vezes por inundações, terremotos e outras catástrofes, capazes de destruir todas as formas de vida. A Bíblia também faz referência a uma dessas catástrofes: o grande dilúvio que levou Noé a construir sua arca. Depois de cada cataclismo, pelo menos era o que se dizia, Deus renovava a vida na Terra criando plantas e animais novos, mais evoluídos.
— Quer dizer que os fósseis seriam “marcas impressas” de todas as formas anteriores de vida, que haviam sido extintas por essas catástrofes horríveis?
— Exatamente. Dizia-se, por exemplo, que os fósseis seriam marcas de animais que não haviam encontrado mais lugar na arca de Noé. Mas quando Darwin zarpou a bordo do Beagle, levou consigo o primeiro volume de Principles of geology, do geólogo inglês Charles Lyell. Lyell considerava a atual geografia da Terra, com seus picos elevados e vales profundos, o resultado de uma evolução interminavelmente longa e lenta. Ele dizia que qualquer alteração, por menor que fosse, era capaz de causar profundas transformações geográficas, se tais processos fossem considerados à luz de grandes intervalos de tempo.
— Em que tipo de alteração ele estava pensando?
— Ele estava pensando nas mesmas forças que continuam atuando até hoje: o clima, o vento, o degelo, os terremotos e as elevações do solo. Todo mundo sabe que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. E isto não acontece por causa da força da água, mas pela constância, pela insistência das gotas. Lyell acreditava que tais alterações, pequenas e graduais, eram capazes de alterar completamente a natureza em longo prazo. E Darwin pressentiu que esta idéia não explicaria apenas o porquê de ele ter encontrado fósseis de animais marinhos no alto dos Andes. Durante toda a sua vida como pesquisador, ele nunca se esqueceu de que alterações pequenas e graduais podiam levar a transformações dramáticas, se se considerasse o fator tempo.
— E então ele achou que uma explicação parecida poderia ser aplicada também à questão da evolução dos animais, não é?
— Sim, foi exatamente isso que ele pensou. Mas, como dissemos, Darwin era um homem cauteloso. Entre as perguntas que ele se fazia e as respostas que se aventurava a dar havia sempre um bom intervalo de tempo. Deste modo, ele usou o método de todos os verdadeiros filósofos, segundo o qual “perguntar é importante, mas não é preciso se apressar com uma resposta”.
— Entendo.
— Um fator decisivo na teoria de Lyell era a idade da Terra. Em muitos círculos de estudiosos na época de Darwin era corrente a suposição de que Deus teria criado a Terra havia cerca de seis mil anos. E as pessoas tinham chegado a este número contando todas as gerações desde Adão e Eva até o presente.
— Que coisa mais ingênua!
— Bem, é muito fácil ser mais inteligente depois. Darwin estimou a idade da Terra em trezentos milhões de anos. Isto porque uma coisa era certa: nem a teoria de Lyell sobre a evolução geológica gradual, nem a teoria da evolução do próprio Darwin faziam sentido, se não fossem consideradas à luz de intervalos de tempo extremamente dilatados.
— E qual é a idade da Terra?
— Sabemos hoje que a Terra tem alguns bilhões de anos.
— Isso é bastante…
— Até agora nós nos concentramos em um dos argumentos propostos por Darwin para a evolução biológica: os depósitos estratificados de fósseis em diferentes formações rochosas. Outro argumento era a distribuição geográfica das espécies vivas. Nesse sentido, a viagem de pesquisa de Darwin proporcionou-lhe um material novo e extremamente rico. Ele havia visto com seus próprios olhos que as diferentes espécies de animais de uma região distinguiam-se umas das outras por detalhes mínimos. Foi nas ilhas Galápagos, a oeste do Equador, que ele fez algumas observações muito interessantes.
— Conte!
— As ilhas Galápagos são um grupo de ilhas vulcânicas bem próximas umas das outras. Não havia, portanto, grandes diferenças na flora e na fauna. Mas Darwin estava interessado justamente nas pequenas diferenças. Em todas as ilhas ele encontrou tartarugas gigantes, mas de ilha para ilha elas eram um pouco diferentes. Será que Deus realmente tinha criado uma espécie de tartaruga gigante para cada uma daquelas ilhas?
— Muito pouco provável.
— Mais importante ainda foi o que Darwin observou nos pássaros das ilhas Galápagos. As espécies de tentilhões variavam de ilha para ilha, o que podia ser observado nas formas dos bicos desses pássaros. Darwin conseguiu demonstrar que essas diferenças estavam intimamente relacionadas com o modo como os tentilhões se alimentavam nas diferentes ilhas. Alguns deles viviam de comer sementes de pinhas; outros se alimentavam de insetos do chão; outros ainda viviam de comer insetos dos troncos e galhos de árvores… Cada uma dessas espécies tinha um bico que se adaptava perfeitamente ao seu tipo de alimento. Não seria possível que todos esses tentilhões tivessem descendido de uma mesma e única espécie de tentilhão? E será que esta espécie de tentilhão, ao longo dos anos, não tinha se adaptado ao meio ambiente das diferentes ilhas de tal modo que, no final, haviam surgido novas espécies de tentilhões?
— Esta foi a conclusão a que ele chegou mais tarde, não foi?
— Sim. É bem provável que Darwin só tenha se tornado um “darwinista” nas ilhas Galápagos. Ele observou também que a fauna deste pequeno arquipélago tinha grandes semelhanças com muitas espécies de animais que ele tinha visto na América do Sul. Será que Deus realmente tinha criado esses animais para todo o sempre com pequenas diferenças, ou será que os próprios animais tinham se modificado ao longo do tempo? Cada vez mais Darwin duvidava de que as espécies eram imutáveis. Só que ainda lhe faltava uma explicação convincente para o modo como se processava esta evolução, ou esta adaptação ao meio ambiente. O que ele tinha era um argumento para a suposição de que todos os animais da Terra eram parentes.
— Que argumento?
— A evolução dos embriões dos mamíferos. Se você comparar os embriões de um cachorro, de um morcego, de um coelho e de um homem em seus primeiros estágios, você quase não perceberá diferença entre eles. Só numa fase posterior do desenvolvimento do embrião é que se pode distinguir entre o embrião de um homem e o de um coelho. Isto não seria indicativo de que somos parentes distantes dos coelhos?
— Mas ele continuava sem explicar como se processava a evolução para as diferentes espécies…
— A toda hora Darwin pensava na teoria de Lyell sobre as minúsculas alterações capazes de provocar grandes transformações ao longo do tempo. Só que ele não conseguia encontrar uma explicação que pudesse valer como princípio universal. É claro que ele conhecia a teoria de Lamarck, segundo a qual as diferentes espécies de animais tinham desenvolvido exatamente aquilo de que precisavam. As girafas, por exemplo, teriam um pescoço tão comprido porque, ao longo das gerações, tiveram que esticá-lo cada vez mais para apanhar as folhas das árvores. Lamarck acreditava também que as características adquiridas pelo indivíduo por meio de seu próprio esforço eram herdadas depois por seus descendentes. Mas a teoria da “hereditariedade de características adquiridas” era rejeitada por Darwin, pois Lamarck não havia conseguido provar suas afirmações. Foi então que Darwin começou a pensar em outra coisa, muito mais próxima e evidente. Podemos dizer que o verdadeiro mecanismo da evolução das espécies estava bem diante do seu nariz.
— Estou curiosa.
— Só que você mesma vai descobrir que mecanismo é este. Responda-me a seguinte pergunta: se você possui três vacas, mas só tem comida para alimentar duas, o que você faz?
— Humm… posso abater a terceira, talvez?
— Exatamente… E qual delas você abateria?
— Certamente aquela que dá menos leite.
— Você acha isso mesmo?
— Sim, é uma coisa lógica.
— Pois isso é exatamente o que os homens vêm fazendo há milênios. Mas ainda não terminamos nossa reflexão sobre as duas vacas que sobraram. Vamos supor que você queira que uma delas se reproduza. Qual você escolheria para cruzar?
— Aquela que dá mais leite. É que sua cria provavelmente também seria uma boa vaca leiteira.
— Quer dizer que você prefere as vacas que dão mais leite às que dão menos leite, não é? Pois bem, só precisamos de mais uma pergunta. Se você gosta de caçar e tem dois cães farejadores, mas precisa dar um deles, qual dos dois você manteria em casa?
— Naturalmente aquele que tem o melhor faro para o tipo de caça que eu quero.
— Ou seja, você preferiria o melhor cão farejador. E é assim, Sofia, que os homens vêm criando animais domésticos há mais de dez mil anos. Nem sempre as galinhas botaram cinco ovos por semana, as ovelhas nem sempre tiveram tanta lã e os cavalos nem sempre foram tão fortes e tão rápidos. Só que os homens fizeram uma seleção artificial. O mesmo vale para a flora. Por que semear batatas estragadas, se podemos conseguir tanchões sadios? Ninguém quer se dar ao trabalho de colher espigas sem grãos. Darwin explica que não há duas vacas, duas espigas, dois cães nem dois tentilhões que sejam iguais. A natureza apresenta uma vasta gama de variações. Mesmo dentro de uma única espécie não há dois indivíduos rigorosamente iguais. E você já deve ter percebido isto quando bebeu o líquido azul.
— Sim, é verdade!
— Em vista disso, Darwin não pôde deixar de se perguntar se na natureza não haveria um mecanismo correspondente. Seria possível que também a natureza fizesse uma seleção, neste caso “natural”, dos indivíduos que pudessem se desenvolver? E ainda: este mecanismo não poderia, ao longo do tempo, provocar o surgimento de novas espécies de plantas e animais?
— Aposto que a resposta é sim.
— Darwin ainda não tinha conseguido entender muito bem qual seria tal seleção “natural”. Mas em outubro de 1838, exatamente dois anos depois de ter retornado com o Beagle, caiu-lhe às mãos casualmente um pequeno livro de Thomas Malthus, especialista em estudos populacionais. O livro se chamava Ensaio sobre o princípio de população. Malthus buscara inspiração para escrever este livro no americano Benjamin Franklin, que entre outras coisas inventou também o pára-raios. Franklin chamava a atenção para o fato de que na natureza devia haver fatores de limitação, pois se assim não fosse uma única espécie de planta ou de animal teria se espalhado por toda a Terra. E era o simples fato de haver diferentes espécies que as mantinha em equilíbrio.
— Entendo.
— Malthus desenvolveu esta idéia e a aplicou à situação populacional da Terra. Ele dizia que a capacidade de procriação do homem é tão grande que o número de nascimentos é sempre muito superior ao número de crianças que chegam a crescer. E como a produção de alimentos nunca consegue acompanhar o crescimento populacional, um grande número de pessoas está condenado a perecer na luta pela sobrevivência. Quem consegue sobreviver, e pode assim assegurar o sustento de sua família, está entre aqueles que melhor se saíram na luta pela sobrevivência.
— Isto parece lógico.
— E era exatamente este o mecanismo universal que Darwin vinha procurando. De repente, ele achou uma explicação para o modo como a evolução se processa. E a responsável por isso tudo é a seleção natural na luta pela vida: quem melhor se adapta ao meio ambiente sobrevive e pode garantir a continuidade de sua espécie. Esta era a segunda teoria que ele publicou em seu livro Sobre a origem das espécies. Ele escreve: “O elefante se reproduz mais lentamente que os demais animais e eu me dei ao trabalho de calcular o número mínimo provável de sua procriação natural. Podemos supor com certa margem de segurança que a fase reprodutora do elefante começa aos trinta anos e vai até os noventa. Podemos supor, ainda, que durante este período ele consegue gerar seis filhotes e que vive até os cem anos. Neste caso, após setecentos e quarenta ou setecentos e cinqüenta anos haveria cerca de dezenove milhões de descendentes de um único par”.
— Isto para não falarmos das milhares de ovas de um único bacalhau.
— Darwin também explicou que a luta pela sobrevivência entre as espécies mais próximas geralmente é a mais acirrada. É que elas precisam lutar pelo mesmo alimento. E nessa hora são as pequenas diferenças, ou seja, os pequenos desvios positivos da média, que mais contam. Quanto mais acirrada a luta pela sobrevivência, mais rápida a evolução de novas espécies. E nesse contexto sobrevivem apenas os que melhor se adaptaram; todos os outros perecem.
— Quer dizer que quanto menos alimento e quanto mais crescimento tanto mais rápida é a evolução?
— Mas a questão não é só de alimento. Outro dado importante é a capacidade de escapar das garras de outros animais. Por exemplo, pode ser muito vantajoso ter uma cor de pele que funciona como camuflagem, poder correr rapidamente, pressentir a presença de predadores ou, pelo menos, ter um sabor repelente. Um veneno capaz de matar os predadores também pode ser importante. Não é por acaso que muitos cactos são venenosos, Sofia. É que quase nada além dos cactos é capaz de crescer nos desertos. Por esta razão, estas plantas estão particularmente expostas a predadores vegetarianos.
— Além disso, muitas espécies de cactos possuem espinhos.
— Outra coisa de fundamental importância é, naturalmente, a capacidade de reprodução. Darwin dedicou-se intensamente ao estudo da polinização das plantas. As flores exibem suas lindas cores e exalam doces perfumes a fim de atrair insetos que ajudam na polinização. Pelo mesmo motivo, os pássaros gorjeiam seus lindos trinados. Um boi plácido e melancólico, que não se interessa por vacas, é totalmente irrelevante para a história de sua raça. Afinal, a única tarefa deste indivíduo é atingir a maturidade sexual e procriar, a fim de dar continuidade à raça. É como uma grande corrida de revezamento. Aquele que, por alguma razão, não consegue passar o que herdou será sempre colocado de lado. Desta forma, a raça está em constante processo de aperfeiçoamento. A resistência a doenças é, sobretudo, a característica preservada nas variantes que sobrevivem.
— Quer dizer que tudo sempre se modifica para melhor?
— A constante seleção cuida para que os que melhor se adaptaram a certo meio ambiente, ou a certo nicho ecológico, continuem sobrevivendo neste meio ambiente. Mas o que pode ser uma característica positiva em determinado meio talvez não tenha qualquer valia em outro. Para alguns tentilhões das ilhas Galápagos, sua capacidade de voar era muito importante. Só que não é muito importante saber voar quando se tem de arrancar o alimento do solo e não há predadores. E justamente porque na natureza existem tantos nichos diferentes é que tantas espécies de animais se desenvolveram ao longo dos tempos.
— Mas só há uma espécie humana.
— Sim, pois o homem possui a fantástica capacidade de se adaptar às mais diversas condições de vida. Darwin ficou admirado quando viu como os índios conseguiam sobreviver ao clima frio da Terra do Fogo. Se as pessoas que vivem no Equador têm a pele mais escura do que os habitantes dos países nórdicos, isto se deve ao fato de que a pele escura funciona como um protetor solar. As pessoas muito brancas que se expõem demais ao Sol têm probabilidades muito maiores de desenvolver câncer de pele.
— A pele branca também tem alguma vantagem para os que vivem nos países nórdicos?
— É claro que sim. Se não fosse assim, todo mundo teria pele escura. O tipo de pele branca tem mais facilidade para produzir vitaminas em contato com a luz do Sol; e isto é importante nos lugares em que o Sol não aparece com tanta freqüência. Hoje em dia isto não é mais tão importante, pois podemos suprir nossas necessidades de vitaminas por meio da ingestão de certos alimentos. Mas na natureza não existe nada por acaso. Tudo se deve a pequenas modificações, cujos efeitos se fazem sentir por várias gerações.
— De fato é uma coisa fantástica.
— Não é mesmo? Bem, acho que podemos resumir a teoria da evolução de Darwin…
— Vamos lá!
— …com as seguintes palavras: as constantes variações entre indivíduos de uma mesma espécie e as elevadas taxas de nascimento constituem a matéria-prima para a evolução da vida na Terra. A seleção natural na luta pela sobrevivência é o mecanismo, a força propulsora que está por trás desta evolução. A seleção natural é responsável pela sobrevivência dos mais fortes, ou dos que melhor se adaptam ao seu meio.
— Para mim isto é tão lógico quanto um problema de matemática. Como foi recebido o livro sobre a origem das espécies?
— O livro provocou um estardalhaço. A Igreja protestou veementemente e a ciência na Inglaterra se dividiu. Na verdade, isto já era de se esperar, pois Darwin sempre tinha contestado o fato de se atribuir a Deus o ato da criação. Alguns poucos fanáticos, porém, chegaram a afirmar que seria um feito ainda maior criar algo que já trouxesse dentro de si a possibilidade latente de evoluir, em vez de criar para todo o sempre alguma coisa preestabelecida em todos os seus detalhes.
De repente Sofia deu um pulo da poltrona.
— Olhe, ali! — gritou.
E apontou para fora da janela. Lá embaixo, um homem e uma mulher passeavam de mãos dadas às margens do lago. Eles estavam completamente nus.
— São Adão e Eva — disse Alberto. — Eles não têm outra saída senão aceitar o destino que os coloca junto com Chapeuzinho Vermelho e Alice no País das Maravilhas. Por isso é que eles apareceram por aqui.
Sofia foi até à janela e acompanhou com os olhos o casal, até que os dois desapareceram no meio das árvores.
— Isto porque Darwin também acreditava que os homens descendiam dos animais, não era?
— Em 1871, ele publicou um livro intitulado The descent of man, ou “A ascendência do homem”. Nele, Darwin aponta as enormes semelhanças entre os homens e os animais e explica que os homens e os macacos antropóides haviam tido os mesmos ancestrais. Nesse meio tempo haviam sido encontrados os primeiros fósseis de cérebros de tipos humanos extintos, primeiro numa pedreira no rochedo de Gibraltar e alguns anos mais tarde em Neandertal, na Renânia. Curiosamente, houve bem menos protestos em 1871 do que em 1859, quando da publicação de Sobre a origem das espécies. Mas o primeiro livro já tinha indicado que o homem descendia dos macacos. E, como já disse, quando Darwin faleceu em 1882, ele foi solenemente sepultado como um pioneiro da ciência.
— Quer dizer que no fim da vida ele conseguiu fama e reconhecimento?
— Sim, bem no fim. Primeiro, porém, ele foi considerado o homem mais perigoso de toda a Inglaterra.
— Deus meu!
— Diz-se que uma senhora da aristocracia teria dito o seguinte: “Vamos esperar que nada disso seja verdade. Mas se for, vamos esperar que ela não se espalhe por toda a parte”. Um cientista famoso disse algo parecido: “Uma descoberta humilhante, quanto menos se falar dela, melhor”.
— Dizendo isto eles estavam provando que o homem é mesmo parente das toupeiras!
— Você tem toda razão. Mas, como já disse, é fácil ser mais inteligente depois. De uma hora para a outra, muitos se sentiram obrigados a rever suas concepções sobre a gênese do mundo e do homem descrita na Bíblia. O jovem autor John Ruskin expressou-se assim: “Ah, se estes geólogos me deixassem em paz! Ao final de cada verso da Bíblia ouço o bater de seus martelos!”.
— E o bater dos martelos eram as dúvidas quanto às palavras de Deus?
— Foi isto que ele quis dizer. Pois não só a compreensão literal da gênese descrita na Bíblia tinha ido por terra. A teoria de Darwin também dizia que variações fundamentalmente casuais teriam produzido o homem. E mais ainda: Darwin transformara o homem no produto de uma fria “luta pela sobrevivência”.
— Darwin disse alguma coisa sobre como surgem estas variações casuais?
— Você tocou agora no ponto mais fraco de sua teoria. Darwin tinha apenas noções muito vagas sobre a hereditariedade. Para ele, alguma coisa acontece no cruzamento, pois um casal nunca gera dois filhos iguais. Só isto já representa certa variação. Por outro lado, é difícil produzir algo realmente novo. Além disso, existem plantas que se reproduzem por gemação e animais que se reproduzem por simples divisão celular. A questão de saber como surgem as variações só foi devidamente incorporada à teoria de Darwin pelo chamado neodarwinismo.
— Conte!
— Basicamente, toda a vida e toda a reprodução giram em torno da divisão celular. Quando uma célula se divide, o resultado são duas células iguais com o mesmo material genético. Por divisão celular entende-se, portanto, o fato de uma célula copiar-se a si mesma.
— E então?
— Acontece que às vezes ocorrem alguns pequenos erros neste processo. E o resultado é que a célula copiada não é exatamente igual à célula-mãe. A biologia moderna chama isto de mutação. Tais mutações podem ser totalmente irrelevantes, mas também podem levar a visíveis modificações nas características do indivíduo. Elas podem ser diretamente nocivas e, neste caso, os indivíduos “mutantes” serão continuamente eliminados da enorme prole de descendentes. Muitas doenças também são causadas basicamente por uma mutação. Mas pode acontecer de uma mutação transmitir ao indivíduo exatamente aquela característica positiva de que ele precisa para se sair melhor na luta pela sobrevivência.
— Um pescoço mais comprido, por exemplo?
— A explicação de Lamarck para o pescoço comprido da girafa era a de que as girafas sempre tiveram de esticá-lo para alcançar as folhas do alto das árvores. Para o darwinismo, porém, as características adquiridas não são transmitidas aos descendentes. Darwin considerava o pescoço comprido das girafas uma variação natural dos pescoços dos ancestrais desses animais. O neodarwinismo complementa esta idéia com a referência a uma nítida causa para o aparecimento de tais variações.
— Ou seja, as mutações.
— Sim. Algumas variações absolutamente casuais no material hereditário teriam determinado em alguns ancestrais das girafas um pescoço mais comprido do que a média. Nos períodos de escassez de alimentos, isto podia ser uma característica fundamental: quem conseguisse alcançar as folhas do alto das árvores saía-se melhor. Podemos até imaginar que algumas dessas girafas “primitivas” tenham desenvolvido a capacidade de cavoucar o solo para conseguir alimento. E assim, no decorrer de um longo espaço de tempo, uma espécie já extinta acabou se dividindo em duas espécies diferentes.
— Entendo.
— Vamos citar alguns exemplos mais recentes de como funciona a seleção natural. O princípio não é complicado.
— Vamos lá!
— Existe na Inglaterra determinada espécie de mariposa que vive nos troncos acinzentados das bétulas. Se voltarmos ao século XVIII, veremos que naquela época a maioria dos exemplares dessa espécie de mariposa era de cor acinzentada. Por que será, Sofia?
— Para que não fossem facilmente descobertos por pássaros famintos.
— De vez em quando, porém, nasciam alguns exemplares de cor escura, graças a mutações puramente casuais. E o que você acha que acontecia com estes exemplares mais escuros?
— Eles podiam ser identificados com maior facilidade e se transformavam em presas fáceis para os pássaros famintos.
— Pois neste meio ambiente, ou seja, nos troncos de cor clara das bétulas, a cor escura era uma característica que colocava o indivíduo em desvantagem em relação aos outros. Por esta razão, eram sempre as mariposas claras que se multiplicavam. Acontece, porém, que o meio se modificou. Como conseqüência da industrialização, em muitas regiões os troncos das bétulas, antes claros, escureceram. E o que você acha que aconteceu com as mariposas?
— As escuras é que passaram a levar a melhor.
— Isso mesmo. E não demorou muito até que começaram a se multiplicar. Entre 1848 e 1948 o número de exemplares escuros dessa espécie de mariposa cresceu cerca de 99% em algumas regiões. O meio ambiente havia se alterado e a cor clara ficou em desvantagem em relação à escura na luta pela sobrevivência. Antes tinha sido o contrário. Os indivíduos claros eram agora os “perdedores” e eram imediatamente eliminados pelos pássaros, pois se destacavam dos outros nos troncos escuros. Só que de novo ocorreu uma importante alteração. Nos últimos anos, à medida que a indústria passou a usar menos carvão e se aperfeiçoaram os sistemas de filtragem das chaminés, o meio ambiente conseguiu se recuperar sensivelmente.
— E os troncos das bétulas voltaram a ser acinzentados?
— Sim, e por isso as mariposas também voltaram a ter sua cor clara. Chamamos isto de adaptação. E estamos falando, neste caso, de uma lei natural.
— Entendo.
— Mas ainda há outros exemplos para a intervenção do homem no meio ambiente.
— Em qual você está pensando?
— Tentou-se, por exemplo, combater ervas daninhas com diferentes tipos de pesticidas. No começo, isto pode ter levado a resultados positivos. Mas quando se tenta eliminar insetos e ervas daninhas pulverizando-se uma plantação ou um pomar com agrotóxicos, o que se provoca na verdade é uma verdadeira ecocatástrofe para os insetos e ervas daninhas que se quer combater. E como resultado das constantes mutações surge um grupo de indivíduos resistentes ao agrotóxico aplicado. Estes indivíduos “vencedores” têm maiores chances de sobrevivência e, conseqüentemente, será cada vez mais difícil combatê-los. Podemos concluir, então, que justamente porque o homem tentou eliminá-los tão drasticamente é que eles sobreviveram. Afinal, são as espécies resistentes que sobrevivem.
— Isso é de meter medo.
— De qualquer forma, é um raciocínio muito importante. Também em nosso corpo tentamos combater parasitas nocivos. Estou pensando agora nas bactérias.
— A gente toma penicilina ou outros antibióticos.
— E um tratamento à base de penicilina também representa uma ecocatástrofe para esses pequenos diabos. Só que quanto mais penicilina tomamos, mais resistentes se tornam alguns tipos de bactérias. Dessa forma, já conseguimos criar um grupo de bactérias cujo combate é muito mais difícil do que há alguns anos. Precisamos tomar antibióticos cada vez mais poderosos, mas no fim…
— No fim as bactérias vão acabar saindo pela nossa boca e então talvez tenhamos de eliminá-las a tiros…
— Também não precisa exagerar. De qualquer forma, a medicina moderna criou um sério dilema. E tem mais: não foram só as bactérias que ficaram mais fortes. Antigamente, muitas crianças não chegavam à idade adulta porque sucumbiam às mais diversas doenças infantis. Não raro eram poucas as que conseguiam sobreviver. Esta seleção natural foi de certa forma eliminada pela medicina moderna. Mas o que ajuda um indivíduo a “vingar” pode, em longo prazo, enfraquecer a força de resistência de toda a humanidade. Quer dizer, em longo prazo, o potencial hereditário da humanidade de resistir a doenças graves pode se enfraquecer.
— Que perspectiva mais sombria!
— Mas é dever de um filósofo chamar a atenção para ela. Outra questão é saber que conseqüências podemos tirar de tudo isto. Vamos tentar resumir a coisa.
— Por favor…
— Podemos dizer que a vida é uma grande loteria da qual só conseguimos ver os números ganhadores.
— O que você quer dizer com isso?
— Aqueles que tombaram na luta pela sobrevivência já desapareceram. Por trás de cada espécie de planta e de animal existem milhões de anos, ao longo dos quais novas safras de vencedores foram surgindo. E os perdedores… bem, estes só aparecem por aqui uma vez. Portanto, não há hoje uma só espécie de planta ou de animal que não possa ser chamada de vencedora na grande loteria da vida.
— Isto porque só os melhores sobrevivem.
— Sim, é mais ou menos isso. E agora me dê a gravura que este… bem, que este guarda de zoológico lhe deu.
Sofia entregou-a a Alberto. De um lado, a imagem da arca de Noé. Do outro, uma árvore genealógica das diferentes espécies de animais. Era este o lado que Alberto queria mostrar a Sofia.
— Este esquema mostra a distribuição das diferentes espécies de plantas e animais. Você pode ver que as diferentes espécies pertencem a diferentes grupos, classes etc.
— Sim.
— Junto com os macacos, o homem pertence aos chamados primatas. Os primatas são animais mamíferos e todos os mamíferos pertencem aos vertebrados, que, por sua vez, pertencem aos animais pluricelulares.
— Isto me faz pensar em Aristóteles.
— Certo. Mas o esquema não nos revela apenas a distribuição das diferentes espécies, tal como ela se apresenta hoje. Dá para ver, por exemplo, que os pássaros em algum momento se separaram dos répteis, que os répteis em algum momento se separaram dos anfíbios e que os anfíbios em algum momento se separaram dos peixes.
— Sim, isto fica claro.
— Cada uma dessas linhas divisórias surgiu em decorrência de mutações que deram origem a novas espécies. Foi assim que, ao longo de milhões de anos, surgiram os diferentes grupos e classes de animais. Só que este esquema está extremamente facilitado. Na verdade, vivem na Terra hoje mais de um milhão de espécies animais e este milhão é apenas uma fração das espécies que existiram na Terra até hoje. Você pode ver, por exemplo, que uma classe como a dos trilobites está totalmente extinta.
— E embaixo de tudo estão os animais monocelulares.
— É possível que alguns deles não tenham se modificado em dois bilhões de anos. Dá para ver também que uma linha sai desses organismos monocelulares e vai para o reino vegetal. Pois é provável que até as plantas descendam da mesma célula original, como todos os outros animais.
— Estou vendo. E agora tenho uma pergunta.
— Sim?
— De onde veio esta primeira “célula original”? Será que Darwin tem uma resposta para isto?
— Já disse que Darwin era um homem muito cauteloso. Nesse ponto, porém, ele se permite especular um pouco. E escreve:
[…] se (e como é imenso este “se”!) pudermos imaginar um pequeno tanque aquecido, dentro do qual existam todo o tipo de sais de amônia e de fósforo, luz, calor, eletricidade etc. e se imaginarmos que lá dentro uma reação química dá origem a uma proteína que, por sua vez, é capaz de sofrer alterações mais complexas […]
— Sim, e daí?
— Darwin estava “filosofando” aqui sobre a possibilidade de a primeira célula viva ter surgido a partir de matéria inorgânica. E mais uma vez ele acerta na mosca. É que a ciência de hoje parte da premissa de que a primeira forma de vida surgiu mesmo num “tanque aquecido”, exatamente como Darwin imaginou um dia.
— Prossiga!
— Um esquema será suficiente. E não se esqueça de que estamos deixando Darwin para trás e saltando para as mais recentes pesquisas sobre a origem da vida no mundo.
— É isto que me deixa nervosa: será que ninguém sabe como a vida surgiu?
— Provavelmente não. A cada dia, porém, fragmentos vêm se juntar para formar uma imagem de como a vida poderia ter surgido.
— Continue!
— Primeiro, é preciso dizer que toda a vida na Terra, tanto plantas quanto animais, é constituída exatamente pelas mesmas substâncias. A definição mais simples de vida é aquela segundo a qual tudo o que vive possui um metabolismo e pode se reproduzir de forma autônoma. Nesse sentido, todas as formas de vida são governadas por uma substância que chamamos de DNA, ou ácido desoxirribonucléico. É dele que se constituem os cromossomos, ou o material genético encontrado em todas as células vivas. O DNA é uma molécula, ou macromolécula, como também é chamado, extremamente complexa. E a pergunta aqui seria a seguinte: como surgiu a primeira molécula de DNA?
— Sim?
— A Terra surgiu há alguns bilhões de anos, quando se formou o sistema solar. No início ela era uma massa de matéria incandescente, que aos poucos foi se esfriando até formar a crosta terrestre. Soma-se a isto o fato de a ciência moderna calcular que a vida surgiu provavelmente entre três e quatro bilhões de anos atrás.
— Isto parece absolutamente improvável.
— Espere para dizer isto depois de ouvir o resto da história. Em primeiro lugar é preciso atentar para o fato de a Terra ser completamente diferente naquela época do que é hoje. Ainda não havia vida e ainda não havia oxigênio na atmosfera. O oxigênio livre só surgiu a partir da fotossíntese das plantas. E o fato de naquela época não haver oxigênio é um dado muito importante, pois não se pode conceber que os elementos constitutivos da vida, que por sua vez podem formar o DNA, tenham surgido numa atmosfera oxigenada.
— Por que não?
— Porque o oxigênio é extremamente reativo. Os elementos constitutivos da molécula de DNA teriam se oxidado muito antes de uma molécula tão complexa quanto a do DNA ter tempo de se formar.
— Entendo.
— Pela mesma razão, podemos afirmar com certeza que hoje não é possível surgir nenhuma nova forma de vida, nem mesmo uma bactéria ou um vírus. Todas as formas de vida na Terra devem ter exatamente a mesma idade. Um elefante tem uma árvore genealógica tão longa quanto a da bactéria mais simples. Talvez pudéssemos dizer que um elefante, ou uma pessoa, não passa, na verdade, de uma colônia coerente de animais monocelulares. Pois em cada uma das células de nosso corpo temos exatamente o mesmo material genético. A receita completa de quem somos está dentro de cada uma das células de nosso corpo.
— Que pensamento mais curioso…
— Um dos grandes mistérios da vida é o fato de as células de um animal pluricelular possuírem a capacidade de se especializar para uma determinada função. Isto porque nem todas as diferentes características herdadas são ativadas em todas as células. Algumas dessas características, ou genes, são “ligadas” e outras “desligadas”. Uma célula do fígado produz proteínas diferentes das de uma célula nervosa ou de uma célula da pele. Mas tanto na célula do fígado, quanto na dos nervos ou da pele, encontramos a mesma molécula de DNA, dentro da qual estão contidas todas as informações referentes ao organismo em questão.
— Continue!
— Quando ainda não havia oxigênio na atmosfera, também não havia uma camada de ozônio protetora ao redor da Terra. Isto significa que nada detinha a radiação vinda do cosmo. Pois é possível que justamente esta radiação tenha sido muito importante para a formação da primeira molécula complexa. De fato, tal radiação cósmica foi a única energia que fez as diferentes substâncias químicas na Terra se combinarem para formar macromoléculas.
— Entendi.
— Para ser mais exato: para a formação das moléculas complexas de que se compõem todas as formas de vida, era preciso que duas condições fossem satisfeitas: não podia haver oxigênio na atmosfera e a radiação cósmica tinha de poder chegar até a Terra.
— Certo.
— Dentro do “pequeno lago aquecido”, ou “sopa primordial”, como muitos cientistas gostam de dizer hoje em dia, formou-se em algum momento uma macromolécula extremamente complexa, que tinha a estranha capacidade de reproduzir-se a si mesma. E foi assim que começou a longa evolução, Sofia. Simplificando um pouco as coisas, podemos dizer que estamos falando do primeiro material genético, da primeira molécula de DNA, ou da primeira célula viva. Ela foi se subdividindo, se subdividindo, mas desde o começo ocorrem mutações. Muito tempo depois, esses organismos monocelulares se combinam para formar organismos pluricelulares. É assim que também começa a fotossíntese das plantas e, na seqüência, temos a formação de uma atmosfera que contém oxigênio. Esta, por sua vez, foi duplamente importante. De um lado, o oxigênio da atmosfera foi responsável pelo surgimento dos animais que precisam respirar o ar para viver. De outro, ela passou a proteger a vida da radiação cósmica nociva. Pois esta mesma radiação, que um dia foi uma “centelha” importante para o surgimento da primeira célula, também é nociva para todas as formas de vida.
— Mas a atmosfera não se formou da noite para o dia, não é? E como é que as primeiras formas de vida fizeram quando ainda não existia o ar?
— A vida surgiu no mar primordial, que é o que chamamos de “sopa primordial”. Ali dentro ela estava a salvo da perigosa radiação cósmica. Só muito mais tarde, depois que a vida no mar tinha formado uma atmosfera, é que os primeiros anfíbios se arrastaram para a terra. E o resto nós já sabemos. Estamos aqui nesta cabana da floresta olhando retrospectivamente para um processo que já dura três ou quatro bilhões de anos. E é precisamente em nós que este processo se conscientizou de si mesmo.
— Você está dizendo que tudo não passou de mero acaso?
— Não, eu não disse isto. O esquema que você viu aí no cartaz também mostra que a evolução segue determinada direção. Ao longo dos milhões de anos foram surgindo animais com sistemas nervosos cada vez mais complexos e com cérebros cada vez maiores. Acho que isto não foi um mero acaso. O que você acha?
— O olho humano não pode ter sido resultado de um mero acaso. Você não acha que tem um sentido o fato de podermos enxergar o mundo à nossa volta?
— Esta história do olho também era uma coisa que deixava Darwin muito intrigado. Ele simplesmente não conseguia aceitar que um órgão tão refinado quanto o olho pudesse ser um mero produto da seleção natural.
Sofia ficou olhando para Alberto. Naquele momento passou pela sua cabeça o quanto era estranho ela estar vivendo justamente aquele instante; o quanto era estranho viver uma única vez e depois nunca mais voltar à vida. E então ela exclamou:
De que serve o eterno criar,
Se a criação em nada acabar?
Alberto olhou para ela com seriedade e reprovação.
— Não fale assim, filha. Essas palavras são do diabo!
— Do diabo?
— Ou de Mefistófeles, no Fausto, de Goethe. “De que serve o eterno criar, se a criação em nada acabar?”
— E qual o sentido dessas palavras?
— Quando Fausto está à morte, e revê toda a sua vida, ele diz triunfante àquele momento solene:
Fica mais, tu que és tão belo!
Os vestígios dos meus dias na Terra
Não vão se acabar em éons.
Ao pressentir tamanha felicidade,
Experimento agora o momento supremo.
— Que bonito…
— Mas então chega a vez do diabo. Nem bem Fausto está morto, o diabo diz:
Acabou! Palavra tola! Acabou por quê?
Acabou e depois nada, a indiferença plena!
De que serve o eterno criar,
Se a criação em nada acabar?
”Acabou!” O que ler desse verbo?
É como se não tivesse existido
E ainda assim gira em círculos, tivesse ele sido.
Pois o eterno vácuo eu teria preferido!
— Que coisa mais pessimista. Gostei mais da primeira citação. Embora sua vida estivesse acabando, Fausto encontrou um sentido para ela nas marcas de seus passos que ficavam para trás.
— Pois também não é uma conseqüência da teoria de Darwin o fato de fazermos parte de algo maior, de um todo para o qual tudo é importante, até a menor forma de vida? Somos um planeta vivo, Sofia! Somos um grande barco navegando ao redor de um sol incandescente no universo. Mas cada um de nós é um barco em si mesmo, um barco carregado de genes navegando pela vida. Se conseguirmos levar esta carga ao porto mais próximo, nossa vida não terá sido em vão. Bjørnsjerne Bjørnson expressou o mesmo pensamento em seu poema Psalm II:
Bendita a primavera da vida, breve,
Cujo sopro tudo atravessa!
A forma desaparece
Enquanto o ser para a vida desperta.
Gerações se sucedem
No esforço de evoluir;
Espécie produz espécie,
Em tempos que não têm fim;
Mundos inteiros se erguem e declinam!
Mergulha nos encantos da vida, ó flor,
Na ourela da primavera;
Louvando a bondade do Eterno,
Aproveita tua curta existência.
Acrescenta a ela, criativa,
Também o teu óbolo;
Breve e hesitante,
Sopra, o quanto agüentares,
A tua parcela de vida ao dia eterno!
— Lindo!
— E agora chega. Vou dizer simplesmente “fim do capítulo”!
— Pare com esta ironia!
— Fim do capítulo!, eu disse. Faça o que eu digo!
CAPÍTULO 31 (EXCERTO)
FREUD
(Páginas 458-473.)
(…)
Alberto e Sofia ficaram parados à porta da cabana. Por fim, Alberto disse:
— É melhor entrarmos. Hoje vou contar a você sobre Freud e sua teoria do inconsciente.
Sentaram-se à janela. Sofia olhou para o relógio e disse:
— Já são duas e meia e eu ainda preciso providenciar algumas coisas para a festa.
— Eu também. Vamos falar rapidamente sobre Sigmund Freud.
— Ele foi um filósofo?
— Podemos chamá-lo de um filósofo da cultura. Freud nasceu em 1856 e estudou medicina na Universidade de Viena. Passou a maior parte de sua vida naquela cidade, justamente durante um período em que a vida cultural vienense experimentou uma fase de apogeu. Desde cedo, Freud se especializou num ramo da medicina que chamamos de neurologia. De fins do século XIX até quase meados do século XX, ele trabalhou na elaboração de sua psicologia profunda ou psicanálise.
— Explique melhor.
— Por psicanálise entende-se tanto a descrição da mente, da psique humana em geral, quanto um método de tratamento para distúrbios nervosos e psíquicos. Não pretendo fazer uma explanação detalhada sobre Freud e sua obra, mas é preciso conhecer um pouco de sua teoria do inconsciente, se quisermos entender o que é o ser humano.
— Você já conseguiu despertar meu interesse. Vamos lá!
— Freud achava que sempre havia uma tensão entre o homem e o seu meio. Para ser mais exato, uma tensão, ou um conflito, entre o próprio homem e aquilo que seu meio exigia dele. Não seria exagerado dizer que Freud descobriu o universo dos impulsos que regem a vida do homem. E isto faz dele um legítimo representante das correntes naturalistas , tão importantes em fins do século XIX.
— O que se entende por “impulso” do homem?
— Nem sempre é a razão que governa nossas ações. Conseqüentemente, o homem não é apenas o ser racional tão defendido pelos racionalistas do século XVIII. Com freqüência, impulsos irracionais determinam nossos pensamentos, nossos sonhos e nossas ações. Tais impulsos irracionais são capazes de trazer à luz instintos e necessidades que estão profundamente enraizados dentro de nós. Tão básico quanto a necessidade que um bebê tem de mamar seria, por exemplo, o impulso sexual do homem.
— Entendo.
— Talvez tudo isto não tivesse nada de novo em si. Mas Freud mostrou que essas necessidades básicas podiam vir à tona disfarçadas e tão modificadas que não seríamos capazes de reconhecer sua origem. Assim disfarçadas, elas governariam nossas ações, sem que tivéssemos consciência disso. Além disso, Freud mostrou que as crianças também têm uma espécie de sexualidade. A afirmação da existência de uma sexualidade infantil causou repulsa entre os refinados cidadãos de Viena e fez de Freud um homem extremamente impopular.
— Não me surpreende.
— Estamos falando de uma época na qual tudo o que tinha a ver com a sexualidade era tabu. Freud chegara à conclusão da existência de uma sexualidade infantil por meio de sua prática como psicoterapeuta. Ele tinha, portanto, uma sólida base empírica para fundamentar suas afirmações. Freud também constatou que muitas formas de distúrbios psíquicos eram devidas a conflitos ocorridos na infância. Aos poucos, então, Freud foi desenvolvendo um método de tratamento que podemos chamar de “arqueologia da alma”.
— O que você quer dizer com isso?
— O psicanalista pode “cavoucar” a mente do paciente, com a ajuda dele, é claro, a fim de trazer à luz as experiências e vivências que, em algum momento da vida passada, provocaram seu distúrbio psíquico. Para Freud, portanto, guardamos bem no fundo de nós todas as lembranças do passado.
— Agora estou entendendo.
— E pode ser que neste processo o terapeuta encontre uma experiência ruim que o paciente sempre tentou esquecer, mas que está bem viva e presente dentro dele e lhe rouba as forças. No momento em que tal “experiência traumática” é trazida ao consciente e o paciente tem a chance de encará-la de frente, por assim dizer, ele pode “se entender” com ela e se curar.
— Isto parece lógico.
— Mas estou avançando rápido demais. Vamos ver primeiro como Freud descreve a psique humana. Você já viu um recém-nascido?
— Tenho um primo de quatro anos.
— Quando vêm ao mundo, os bebês satisfazem suas necessidades físicas e psíquicas de forma bastante direta e desinibida. Se estão com fome, choram. E também choram quando estão com a fralda molhada ou quando querem deixar bem claro que querem um pouco de calor humano e contato físico. Freud chama de id este “princípio do prazer” que existe em nós. Quando somos recém-nascidos, quase todo o nosso ser é apenas um id.
— Prossiga.
— O id continua conosco na idade adulta e nos acompanha a vida toda. Só que aos poucos vamos aprendendo a controlar nossos desejos a fim de nos adaptarmos ao nosso meio. Em outras palavras, aprendemos a afinar nosso princípio de prazer com o princípio da realidade. Freud diz que construímos um ego e que este ego assume esta função reguladora. A partir de certa idade, embora tenhamos prazer em alguma coisa, não podemos simplesmente sentar e abrir o berreiro até que nossos desejos ou necessidades sejam satisfeitos.
— É claro que não.
— Mas pode acontecer de nós desejarmos intensamente alguma coisa que nosso meio não aceita. O que acontece é que muitas vezes reprimimos nossos desejos. Quer dizer, tentamos colocá-los de lado e esquecê-los.
— Entendo.
— Mas Freud aponta também uma terceira instância na psique humana: ainda crianças, somos confrontados com os padrões morais de nossos pais e de nosso meio. Quando fazemos alguma coisa de errado, nossos pais dizem “Não faça isto!”, ou então “Que vergonha!”. E mesmo depois de adultos podemos ouvir o eco de tais repreensões e julgamentos morais. As expectativas de nosso meio no plano da moral parecem ter se alojado dentro de nós e passado a constituir uma parte de nós mesmos. É isto que Freud chama de superego.
— Superego seria para ele sinônimo de consciência?
— Numa passagem, Freud chega a dizer textualmente que o superego se opõe ao ego como uma espécie de consciência. Na verdade, porém, trata-se do seguinte: o superego nos informa, por assim dizer, quando nossos desejos são “sujos” ou “impróprios”, e isto vale especialmente para os desejos eróticos ou sexuais. Como eu já disse, Freud constatou que tais desejos surgem bem cedo na infância.
— Me explique melhor, por favor.
— Hoje em dia sabemos e vemos que os bebês gostam de brincar com seus órgãos genitais. Podemos ver isto, por exemplo, quando vamos à praia ou à piscina. Na época de Freud, a criança de dois ou três anos que fizesse isto na frente dos outros ganhava um belo tapa na mão. Naquela época, era comum as crianças ouvirem frases tais como: “Que coisa mais feia!”, ou, “Não faça isso!”, ou ainda “Deixe as mãos para fora das cobertas!”.
— Revoltante…
— Dessa forma, as pessoas desenvolvem um sentimento de culpa. E como este sentimento de culpa é armazenado no superego, para muitas pessoas, e Freud acreditava que para a maioria delas, ele fica indissociavelmente atrelado a tudo o que diz respeito ao sexo. Ao mesmo tempo, Freud chamava a atenção para o fato de os desejos e necessidades sexuais serem uma parte natural e importante da natureza humana. E assim, minha cara Sofia, temos aqui todos os elementos de que necessitamos para um conflito entre prazer e culpa que pode nos acompanhar por toda a vida.
— Você não acha que esse conflito diminuiu um pouco desde a época de Freud?
— Certamente. Mas muitos dos pacientes de Freud viviam este conflito de forma tão intensa que chegaram a desenvolver o que Freud chamou de neuroses. Uma de suas pacientes, por exemplo, apaixonou-se por seu cunhado. Quando sua irmã morreu ainda jovem, vítima de uma enfermidade, ela pensou junto ao leito de morte da irmã: “Agora ele está livre e pode se casar comigo!”. Este pensamento naturalmente entrou em conflito direto com o seu superego. Era um pensamento tão hediondo que ela o reprimiu, como Freud diz. Quer dizer, ela o enterrou no inconsciente. Depois, aquela jovem senhora ficou doente e passou a apresentar sérios sintomas de histeria. E quando Freud assumiu o tratamento dela, ficou claro que ela tinha se esquecido completamente da cena junto ao leito de morte de sua irmã e do desejo terrível, egoísta, que sentira vir à tona dentro de si. Durante o tratamento, a paciente voltou a se lembrar da cena, reviveu aquele momento que era a causa de sua enfermidade e ficou curada.
— Agora eu estou começando a entender o que você queria dizer com “arqueologia da alma”.
— Então vamos arriscar uma descrição bem genérica da psique humana. Após um longo período de experiência com pacientes, Freud chegou à conclusão de que a consciência humana era apenas uma pequena parte da psique. A consciência seria mais ou menos como a ponta de um iceberg que se eleva para além da superfície da água. Sob a superfície, ou sob o limiar da consciência, está o subconsciente, ou o inconsciente.
— Quer dizer que o inconsciente é tudo de que nós nos esquecemos, mas que continua dentro de nós?
— Não podemos ter presente em nossa consciência, o tempo todo, todas as experiências que vivemos. Mas tudo o que pensamos ou vivemos e tudo de que nos lembramos quando pomos a cabeça para funcionar Freud chama de “pré-consciente”. A expressão “inconsciente” significa, para Freud, tudo o que reprimimos. Quer dizer, tudo de que nós queremos nos esquecer a qualquer preço porque consideramos desagradável, indecoroso ou repulsivo. Quando temos desejos e prazeres que para nossa consciência, ou para nosso superego, são insuportáveis, nós simplesmente os enfiamos no porão do inconsciente e assim nos livramos deles.
— Entendo.
— Este mecanismo funciona em todas as pessoas sadias. Para algumas pessoas, porém, o ato de banir tais pensamentos desagradáveis ou proibidos é algo tão estressante que elas ficam doentes. É que aquilo que foi reprimido desta forma continua tentando emergir para o nível da consciência, de sorte que cada vez mais energia é despendida para se manter tais impulsos longe da crítica do consciente. Em 1909, quando Freud proferiu algumas palestras nos Estados Unidos sobre a psicanálise, ele ilustrou com um exemplo muito simples o funcionamento desse mecanismo de repressão.
— Que exemplo foi este?
— Ele pediu aos ouvintes que imaginassem que no auditório havia um indivíduo que perturbava a ordem e desconcentrava o orador rindo às gargalhadas, conversando com seus vizinhos e arrastando e batendo os pés no chão. Chegaria, então, um momento em que o orador não poderia continuar a falar. Nesse momento, alguns homens fortes provavelmente se levantariam e, depois de uma breve discussão, colocariam o elemento perturbador porta afora, no corredor. O indivíduo seria “reprimido”, portanto, e o orador poderia continuar com sua palestra. Mas para evitar que o elemento perturbador tentasse forçar sua entrada de novo no auditório, os mesmos homens que o tinham colocado para fora levariam suas cadeiras até a porta e funcionariam como uma espécie de resistência para garantir a repressão. Freud concluiu dizendo que se os ouvintes imaginassem o auditório como o “consciente” e o corredor como o “inconsciente”, teriam uma boa imagem de como funciona o processo de repressão.
— Também acho que a imagem é boa.
— Uma coisa é certa: o elemento perturbador vai querer entrar novamente na sala de conferências, Sofia. Em todo caso, é isto o que querem nossos pensamentos e impulsos reprimidos. Vivemos sob a constante pressão de pensamentos reprimidos, que tentam se libertar do inconsciente. Por isso é que muitas vezes dizemos e fazemos coisas que na verdade “não tínhamos a intenção de fazer”. Dessa forma, o inconsciente também pode guiar nossos sentimentos e ações.
— Você poderia me dar um exemplo?
— Freud descreve vários desses mecanismos. Um deles é o chamado ato falho, ou seja, algo que dizemos ou fazemos espontaneamente e que um dia tínhamos reprimido. Ele fala, por exemplo, de um empregado que foi escolhido para fazer um brinde ao seu chefe, de quem ninguém gostava.
— Sim?
— O empregado se levantou, ergueu o copo e disse: “Convido todos a arrotarem em homenagem a nosso chefe!”.
— Legal!
— Não foi o que o chefe achou. Ao dizer isto, o empregado simplesmente tinha expressado o que realmente achava de seu chefe. Talvez nunca tivesse ousado dizê-lo abertamente a ele. Você quer mais um exemplo?
— Sim.
— Certo dia, o bispo foi visitar a família de um pastor, que era pai de umas meninas adoráveis e muito comportadas. Este bispo tinha um nariz enorme, fora do comum. O pastor teve o cuidado, então, de pedir às suas filhas que não mencionassem nada a respeito do nariz do bispo. É que as crianças geralmente começam a rir quando percebem essas coisas, pois ainda não têm o mecanismo de repressão muito bem desenvolvido.
— E o que aconteceu?
— O bispo veio até a paróquia e as meninas, absolutamente deliciadas com a situação, faziam todo o esforço possível para não dizer nada a respeito do nariz. E mais: elas não podiam sequer ficar olhando para o nariz. Tinham de esquecê-lo completamente. Só que elas ficavam pensando no nariz do bispo o tempo todo. E quando chegou a hora de a menorzinha oferecer ao honorável bispo açúcar para o café, ela disse: “O senhor aceita um pouco de açúcar no nariz?”.
— Putz!
— Às vezes nós também racionalizamos, quer dizer, tentamos mostrar a nós mesmos, e aos outros, que temos outros motivos para fazer o que fazemos em certas situações, e não revelamos os reais motivos que nos levaram a agir de certa maneira, simplesmente porque eles são constrangedores demais.
— Um exemplo, por favor.
— Posso hipnotizar você e induzi-la a abrir a janela. Para tanto, ordeno a você que se levante e abra a janela quando eu tamborilar com os dedos sobre a mesa, por exemplo. Quando eu faço isto, você se levanta e abre a janela. Depois pergunto a você por que você abriu a janela. Talvez você me responda que o fez porque estava muito quente aqui dentro. Mas este não é o verdadeiro motivo. Você não quer admitir para si mesma que obedeceu à minha ordem enquanto estava hipnotizada. E o que você faz? Você “racionaliza”, Sofia.
— Entendo.
— Coisas como esta acontecem quase todos os dias quando nos relacionamos com os outros.
— Eu já disse a você que tenho um priminho de quatro anos. Acho que ele não tem muitos amigos para brincar, pois ele sempre fica muito contente quando eu vou visitá-lo. Certa vez eu disse que precisava voltar logo para casa, pois minha mãe estava me esperando. E sabe o que ele me disse?
— Não.
— “Sua mãe é uma chata”, foi isto o que disse.
— Sim, este é um bom exemplo para o que entendemos por racionalizar. O menino realmente não quis dizer que sua mãe é uma chata. Ele quis dizer que achava chato que você tivesse de ir embora. Só que para ele não era muito fácil verbalizar isto. Outra coisa que pode acontecer é que nós projetamos.
— Traduza, por favor.
— Quando projetamos alguma coisa estamos transferindo a outros as características que tentamos reprimir em nós mesmos. Uma pessoa avarenta, por exemplo, gosta de ficar dizendo que os outros são avarentos. Alguém que não quer admitir que pensa muito em sexo geralmente é o primeiro a se irritar quando encontra outras pessoas fissuradas por sexo.
— Entendo.
— Freud dizia que nossa vida cotidiana está repleta de tais ações inconscientes. Muitas vezes nos esquecemos do nome de certa pessoa, ficamos mexendo numa pontinha de nossa roupa enquanto estamos falando ou então ficamos mudando de posição objetos aparentemente sem importância. Ou podemos tropeçar em nossas próprias palavras e acabar trocando letras e nomes, que à primeira vista podem parecer totalmente inocentes, mas que na verdade não são. Freud pelo menos não considera essas coisas tão inocentes e casuais como podemos achar. Ele acha que elas deveriam ser encaradas como sintomas. Para ele, esses atos falhos podem nos revelar segredos os mais íntimos.
— Daqui para frente, vou prestar bastante atenção em cada palavra que disser.
— Mesmo assim, você não poderá escapar de seus impulsos inconscientes. O segredo está em não se desgastar demais ao se empurrar as coisas desagradáveis para o subconsciente. É como querer tapar o buraco de uma toupeira. Você pode até conseguir, mas com certeza ela virá à superfície em algum outro ponto. O mais sadio é deixar só encostada a porta entre o consciente e o subconsciente.
— Se trancarmos a porta à chave podemos provocar distúrbios psíquicos em nós mesmos?
— Sim. Um neurótico é justamente alguém que despende energia demais na tentativa de banir de seu consciente tudo aquilo que o incomoda. Com freqüência trata-se de reprimir experiências bem específicas. São as chamadas “experiências traumáticas”, que eu já mencionei no início de nossa conversa, talvez um pouco cedo demais. Freud as chama de traumas. A palavra “trauma” é grega e significa “ferida”.
— Entendo.
— Em seus tratamentos, às vezes Freud tentava abrir cuidadosamente estas portas trancadas; outras vezes, procurava abrir outra porta. Com a colaboração do paciente, ele tentava trazer à tona novamente as experiências reprimidas. Isto porque o paciente não tem consciência de que as reprimiu. Não obstante, ele deseja que o médico, ou o analista, como se diz em psicanálise, o ajude a encontrar um caminho que o leve a seus traumas escondidos.
— E como o médico procede neste caso?
— Freud chamava este procedimento de técnica da livre associação. Isto significa que ele deixava o paciente deitado, bem relaxado, falando apenas sobre coisas que lhe viessem à cabeça, por mais irrelevantes, casuais, desagradáveis ou penosas que elas lhe fossem. Para o analista, as associações do paciente no divã trazem indícios de seus traumas e das resistências que impedem a conscientização. Pois são exatamente os traumas que ocupam os pacientes o tempo todo, só que não de forma consciente.
— Quer dizer que quanto mais a gente se esforça para esquecer uma coisa, mais a gente pensa inconscientemente nela?
— Exatamente. Por isso é importante prestar atenção aos sinais do inconsciente. Para Freud, o “caminho real” que leva para o inconsciente passa pelos sonhos. Por esta razão, uma de suas mais importantes obras é o livro A interpretação dos sonhos, publicado em 1900. Nele, Freud mostra que nossos sonhos não são meros acasos. Por meio dos sonhos, nossos pensamentos inconscientes tentam se comunicar com nosso consciente.
— Continue.
— Após longos anos de experiências acumuladas no trabalho com seus pacientes, e também depois de ter analisado os seus próprios sonhos, Freud afirmou que todos os sonhos são a realização de desejos. Ele dizia que podemos observar isto claramente nas crianças: elas sonham com sorvetes e cerejas, por exemplo. Em adultos, porém, acontece com freqüência de os desejos a serem satisfeitos no sonho aparecerem disfarçados. Isto acontece porque mesmo quando estamos dormindo uma censura severa continua a determinar o que podemos nos permitir ou não. Quando estamos dormindo, esta censura, ou mecanismo de repressão, é mais fraca do que quando acordados, mas ainda é forte o bastante para desfigurar no sonho os desejos que não queremos confessar nem a nós mesmos.
— E é por isso que os sonhos têm de ser interpretados?
— Freud mostra que precisamos distinguir entre o sonho, tal como ele nos vem à lembrança na manhã seguinte, e o seu verdadeiro significado. As próprias imagens oníricas, quer dizer, o filme ou o vídeo a que assistimos quando sonhamos, ele as chamou de conteúdo manifesto do sonho. Mas o sonho também tem um significado mais profundo, que permanece inacessível ao consciente. E este significado, Freud o chamou de pensamentos latentes do sonho. As imagens oníricas e seus requisitos são geralmente tiradas do passado mais próximo, com freqüência dos acontecimentos que vivemos no dia anterior. Os pensamentos ocultos, porém, vêm de um passado mais remoto; por exemplo, das primeiras fases de nossa infância.
— Quer dizer que precisamos analisar o sonho para entender do que ele trata realmente.
— Sim. E os enfermos precisam fazer isto junto com um terapeuta. Mas não é o médico que interpreta os sonhos. Ele só pode fazer isto com a ajuda do paciente. O médico entra nessa situação apenas como uma parteira socrática que ajuda na interpretação.
— Entendo.
— O ato de reformular, de converter os “pensamentos latentes do sonho” em “conteúdo manifesto do sonho” é chamado por Freud de trabalhar o sonho. Podemos falar de um “mascaramento” ou de uma “codificação” da verdadeira ação que se desenrola no sonho. Na interpretação do sonho, temos de passar por um processo inverso. Temos de desmascarar ou decodificar o verdadeiro “motivo” do sonho, a fim de podermos descobrir o verdadeiro “tema” do sonho.
— Você poderia me dar um exemplo?
— Os livros de Freud estão cheios desses exemplos. Mas nós mesmos podemos inventar um exemplo bem simples e bem freudiano. Quando um rapaz sonha que sua prima lhe deu dois balões de ar…
— Sim?
— Não espere que eu continue. Você mesma deve tentar interpretar esse sonho agora.
— Hum… Neste caso, o “conteúdo manifesto do sonho” é exatamente isto que você disse: a prima dele lhe dá dois balões de ar.
— Continue.
— E você também disse que os requisitos de nossos sonhos geralmente são tirados das experiências vividas no dia anterior. Portanto, ele deve ter ido a um parque de diversões no dia anterior, ou então viu no jornal a foto de dois balões de ar.
— Sim, pode ser. Mas também pode ser que ele tenha apenas ouvido a palavra “balão” ou visto alguma coisa que o tenha feito lembrar de um balão.
— Mas o que são os “pensamentos latentes do sonho”? Eles não são aquilo de que o sonho realmente trata?
— Quem está interpretando sonhos aqui é você.
— Será que ele simplesmente não estaria querendo dois balões?
— Não, isto é pouco provável. Num ponto, porém, você tem razão: ele quer satisfazer um desejo no sonho. Só que dificilmente um rapaz adulto desejaria assim tão ardentemente dois balões de ar. E, se quisesse, não seria necessário sonhar com isso.
— Então… acho que na verdade ele deseja a sua prima. E os dois balões são os seios dela.
— Sim, esta é uma explicação provável, sobretudo porque este desejo lhe causa certo embaraço, de modo que ele não gosta de admiti-lo quando está acordado.
— Quer dizer que nossos sonhos dão umas voltas e passam por coisas como balões etc.?
— Sim. Freud considerava o sonho a realização disfarçada de desejos disfarçados. Pode ser que o que disfarçamos tenha se modificado consideravelmente desde que Freud conversava com seus pacientes em seu consultório em Viena. Apesar disso, é possível que o mecanismo de disfarce continue intacto.
— Entendo.
— Nos anos 20, a psicanálise de Freud se tornou muito importante, sobretudo no tratamento das neuroses. Além disso, sua teoria do inconsciente foi muito importante para a arte e a literatura.
— Você está querendo dizer que os artistas passaram a se ocupar mais da vida mental inconsciente do homem?
— Exatamente, embora isto já estivesse presente na literatura da última década do século XIX, quando a psicanálise de Freud ainda não era conhecida. Só estou querendo dizer que não é por acaso que a psicanálise de Freud surgiu exatamente nesta época.
— Você quer dizer que ela já estava embutida no espírito da época?
— Freud não acreditava ter descoberto, por assim dizer, fenômenos como a repressão, os atos falhos ou a racionalização. Mas ele foi o primeiro a trazer para dentro da psiquiatria tais experiências humanas. Ele também soube ilustrar muito bem sua teoria com exemplos extraídos da literatura. Mas, como eu disse, a psicanálise de Freud passou a influenciar diretamente a arte e a literatura a partir dos anos 20.
— De que forma?
— Escritores e pintores passaram a tentar aplicar as forças inconscientes em seus trabalhos de criação. E isto vale sobretudo para os chamados surrealistas.
— O que significa isto?
— A expressão “surrealismo” é francesa e significa algo como “aquilo que está além do realismo”. Em 1924, André Breton publicou seu Manifesto surrealista. Nele, Breton declara que a arte deveria ser criada a partir do inconsciente, pois só assim a inspiração do artista estaria livre para produzir suas imagens oníricas e o artista poderia buscar um “super-realismo”, no qual as barreiras entre sonho e realidade fossem abolidas. De fato, pode ser muito importante para um artista eliminar a censura do consciente, a fim de que palavras e imagens possam fluir livremente.
— Entendo.
— De certa forma, Freud tinha dado a prova de que todas as pessoas são artistas. Afinal, um sonho é uma pequena obra de arte e a cada noite criamos novos sonhos. Para interpretar os sonhos de seus pacientes, Freud freqüentemente tinha de abrir caminho através de um denso emaranhado de símbolos, mais ou menos como fazemos quando interpretamos um quadro ou um texto literário.
— E nós sonhamos todas as noites?
— Pesquisas recentes demonstraram que vinte por cento do tempo que passamos dormindo é preenchido por sonhos. Isto significa que sonhamos de duas a três horas por noite. Quando somos perturbados durante essas fases, reagimos com nervosismo e irritação. Isto significa nada mais e nada menos que todas as pessoas têm uma necessidade inata de dar à sua situação existencial uma expressão artística. O sonho trata de nós mesmos. Somos nós quem dirigimos este “filme”, juntamos tudo o que compõe os seus cenários e requisitos e desempenhamos todos os papéis. As pessoas que dizem que não entendem nada de arte são pessoas que se conhecem mal.
— Entendo.
— Além disso, Freud deu uma prova impressionante de como é fantástica a mente humana. Seu trabalho com pacientes convenceu-o de que guardamos no fundo de nossa mente tudo o que vimos e vivemos. E todas essas impressões podem ser trazidas à tona novamente. Todas as vezes que nos dá “um branco” e, pouco depois, ficamos com o que queremos lembrar “na ponta da língua”, e quando, um pouco mais tarde ainda, a coisa “subitamente nos ocorre”, estamos falando de algo que estava no inconsciente e, de repente, encontrou uma porta entreaberta e conseguiu escapar para o consciente.
— Mas às vezes isto demora muito.
— Sim, todos os artistas sabem disso. Só que de repente todas as portas e gavetas do arquivo parecem se abrir. Tudo flui espontaneamente e então podemos escolher exatamente as palavras e as imagens de que precisamos. Isto acontece quando deixamos a porta do inconsciente entreaberta. Podemos chamar isto de inspiração, Sofia. E então temos a sensação de que aquilo que desenhamos ou escrevemos não veio de nós.
— Deve ser um sentimento maravilhoso.
— Mas com certeza você mesma já o experimentou. Podemos observar facilmente este estado inspirado em crianças que estão supercansadas. Neste estado, as crianças parecem mais acordadas do que nunca e começam a falar sem parar, tirando da memória palavras que elas ainda nem aprenderam. Só que é claro que elas já aprenderam. Acontece que essas palavras estavam “latentes” no seu consciente e só agora, quando o cansaço relaxa o policiamento e abole a censura, elas podem vir à tona. Para o artista, a situação é diferente. Mas também para ele pode ser importante que a razão e a reflexão não exerçam um controle tão rigoroso sobre aquilo que melhor pode se desenvolver espontânea, livre e inconscientemente. Posso contar uma fábula que ilustra muito bem o que estou dizendo?
— Claro!
— É uma fábula muito séria e muito triste.
— Pode começar.
— Era uma vez uma centopéia que sabia dançar excepcionalmente bem com suas cem perninhas. Quando ela dançava, os outros animais da floresta reuniam-se para vê-la e ficavam muito impressionados com sua arte. Só um bicho não gostava de assistir à dança da centopéia: uma tartaruga.
— Na certa porque tinha inveja.
— “Como será que eu posso conseguir fazer a centopéia parar de dançar?”, pensava ela. Ela não podia simplesmente dizer que a dança da centopéia não lhe agradava. E também não podia dizer que sabia dançar melhor que a centopéia, pois ninguém iria acreditar. Então ela começou a bolar um plano diabólico.
— Que plano era esse?
— A tartaruga pôs-se, então, a escrever uma carta endereçada à centopéia: “Oh, incomparável centopéia! Sou uma devota admiradora de sua dança singular e gostaria muito de saber como você faz para dançar. Você levanta primeiro a perna esquerda número 28 e depois a perna direita número 59, ou começa a dançar erguendo a perna direita número 26 e depois a perna esquerda número 49? Espero ansiosa por sua resposta. Cordiais saudações, a tartaruga”.
— Que coisa de doido!
— Quando a centopéia recebeu esta carta, refletiu pela primeira vez na sua vida sobre o que fazia de fato quando dançava. Que perna ela movia primeiro? E qual perna vinha depois? E você sabe, Sofia, o que aconteceu?
— Acho que a centopéia nunca mais dançou.
— Foi isso mesmo. E é exatamente isto que pode acontecer quando o pensamento sufoca a imaginação.
— É triste mesmo esta história.
— Para um artista, portanto, pode ser muito importante “se deixar levar”. Os surrealistas tentavam se aproveitar disso e buscavam um estado em que tudo parecia brotar espontaneamente. Eles sentavam-se à frente de uma folha de papel em branco e começavam a escrever, sem pensar no que estavam escrevendo. Era isto o que chamavam de escrita automática. Na verdade, a expressão vem do espiritismo, em que um “médium” acredita que o espírito de alguém que já morreu está dirigindo sua mão ao escrever… Mas acho melhor continuarmos falando amanhã sobre essas coisas.
— Tudo bem.
— O artista surrealista também é, de certa maneira, um médium. Ele é um médium de seu próprio subconsciente. Contudo, é possível que haja uma pontinha de inconsciente em todo processo criativo. Pois o que seria isto que chamamos de “criatividade”?
— Ser criativo não significa criar algo de novo e de único?
— Mais ou menos. E isto ocorre por meio de uma delicada interação entre imaginação e razão. Na maioria das vezes, a razão sufoca a imaginação; e isto é ruim, pois sem imaginação não é possível produzir nada de novo. Eu vejo a imaginação como um sistema darwinista.
— Desculpe, mas esta eu não entendi.
— O darwinismo explica que a natureza produz um mutante atrás do outro. Mas a natureza só precisa de alguns poucos desses mutantes. Só alguns poucos têm a chance de viver.
— E então?
— O mesmo acontece quando pensamos, quando estamos inspirados e temos muitas e novas idéias. Nesse caso, nossa cabeça produz um “pensamento mutante” atrás do outro. Quer dizer, isto se nós não nos impusermos uma censura muito severa. Acontece que só vamos usar realmente alguns desses pensamentos. E é aqui que entra a razão, pois ela também tem uma função importante. Quando temos sobre a mesa o resultado da pesca, não podemos esquecer de escolher os peixes.
— Esta é uma ótima comparação.
— Imagine se tudo o que nos “ocorre”, se cada lampejo de pensamento tivesse autorização para sair da nossa boca! Ou então para saltar do bloco de apontamentos ou sair das gavetas da escrivaninha! O mundo se afogaria bem depressa num mar de idéias e lembranças casuais. E não haveria uma “seleção”, Sofia.
— E a razão escolhe as melhores entre todas as idéias e lembranças?
— Sim, ou você não acha? A imaginação pode criar coisas novas, mas não é ela que realmente escolhe. Não é a imaginação que “compõe”. Uma composição, e toda obra de arte é uma composição, surge de uma admirável interação entre imaginação e razão, ou entre sentimentos e pensamentos. O processo artístico tem sempre um elemento de casualidade. Em certa fase pode ser importante não represar essas idéias e lembranças casuais. As ovelhas precisam ser soltas primeiro para só depois o pastor poder vigiá-las.
(…)
CAPÍTULO 32 (EXCERTO)
NOSSO PRÓPRIO TEMPO
(Páginas 482-501.)
(…)
Na manhã seguinte, Sofia foi acordada por sua mãe, que queria lhe desejar um bom dia antes de ir para o trabalho. Ela entregou a Sofia uma pequena lista de coisas que deveriam ser compradas na cidade para a festa.
Nem bem ela tinha saído de casa, o telefone tocou. Era Alberto. Ele sabia muito bem quando Sofia estava sozinha em casa.
— Como vai o plano secreto?
— Psiu! Nenhuma palavra! Não podemos dar a ele a menor chance de pensar a respeito disso.
— Acho que consegui direitinho desviar a atenção dele ontem.
— Ótimo.
— E quanto à filosofia?
— É justamente por causa disso que estou ligando. Já chegamos ao nosso século [XX] e daqui para a frente você vai ter de se virar sozinha. As bases para isto você já tem, mas ainda vamos nos encontrar mais uma vez para falarmos um pouco sobre o nosso próprio tempo.
— Preciso ir até a cidade…
— Tanto melhor. Eu acabei de dizer que vamos conversar sobre o nosso tempo.
— E daí?
— Seria bom, portanto, estarmos bem no meio da agitação, por assim dizer.
— E vamos nos encontrar na sua casa?
— Não, aqui não. A casa está toda revirada porque estou procurando microfones escondidos.
— Ah…
— Na praça do mercado tem um café que foi inaugurado há pouco tempo. É o Café Pierre. Você conhece?
— Conheço. A que horas vamos nos encontrar?
— Ao meio-dia.
— Então até meio-dia, no Café Pierre.
— Até lá.
Dois minutos depois do meio-dia, Sofia entrou no Café Pierre. Era um desses cafés que estão na moda, com mesinhas redondas, cadeiras pretas e garrafas viradas de cabeça para baixo sobre dispositivos para dosagem automática de bebidas.
Não era um local muito grande e a primeira coisa que Sofia percebeu foi que Alberto ainda não tinha chegado. Quase todas as mesas estavam ocupadas, mas Sofia olhou cada um daqueles rostos e viu que nenhum deles era de Alberto.
Ela não estava acostumada a ir sozinha a esses lugares. Não seria melhor simplesmente dar meia-volta e voltar um pouco mais tarde para procurar Alberto?
Foi até ao balcão de mármore e pediu uma xícara de chá com limão. Depois pegou a xícara de chá e foi até uma mesa que estava desocupada. De lá ficou olhando a porta de entrada do café. As pessoas entravam e saíam, e tudo que Sofia via era que Alberto não chegava.
Se pelo menos ela tivesse trazido um jornal!
Finalmente, começou a olhar para os que estavam à sua volta. Por vezes seu olhar foi retribuído e por um instante ela se sentiu uma pessoa adulta. É certo que só tinha quinze anos, mas podia tranqüilamente passar por dezessete – ou pelo menos por dezesseis e meio.
O que será que aquelas pessoas sentadas no café pensavam sobre suas vidas? Sofia teve a impressão de que eles estavam ali por estar e que tinham ido ao café apenas para quebrar a rotina. Todos falavam muito e gesticulavam bastante, mas não parecia que estivessem falando sobre alguma coisa importante.
Sofia pensou em Kierkegaard, para quem o burburinho de vozes era o sinal mais evidente das multidões. Será que todas aquelas pessoas viviam no estágio estético? Ou será que havia alguma coisa que fosse existencialmente importante para elas?
Numa das primeiras cartas, Alberto escrevera que os filósofos se parecem com as crianças. E de novo Sofia teve medo de se transformar em adulto. E se ela também passasse a viver confortavelmente lá no fundo da pelagem do coelho que tinha sido tirado da cartola preta do universo?
Enquanto pensava sobre tudo isto, Sofia olhava de vez em quando para a porta do café. E de repente Alberto entrou apressado. Mesmo em pleno verão ele usava uma boina preta. Fora isto, usava também um casaco cinza “espinha de peixe” até a altura do quadril. Ele a viu imediatamente e veio até à mesa. Sofia pensou que se encontrar com ele em público era uma coisa absolutamente nova.
— Já é meio-dia e quinze! Você está atrasado!
— Isto se chama o quarto de hora acadêmico. Posso convidá-la para almoçar?
Sentou-se e olhou-a nos olhos. Sofia sacudiu os ombros, indiferente.
— Para mim, tanto faz. Um sanduíche, talvez.
Alberto foi até ao balcão. Pouco depois voltou com uma xícara de café e duas baguetes enormes recheadas de queijo e presunto.
— Foi caro?
— Não, Sofia.
— Será que você não tem pelo menos uma desculpa por ter se atrasado tanto?
— Não, não tenho, pois foi de propósito que me atrasei. Já vou explicar por quê.
Deu umas mordidas com vontade na sua baguete e depois disse:
— Vamos falar hoje sobre o nosso século [XX].
— Aconteceu alguma coisa de filosoficamente interessante nele?
— E como! Tanto que há correntes seguindo em todas as direções. Primeiro vou contar alguma coisa sobre o existencialismo. O termo designa um conceito “guarda-chuva”, sob o qual se acomodam diversas correntes filosóficas que têm como ponto de partida a situação existencial do homem. Costumamos falar também da filosofia existencialista do século XX. Alguns filósofos existencialistas seguiram a tradição de Kierkegaard; outros, a de Hegel e Marx.
— Certo.
— Um filósofo muito importante para o século XX foi o alemão Friedrich Nietzsche, que viveu de 1844 a 1900. Nietzsche também reagiu à filosofia de Hegel e ao “historicismo” alemão que dela resultou. Ele atribuía a Hegel e a seus sucessores um interesse anêmico pela história e confrontava este interesse com a própria vida. É muito conhecida a sua reivindicação por uma “revalorização de todos os valores”, sobretudo da moral cristã, que ele chamava de “moral escrava”, para que o curso da vida dos fortes não fosse mais obstruído pelos fracos. Para Nietzsche, o cristianismo e a tradição filosófica tinham se afastado do mundo e se voltado para o “céu” ou para o “mundo das idéias”. Esses dois últimos teriam se transformado no “verdadeiro mundo” e, na verdade, não passavam de aparência. “Sede fiéis à Terra”, ele dizia, “e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças além deste mundo!”
— Bem…
— Um filósofo que foi influenciado tanto por Kierkegaard quanto por Nietzsche foi o existencialista alemão Martin Heidegger, que não vamos abordar aqui, porque queremos nos concentrar no existencialista francês Jean-Paul Sartre. Sartre viveu de 1905 a 1980 e foi o filósofo existencialista por excelência, pelo menos para o grande público. Foi nos anos 40, logo depois da guerra, que ele desenvolveu a sua filosofia. Mais tarde aliou-se ao movimento marxista na França, mas nunca chegou a se filiar a um partido.
— Por isso é que estamos nos encontrando num café francês?
— De qualquer forma, não é por mero acaso que estamos aqui. Aliás, o próprio Sartre era um assíduo freqüentador de cafés. E foi num café como este que ele conheceu Simone de Beauvoir, companheira de toda a sua vida. Ela também era uma filósofa existencialista.
— Puxa! Até que enfim uma filósofa!
— Exatamente.
— Sinto um alívio ao ver que a humanidade finalmente começa a se civilizar.
— Mas nossa época também é uma época de muitas e novas preocupações.
— Você falava do existencialismo…
— Sartre disse: “O existencialismo é humanismo”. Com isto ele queria dizer que o existencialismo tem como ponto de partida única e exclusivamente o homem. Talvez possamos acrescentar que o humanismo de Sartre vê a situação do homem de uma maneira diferente e mais sombria do que o humanismo que conhecemos do Renascimento.
— E por quê?
— Kierkegaard e outros filósofos existencialistas de nosso século [XX] eram cristãos. Sartre, ao contrário, representava aquilo que podemos chamar de existencialismo ateu. Podemos considerar sua filosofia uma análise impiedosa da situação humana quando “Deus está morto”. A famosa expressão “Deus está morto” é de Nietzsche.
— Continue.
— Como em Kierkegaard, o conceito-chave por excelência na filosofia de Sartre é a palavra existência. Aqui, existência não significa simplesmente “estar vivo”. As plantas e os animais também “existem” no sentido de que estão vivos, mas são poupados da indagação sobre o que isto significa. O ser humano é o único ser vivo consciente de sua existência. Sartre diz que as coisas físicas só são “em si”, ao passo que o homem também é “para si”. Ser uma pessoa é, portanto, diferente de ser uma coisa.
— Concordo plenamente.
— Sartre afirma ainda que a existência do homem precede todo e qualquer sentido desta mesma existência. Em outras palavras, o fato de que sou é anterior à questão de saber o que sou. “A existência precede a essência”, ele dizia.
— Isto parece um tanto complicado.
— Entendemos por “essência” aquilo que uma coisa realmente é, a “natureza” dessa coisa. Para Sartre, porém, o homem não possui tal natureza. O homem precisa primeiro criar-se a si mesmo. Ele precisa criar sua própria natureza, sua própria essência, já que ela não lhe é dada de antemão.
— Acho que entendo o que você quer dizer.
— Por toda a história da filosofia, os filósofos tentaram responder à pergunta sobre o que o homem é, ou o que é a natureza humana. Sartre, ao contrário, acha que o homem não possui esta “natureza” eterna a que se apegar. Por isso é que, para Sartre, não faz sentido perguntar pelo sentido da vida em geral. Em outras palavras, estamos condenados à improvisação. Somos como atores que são colocados num palco sem termos decorado um papel, sem um roteiro definido e sem um “ponto” para nos sussurrar ao ouvido o que devemos dizer ou fazer. Nós mesmos temos de decidir como queremos viver.
— De alguma forma isto também está certo. Se folhearmos a Bíblia, ou um livro de filosofia, teríamos dificuldade em encontrar uma fórmula sobre como devemos viver.
— Pronto, você já entendeu. Mas Sartre diz que quando o homem percebe que existe e que um dia terá de morrer, e sobretudo quando não vê qualquer sentido nisto tudo, ele passa a experimentar o medo. Você deve se lembrar ainda de que o medo também era muito importante na descrição que Kierkegaard fez do homem numa situação existencial.
— Sim.
— Sartre também diz que o homem se sente alienado num mundo sem sentido. Quando descreve a “alienação” do homem, Sartre retoma os pontos centrais do pensamento de Hegel e de Marx. O sentimento do homem de ser um estranho no mundo, diz Sartre, leva a uma sensação de desespero, tédio, náusea e absurdidade.
— É muito comum a gente ouvir que fulano está “deprê”, ou então que acha tudo “um saco”.
— Sim. Sartre descreve o homem urbano do século XX. Você se recorda de que os humanistas do Renascimento tinham propagado em tom de triunfo a liberdade e a independência do homem. Para Sartre, a liberdade do homem era como uma maldição. “O homem está condenado à liberdade”, ele dizia. Condenado porque não se criou e, não obstante, é livre. E uma vez atirado ao mundo, passa a ser responsável por tudo o que faz.
— Sim. Afinal, não pedimos a ninguém para sermos criados como indivíduos livres.
— É exatamente este o ponto central em Sartre. Acontece que somos indivíduos livres e nossa liberdade nos condena a tomarmos decisões durante toda a nossa vida. Não existem valores ou regras eternas, a partir das quais podemos nos guiar. E isto torna mais importantes nossas decisões, nossas escolhas. Sartre chama a atenção precisamente para o fato de o homem nunca poder negar sua responsabilidade pelo que faz. Por esta razão, não podemos simplesmente colocar de lado nossa responsabilidade e dizer que “temos” de ir trabalhar, ou então que “temos” de nos pautar por certas expectativas burguesas quanto ao modo como devemos viver. Aquele que assim procede mescla-se a uma massa anônima e se transforma em parte impessoal dela. Ele foge de si mesmo e se refugia na mentira. De outra parte, a liberdade do homem nos obriga a fazer de nós alguma coisa, a ter uma existência “autêntica” ou verdadeira.
— Entendo.
— O mesmo vale para as nossas decisões éticas. Nunca podemos responsabilizar a natureza e a fraqueza humanas, ou qualquer outra coisa, pelas decisões que tomamos. Muitas vezes acontece de homens já bem crescidinhos se comportarem como porcos e colocarem a culpa no “velho Adão” que pretensamente trazem dentro de si. Mas este “velho Adão” não existe. Ele não passa de uma figura de que nos valemos para fugir à responsabilidade por nossos próprios atos.
— Apesar disso, deve haver limites para toda essa culpa que recai sobre os ombros do homem.
— Embora Sartre afirme que a vida não possui um sentido inato, isto não significa que para ele nada importa. Sartre não é um niilista.
— O que é isto?
— Alguém que acha que nada tem um sentido e que tudo é permitido. Sartre diz que a vida deve ter um sentido. Isto é um imperativo. Só que nós mesmos é que temos de criar este sentido para a nossa própria vida. Existir significa criar a sua própria vida.
— Você poderia explicar isso um pouco mais?
— Sartre tentou mostrar que a consciência não é nada até que perceba alguma coisa. Pois a consciência é sempre consciência de alguma coisa. E depende de nós, e também de nosso meio, o que seja esta “alguma coisa”. Nós mesmos contribuímos para o que sentimos e percebemos, pois somos nós que escolhemos aquilo que nos é importante.
— Você teria um exemplo?
— Duas pessoas podem estar presentes num mesmo recinto e percebê-lo de maneira totalmente diversa. Isto porque deixamos nossa opinião ou nossos interesses agirem quando estamos percebendo o mundo à nossa volta. Uma mulher grávida, por exemplo, pode ter a sensação de ver mulheres grávidas por toda a parte. Isto não significa que antes não havia mulheres grávidas, mas a gravidez tem agora um novo sentido para ela. Pessoas doentes vêem ambulâncias por toda a parte…
— Entendo.
— Talvez a nossa própria vida influencie o modo como percebemos as coisas num recinto. Se uma coisa não me é importante, é provável que eu nem a perceba. E agora posso explicar por que cheguei tão atrasado.
— Você não disse que tinha sido de propósito?
— Primeiro me conte o que você viu quando entrou no café.
— A primeira coisa que eu vi foi que você não estava.
— Não é estranho que a primeira coisa que você viu neste local tenha sido justamente algo que não estava aqui?
— Pode ser, mas nós tínhamos combinado o encontro.
— Sartre usa justamente a ida a um café para explicar como nós “eliminamos” aquilo que não tem importância para nós.
— E você chegou atrasado só para me mostrar isto?
— Sim. Eu queria que você entendesse este ponto importante da filosofia de Sartre. Meu atraso pode ser considerado, portanto, parte de uma tarefa.
— Que loucura…
— Quando você está apaixonada e esperando o telefonema de seu namorado, pode ser que você “ouça” a noite inteira que ele não telefona para você. O fato de ele não telefonar é exatamente o que você registra o tempo todo. Se você vai buscar seu namorado na estação ferroviária e está numa plataforma tão cheia de gente que não consegue encontrá-lo, pode estar certa de que você não enxerga todas essas pessoas. Elas incomodam, mas são irrelevantes para você. Você pode achá-las antipáticas, ou mesmo repugnantes. Elas tomam tanto espaço… Mas a única coisa que você registra é que ele não está ali.
— Entendo.
— Simone de Beauvoir tentou aplicar o existencialismo à análise dos papéis sexuais. Sartre já havia dito que o homem não possui uma natureza eterna a que possa recorrer. Somos nós que criamos aquilo que somos.
— Sim?
— O mesmo vale para a questão dos papéis sexuais. Simone de Beauvoir mostrou que não existe uma “natureza feminina” ou uma “natureza masculina” eternas, ao contrário do que tradicionalmente rezava o senso comum. Sempre se afirmou, por exemplo, que a natureza do homem seria uma natureza “transcendente”, ou seja, algo que o leva a ultrapassar fronteiras. Isto explicaria por que o homem sempre se sentiu impelido a buscar um sentido e um objetivo fora de casa. Da mulher, por outro lado, sempre se disse que sua vida se orienta no sentido exatamente oposto. A natureza da mulher seria uma natureza “imanente”, o que significa que ela teria uma tendência a continuar no mesmo lugar em que já se encontra. Conseqüentemente, à mulher caberia cuidar da família, do meio ambiente e das coisas à sua volta. Hoje em dia costuma-se dizer que as mulheres estão mais aptas a lidar com os chamados “valores suaves” do que os homens.
— Simone de Beauvoir quis mesmo dizer isto?
— Não. Desta vez, excepcionalmente, você parece não ter ouvido direito o que eu disse. Simone de Beauvoir disse exatamente que não existe nem uma natureza feminina, nem uma natureza masculina. Ao contrário: ela acreditava que as mulheres e os homens tinham de se libertar impreterivelmente desses preconceitos e ideais fortemente arraigados.
— Concordo com ela de todo o coração.
— Seu livro mais importante foi publicado em 1949 e tinha o título de O segundo sexo.
— O que ela queria dizer com isto?
— Ela estava pensando na mulher. Na nossa cultura, a mulher tinha sido transformada num “segundo sexo”. Só o homem aparecia como sujeito desta cultura. A mulher, ao contrário, fora transformada em objeto do homem. Dessa forma, lhe haviam tirado a responsabilidade por sua própria vida.
— E então?
— Para Simone de Beauvoir, a mulher precisa reconquistar esta responsabilidade. Ela precisa se reencontrar consigo mesma e não pode simplesmente aliar sua identidade à de seu marido. Isto porque não é só o homem que reprime a mulher. A própria mulher se reprime quando não assume a responsabilidade por sua própria vida.
— Quer dizer que somos nós mesmas que decidimos até que ponto podemos ser livres e independentes?
— Isso mesmo. A partir dos anos 40, o existencialismo passou a influenciar a literatura européia, sobretudo o teatro. O próprio Sartre escreveu romances e peças de teatro. Outros autores importantes são o francês Albert Camus, o irlandês Samuel Beckett, o romeno Eugène Ionesco e o polonês Witold Gombrowicz. Um elemento característico de todos eles, e também de muitos outros autores modernos, é a representação do absurdo. Na certa você já ouviu falar no teatro do absurdo.
— Sim.
— E você entende o que a palavra “absurdo” significa?
— Significa alguma coisa sem sentido ou irracional, não é?
— Exatamente. O “teatro do absurdo” está preocupado em mostrar a falta de sentido da vida. O que se espera é que o público não apenas assista à peça, mas também reaja a ela. Não era objetivo deste teatro, portanto, fazer uma apologia da falta de sentido da vida. Ao contrário: por meio da representação e da exposição às claras do absurdo, em cenas do cotidiano, por exemplo, o público era levado a refletir sobre a possibilidade de uma vida mais verdadeira, mais essencial.
— Continue.
— Freqüentemente, o “teatro do absurdo” aborda situações absolutamente triviais. O homem é representado exatamente como é. Mas quando você leva para o palco de um teatro o que acontece, por exemplo, dentro do banheiro de uma casa como todas as outras, numa manhã como todas as outras, o público acaba rindo. Este riso pode ser entendido como um mecanismo de defesa contra o fato de as pessoas se verem representadas sem rodeios no palco.
— Entendo.
— Mas o “teatro do absurdo” também pode ter traços surrealistas. Freqüentemente, as personagens são enredadas em devaneios e em situações as mais improváveis. E quando elas aceitam essas situações sem o menor sinal de surpresa, quando as aceitam sem qualquer reação, então é a vez de o público reagir a esta falta de reação. A propósito, o mesmo vale para os filmes mudos de Charlie Chaplin. O elemento cômico nestes filmes geralmente é a falta de surpresa com que Carlitos encara o absurdo das situações que vive. O expectador ri do que vê, mas acaba cismado com sua própria capacidade de se surpreender com as coisas e de reagir a elas.
— Às vezes é constrangedor ver tudo o que as pessoas engolem sem reagir.
— Sim, e às vezes é certo pensar que se tem de sair de determinado lugar, mesmo que não se saiba para onde ir.
— Se a casa está pegando fogo, a gente tem de sair, mesmo que não tenha outro lugar para ficar.
— É verdade. Você quer outra xícara de chá? Ou talvez um refrigerante?
— Um refrigerante. Mas continuo achando você um chato por ter se atrasado.
— Posso perfeitamente conviver com isso.
Pouco depois, Alberto já estava de volta com uma xícara de café e o refrigerante. Nesse meio tempo, Sofia começou a achar agradável estar num café. Ela já não tinha tanta certeza de que eram totalmente vazias as conversas nas outras mesas.
Ao colocar a garrafa de refrigerante sobre a mesa, Alberto fez barulho. Algumas pessoas de outras mesas olharam.
— E com isto chegamos ao fim de nossa jornada — disse ele.
— A filosofia termina com Sartre e o existencialismo?
— Não, seria um exagero afirmar uma coisa dessas. A filosofia existencialista foi de grande importância para muitas pessoas no mundo inteiro. Como vimos, suas raízes remontam a Kierkegaard e até a Sócrates. Do mesmo modo, outras correntes filosóficas do passado experimentaram um novo apogeu e uma renovação em nosso século.
— Você pode me dar alguns exemplos?
— O neotomismo retoma pensamentos e idéias que se ligam à tradição de são Tomás de Aquino. A chamada filosofia analítica ou empirismo lógico retoma o pensamento de Hume e do empirismo britânico e também a lógica de Aristóteles. E é claro que o século XX também é marcado pelo chamado neomarxismo e todas as suas correntes. Já falamos também do neodarwinismo e já chamamos a atenção também para a importância da psicanálise.
— Entendo.
— Uma última corrente, que talvez devêssemos mencionar, é o materialismo, cujas raízes também estão num passado remoto da história. A ciência moderna em muito nos lembra os esforços dos pré-socráticos. Continua-se buscando, por exemplo, a “partícula elementar” indivisível, a partir da qual toda a matéria se constitui. E também ainda não apareceu ninguém que nos pudesse explicar exatamente o que é a “matéria”. As ciências naturais modernas, como a física nuclear e a bioquímica, são tão fascinantes, que se tornaram um componente essencial da cosmovisão de muitas pessoas.
— Novo e velho convivendo lado a lado, não é isto?
— Podemos dizer que sim. Pois as perguntas com as quais começamos este curso ainda não foram respondidas. Sartre fez uma observação importante quando disse que as questões existenciais não podem ser respondidas de uma vez e para todo o sempre. Uma questão filosófica é per definitionem uma questão que cada nova geração, que cada ser humano, tem de se colocar novamente.
— Este pensamento não é dos mais consoladores.
— Não sei se concordo plenamente com você. Não é justamente quando nos fazemos essas perguntas que nos sentimos vivos? Além do mais, não é na busca de respostas para as “grandes” perguntas que o homem tem encontrado respostas claras e definitivas para as “pequenas” perguntas? A ciência, a pesquisa, a tecnologia, todas elas surgiram em algum momento a partir da reflexão filosófica. Afinal, não foi a estupefação do próprio homem diante da vida que o acabou levando à Lua?
— Sim, é verdade.
— Quando o astronauta Armstrong pisou na Lua, ele disse: “Um pequeno passo para o homem, um grande passo para a humanidade”. E com estas palavras incluiu na emoção de ser o primeiro homem a pisar na Lua todos os que já haviam vivido antes dele. Afinal, o fato de ele poder estar ali naquele momento não era mérito exclusivo seu, nem de seus contemporâneos.
— Claro que não.
— Mas a nossa época também teve de encarar muitos problemas novos. Os grandes problemas ambientais são um exemplo disso. Por esta razão, uma importante corrente filosófica do século XX é a ecofilosofia. Muitos ecofilósofos do Ocidente defendem o ponto de vista de que nossa civilização tomou o caminho errado e se encontra em rota de colisão com o que este planeta é capaz de agüentar. Esses filósofos tentaram pesquisar mais a fundo e não apenas discutir as conseqüências concretas da poluição e da destruição ambientais. Para eles, alguma coisa não está certa em todo o pensamento ocidental.
— Acho que eles têm razão.
— Os ecofilósofos questionaram, por exemplo, a noção de evolução, que se baseia na suposição de que o homem está “no topo” da natureza; ou seja, que somos os senhores da natureza. E é precisamente este pensamento que pode colocar em risco toda a vida do planeta.
— Fico furiosa quando penso nessas coisas.
— Em sua crítica a este ponto de vista, os ecofilósofos foram buscar apoio no pensamento e nas idéias de outras culturas, por exemplo na Índia. Eles também estudaram o pensamento e o modo de vida dos chamados “povos nativos”, ou “populações primitivas”, a fim de, quem sabe, encontrar algo que há muito tempo perdemos.
— Entendo.
— Nos últimos anos, muitos têm afirmado dentro de círculos científicos que todo o nosso pensamento científico está diante de uma mudança de paradigma, ou seja, de uma mudança radical. Em diversas áreas específicas, esta discussão já tem dado seus frutos. Não nos faltam exemplos dos chamados “movimentos alternativos”, que dão particular importância para um pensamento holístico e defendem um novo estilo de vida.
— Isso é muito bom.
— Ao mesmo tempo, como em tudo o que o homem faz, também aqui é preciso saber separar o joio do trigo. Muitos têm afirmado que nos aproximamos de uma nova era, a “New Age”. Só que nem tudo o que é novo é necessariamente bom, e nem tudo o que é velho deve ser descartado. Foi por isso que fizemos este curso de filosofia. Agora que você conhece o pano de fundo histórico de nosso pensamento, você terá mais facilidade para separar o joio do trigo. E quem é capaz de fazer isto também tem mais facilidade em se nortear na vida.
— Sou grata a você por tamanha consideração.
— Estou certo de que verá que muito do que se diz “New Age” não passa de mero disparate. Nas últimas décadas, a influência do que chamamos de “nova religiosidade”, “neo-ocultismo” ou “moderna superstição” sobre o mundo ocidental deu origem a uma verdadeira indústria. À medida que o cristianismo foi perdendo terreno, novas ofertas surgiram aos montes no mercado de visões de mundo.
— Você poderia me dar um exemplo?
— A lista é tão longa que não sei nem por onde começar. De qualquer forma, não é fácil descrever o próprio tempo. Sugiro que a gente dê uma volta pela cidade. Quero mostrar uma coisa a você.
Indiferente, Sofia sacudiu os ombros.
— Não tenho muito tempo. Você não se esqueceu da festa de amanhã, não é?
— Claro que não. Afinal, é nessa festa que vai acontecer uma coisa maravilhosa. Só precisamos terminar o curso de filosofia de Hilde. Sabe, o major não pensou numa continuação depois de concluído o curso. E é nesse ponto que ele perde parte de sua força.
Mais uma vez Alberto ergueu a garrafa de refrigerante, agora vazia, e bateu na mesa fazendo um ruído.
Saíram do café. As pessoas, apressadas, pareciam formigas correndo de lá para cá dentro de um formigueiro. Sofia se perguntava o que Alberto queria mostrar para ela.
Passaram, então, por uma grande loja de produtos eletroeletrônicos. Ali se vendia de tudo: de aparelhos de televisão, videocassetes e antenas parabólicas até telefones celulares, computadores e aparelhos de fax.
Alberto parou diante da vitrine e disse:
— Aqui está o século XX, Sofia. A partir do Renascimento, o mundo começou a explodir, por assim dizer. A começar pelos grandes descobrimentos, pelas grandes viagens dos europeus por todo o planeta. Em nossos dias, o que se verifica é uma explosão ao contrário.
— Como assim?
— Estou querendo dizer que o mundo inteiro está sendo ligado e se unindo numa única rede de comunicação. Há não muito tempo, os filósofos ainda levavam muitos dias no lombo de um cavalo ou no interior de um coche para observar o mundo, ou então para encontrar outro pensador. Hoje em dia, em qualquer parte deste planeta, podemos nos sentar diante de um computador e trazer até nós informações sobre toda a experiência humana.
— Isto é uma coisa fantástica e, ao mesmo tempo, um tanto amedrontadora.
— A questão é saber se a história se aproxima de seu fim, ou se estamos no limiar de um novo tempo. Não somos mais apenas habitantes de uma cidade ou de um país específico. Vivemos uma civilização planetária.
— É mesmo.
— Nos últimos trinta ou quarenta anos, a evolução tecnológica, sobretudo no que se refere aos meios de comunicação, foi mais dramática do que em toda a história até então. E o que estamos vivendo hoje pode ser apenas o começo…
— Era isto o que você queria me mostrar?
— Não. O que eu queria mostrar está ali atrás da igreja.
(…)
Atravessaram a praça da igreja e chegaram à nova rua principal. Alberto estava levemente irritado. Caminharam um pouco e ele parou diante de uma livraria chamada Libris, a maior da cidade.
— Você quer me mostrar alguma coisa aqui?
— Vamos entrar.
Dentro da livraria, Alberto apontou para a maior estante de livros. Ela estava subdividida em três partes, assim designadas: NEW AGE, MODOS DE VIDA e MISTICISMO.
Nas prateleiras havia livros com muitos títulos intrigantes: Existe vida após a morte?, Os segredos do espiritismo, Tarô, O fenômeno UFO, Curas, O retorno dos deuses, Você já passou por aqui…, O que é astrologia? e muitos, muitos outros. Na parte de baixo da estante havia pilhas de outros livros semelhantes.
— Isto é o século XX, Sofia. Este é o templo da nossa era.
— Você acredita nessas coisas?
— O que importa é que muitos desses livros não passam de bobagem. E ainda assim vendem tanto quanto livros pornográficos. Aliás, muitos deles poderiam ser chamados de pornografia. Aqui, a geração que está crescendo agora pode comprar os livros que mais lhe interessam. Só que a relação entre a verdadeira filosofia e esses livros é mais ou menos a mesma que existe entre o amor verdadeiro e a pornografia.
— A comparação não é um tanto grosseira?
— Bem, vamos nos sentar ali na praça.
E saíram da livraria. Na frente da igreja, encontraram um banco vazio. Debaixo das árvores, algumas pombas disputavam uns grãozinhos de alimento. E no meio delas havia um ou outro pardal muito entusiasmado.
Sentaram-se e Alberto começou:
— Parapsicologia, telepatia, clarividência, psicocinética, espiritismo, astrologia, ufologia. A criança tem muitos nomes.
— Mas, diga-me com franqueza: você acha que tudo não passa de besteira?
— Naturalmente, não seria de bom tom para um filósofo de verdade colocar tudo isso num mesmo saco. Mas não quero excluir a hipótese de que todas essas palavras que acabei de mencionar esboçam o mapa detalhado de uma paisagem que não existe. Seja como for, muitas dessas coisas não passam do que Hume chamou de “fantasmagoria e ilusão” e quis atirar ao fogo. Em muitos desses livros não encontramos uma única experiência verdadeira.
— Mas então por que se escrevem tantos livros sobre essas coisas?
— Porque isto é simplesmente o melhor negócio do mundo. Muitas pessoas querem ter essas coisas.
— E por que você acha que elas querem essas coisas?
— Porque anseiam por algo “místico”, por “outra” coisa que aponte para além da monotonia de sua vida cotidiana. Só que infelizmente acabam exagerando.
— Como assim?
— Aqui estamos nós no meio de uma aventura fantástica. O milagre da criação se desenrola diante de nossos olhos. E em plena luz do dia, Sofia! Não é incrível?
— Sem dúvida.
— Para que, então, procurar tendas ciganas ou os pátios das academias para experimentar algo de “excitante” ou “transcendente”?
— Você está querendo dizer que os autores desses livros são todos uns incompetentes e mentirosos?
— Não, eu não disse isto. Deixe-me explicar “darwinianamente” o que quero dizer.
— Estou ouvindo.
— Pense em tudo o que acontece no decorrer de um único dia. Concentre-se num único dia de sua própria vida e pense em tudo o que você vê e experimenta.
— Certo.
— Às vezes ocorrem coincidências estranhas. Por exemplo, você entra numa loja e compra uma coisa que custa vinte e oito coroas. Pouco depois chega Jorunn e traz a você as vinte e oito coroas que você emprestou para ela não sei quando. Daí você vai ao teatro e a sua poltrona é de número vinte e oito.
— Sem dúvida, seriam coincidências misteriosas.
— Mas não deixariam de ser coincidências. Acontece que muitas pessoas colecionam coincidências como essas. Elas colecionam experiências misteriosas ou inexplicáveis, extraídas da vida de alguns milhões de pessoas, que depois são reunidas num livro e apresentadas ao leitor como farto material de prova. E este material cresce a cada dia. Só que, mesmo neste caso, trata-se de uma loteria, da qual não passamos de números premiados.
— Quer dizer que não existem clarividentes ou “médiuns”?
— Existem sim, e se deixarmos de lado os embustes encontraremos outra explicação importante para as experiências supostamente místicas que eles vivem.
— E qual é esta explicação?
— Você ainda deve se lembrar do que falamos sobre a teoria do inconsciente de Freud.
— Quantas vezes eu vou ter de dizer que não sou do tipo de pessoa que se esquece facilmente das coisas?
— Freud já tinha chamado a atenção para o fato de nós sermos uma espécie de “médium” de nosso próprio inconsciente. De repente pode acontecer de nos flagrarmos fazendo ou pensando coisas sem entender bem o porquê. Isto se explica pelo fato de o número das nossas experiências, pensamentos e vivências ser muito maior do que o nosso consciente é capaz de armazenar.
— Continue.
— Algumas vezes as pessoas falam ou então andam enquanto dormem. Podemos chamar isto de um “automatismo mental”. Também sob hipnose as pessoas podem dizer coisas “sem querer”. E você se lembra dos surrealistas, que tentavam escrever e pintar “automaticamente”, transformando-se, assim, em “médiuns” de seus próprios inconscientes.
— Lembro-me disso também.
— Em nosso século [XX], e com alguma regularidade, temos notícias de pessoas, de “médiuns” que seriam capazes de entrar em contato com os mortos. Este “médium” receberia mensagens de pessoas que, por exemplo, viveram há muitos anos. E, então, ou o “médium” fala com a voz do morto, ou então escreve “automaticamente”, “psicografando”, como se costuma dizer, o que o morto tem a dizer. Para muitas pessoas, isto tem sido visto como prova da existência de uma vida após a morte, ou da existência de muitas vidas.
— Entendo.
— Não estou querendo dizer que todos estes “médiuns” sejam uns charlatões. Alguns deles, ao que parece, agem de boa-fé. Eles até podem ser “médiuns”, mas só de seu próprio inconsciente. Existem vários exemplos de experimentos envolvendo “médiuns” que, numa espécie de transe, mostraram conhecimentos e habilidades que nem eles, nem as outras pessoas podiam explicar de onde vinham. Uma mulher que não sabia hebraico, por exemplo, de repente começou a falar nesta língua. E nesse caso a explicação foi a seguinte: ou ela já tinha vivido uma vez, ou então realmente tinha entrado em contato com um espírito que falava hebraico. E então, Sofia?
— O que você acha?
— Descobriu-se, depois, que ela tivera uma babá judia quando criança.
— Ah…
— Você ficou desapontada, Sofia? Pois não deveria. Afinal, não é fantástico descobrir como uma só pessoa é capaz de armazenar em seu inconsciente tantas experiências já vividas?
— Entendo o que você quer dizer.
— Muitas das curiosidades de nossa vida cotidiana também podem ser explicadas pela teoria do inconsciente de Freud. Por exemplo, quando recebo o telefonema de um amigo que não vejo há muitos anos, justamente no momento em que estou procurando o telefone dele para ligar…
— Fico até arrepiada!
— O motivo desta aparente coincidência pode ser, por exemplo, o fato de nós dois termos ouvido no rádio uma velha canção; uma canção que ouvimos da última vez em que nos encontramos, por exemplo. Acontece que simplesmente não percebemos a ligação entre as coisas.
— Quer dizer que tudo isto não passa ou de charlatanismo, ou então do efeito “número premiado de loteria”, ou ainda de manobras do inconsciente?
— De qualquer forma, estou querendo dizer que é sempre mais saudável olhar com certo ceticismo para essas estantes de livros. E isto é importante também para um filósofo. Na Inglaterra, os céticos têm a sua própria associação. Há muitos anos eles ofereceram uma elevada soma em dinheiro ao primeiro que lhes trouxesse uma pequena prova que fosse de algum evento sobrenatural. E não precisava ser nada de espetacular; um simples caso de telepatia bastava. Até hoje ninguém se apresentou.
— Entendo.
— Outra coisa, completamente diferente, é o fato de existirem muitas coisas que nós, seres humanos, não entendemos. É possível até que não conheçamos ainda todas as leis da natureza. No século passado [XIX], muitos consideravam magia fenômenos como o magnetismo ou a eletricidade. Acho que minha bisavó ficaria de olhos arregalados se eu falasse com ela sobre televisão ou computadores.
— Mas você não acredita mesmo em nada de sobrenatural?
— Já falamos sobre isso. A simples palavra “sobrenatural” já me soa estranha. Não, não… acredito que existe apenas uma natureza. Mas que, em compensação, ela é absolutamente fabulosa.
— Isto significa que o sobrenatural só existe nos livros que você me mostrou?
— Todos os verdadeiros filósofos devem ter os olhos bem abertos. Mesmo que nós nunca tenhamos visto uma gralha branca, jamais podemos desistir de procurar por uma. E poderá chegar o dia em que até um cético como eu tenha de aceitar um fenômeno no qual não quis acreditar até então. Se eu não considerasse essa possibilidade, seria um dogmático. E não seria, portanto, um filósofo de verdade.
Durante algum tempo, Alberto e Sofia ficaram sentados no banco da praça sem dizer nada. Orgulhosas, as pombas arrulhavam e passavam por eles de pescoço empinado. De vez em quando algumas voavam, espantadas por um movimento brusco ou por uma bicicleta que passava.
— Preciso ir para casa preparar a festa — disse Sofia quebrando o silêncio.
— Só que antes de nos despedirmos quero lhe mostrar uma gralha branca. Ela está mais perto do que a gente pensa.
Alberto levantou-se e fez um sinal para que ela o acompanhasse de novo à livraria.
Desta vez deixaram de lado todos os livros sobre fenômenos sobrenaturais. Alberto parou diante de uma pequena estante que ficava no fundo da livraria. Sobre a estante havia uma pequena placa em que estava escrito: FILOSOFIA.
Alberto apontou para um dos livros e Sofia levou um tremendo susto quando leu o título: O MUNDO DE SOFIA.
— Posso comprá-lo para você?
— Não sei se ouso responder que sim.
Pouco depois, porém, ela já voltava para casa com o livro numa das mãos e a sacola de compras para a festa na outra.
(...)
(EXCERTOS)
O MUNDO DE SOFIA
DE JOSTEIN GAARDER
Cia. das Letras, São Paulo, 1998
Tradução de João Azenha Jr.
CAPÍTULO 1 – O JARDIM DO ÉDEN
Sofia Amundsen voltava da escola para casa. Percorrera a primeira parte do caminho em companhia de Jorunn, sua colega de classe. Tinham conversado sobre robôs. Jorunn considerava o cérebro humano um computador complicado. Sofia não estava bem certa se concordava com isto. O ser humano não seria algo mais do que uma máquina?
Quando passaram pelo supermercado, cada uma tomou o seu rumo. Sofia morava no final de um bairro extenso, com belas casas, e tinha que andar quase o dobro de Jorunn para voltar da escola. Sua casa parecia ficar no fim do mundo, pois atrás do quintal não havia outras casas, só a floresta.
Dobrou a rua Kløverveien. Bem no fim, a rua formava uma curva fechada, chamada de “a curva do capitão”. Só aos sábados e domingos viam-se pessoas por ali.
Era um dos primeiros dias de maio. Em alguns jardins, densas coroas de narcisos floriam sob as árvores de frutas. As bétulas pareciam vestidas de finas capas de florescências verdes. Não era curioso como nesta época do ano tudo começava a crescer e a medrar? Como se explicava que quilos e quilos da substância verde das plantas pudessem brotar da terra sem vida quando o tempo ficava mais quente e os últimos resquícios de neve desapareciam?
Sofia olhou a caixa de correio, antes de abrir o portão do jardim. Em geral havia um monte de folhetos de propaganda e alguns envelopes grandes para sua mãe. Sofia costumava colocar toda a correspondência sobre a mesa da cozinha, antes de ir para o seu quarto fazer a lição de casa.
Para o seu pai vinham às vezes só alguns extratos bancários, o que não era de se estranhar, pois afinal de contas ele não era um pai como os outros. O pai de Sofia era capitão de um petroleiro e passava quase todo o ano viajando. Quando voltava para casa por algumas semanas, ficava andando pela casa de chinelos e dedicava toda a sua atenção a Sofia e a sua mãe. Mas a proximidade desses momentos desaparecia por completo quando ele estava em serviço.
Hoje havia na grande caixa verde de correio apenas uma pequena carta — e ela era para Sofia.
“Sofia Amundsen”, estava escrito no pequeno envelope. “Kløverveien, 3.” Era tudo; não havia remetente. A carta não estava sequer selada.
Assim que Sofia entrou, abriu o envelope. Dentro encontrou apenas uma pequena folha, não maior do que o envelope que a continha. Nela estava escrito: Quem é você?
Nada mais. A mensagem não tinha qualquer fórmula de saudação, tampouco um remetente, só estas três palavras escritas a mão, seguidas de um grande ponto de interrogação. Ela olhou mais uma vez o envelope. Estava certo… a carta era mesmo para ela. Mas quem a teria colocado na caixa de correio? Sofia fechou rapidamente a porta da casa, cuja fachada era pintada de vermelho. Como de costume, o gato Sherekan conseguiu sair furtivamente do meio dos arbustos, saltar sobre o patamar da escada e enfiar-se dentro de casa, antes que Sofia conseguisse fechar a porta.
— Miau, miau, miau!
Quando a mãe de Sofia ficava irritada por algum motivo, ela às vezes dizia que sua casa parecia uma menagerie, isto é, uma espécie de zoológico particular. De fato, Sofia estava muito satisfeita com sua coleção de bichinhos. Primeiro ela ganhou um aquário com peixes ornamentais, a quem deu os nomes de Cachinhos Dourados, Chapeuzinho Vermelho e Peter, o Pretinho. Depois vieram os periquitos Tom e Jerry, a tartaruga Govinda e finalmente Sherekan, um gato malhado. Todos os bichos serviam como uma espécie de indenização por sua mãe sair sempre tão tarde do trabalho e por seu pai ficar viajando tanto pelo mundo.
Sofia jogou a mochila da escola num canto e colocou uma tigela de ração para Sherekan. Depois, segurando a carta misteriosa, largou o corpo sobre um banquinho da cozinha.
Quem é você?
Se ela soubesse! É claro que ela era Sofia Amundsen, mas quem era esta pessoa? Isto ela ainda não tinha descoberto direito.
E se tivesse outro nome? Anne Knutsen, por exemplo. Será que só por isso seria também uma outra pessoa?
De repente lembrou-se de que no começo seu pai queria que ela se chamasse Synnøve Amundsen. Sofia tentou imaginar-se estendendo a mão e apresentando-se como Synnøve Amundsen. Não, não dava. Toda vez que pensava nisso imaginava sempre outra pessoa.
Então saltou do banquinho e foi para o banheiro com a carta misteriosa na mão. Parou diante do espelho e olhou-se fixamente nos olhos.
— Sou Sofia Amundsen — disse.
Como resposta, a garota do espelho não teve a menor reação. Não importava o que Sofia fizesse, ela fazia a mesma coisa. Com um movimento rápido, Sofia tentou se antecipar à imagem do espelho; mas ela foi igualmente rápida.
— Quem é você? — perguntou Sofia.
Também desta vez não recebeu qualquer resposta; por um breve instante, porém, não teve certeza de ter sido ela ou sua imagem no espelho quem tinha feito a pergunta. Com o dedo indicador, Sofia apertou o nariz da figura do espelho e disse: — Você sou eu. E como não recebeu qualquer resposta, inverteu a sentença e disse:
— Eu sou você.
Sofia Amundsen nunca estava muito satisfeita com sua aparência. Com freqüência ouvia que tinha lindos olhos amendoados, mas provavelmente lhe diziam isto porque seu nariz era pequeno demais em relação ao tamanho da boca. O pior de tudo eram mesmo os cabelos lisos, que não tomavam forma nenhuma. Às vezes seu pai lhe acariciava os cabelos e a chamava de “a garota dos cabelos de linho”, parodiando uma composição de Claude Debussy. Para ele era fácil dizer isto; afinal, não era ele quem estava condenado a carregar a vida inteira cabelos pretos e escorridos de tão lisos. E nos cabelos de Sofia não adiantava passar nada, nem spray, nem gel.
Às vezes ela achava sua aparência tão estranha que se perguntava se não teria sido um bebê malformado. Sua mãe sempre contara que tivera um parto difícil. Mas será que era mesmo o nascimento que determinava a aparência de uma pessoa?
Não era um tanto esquisito ela não saber quem era? E também não era uma injustiça o fato de ela mesma não poder determinar sua aparência? Isto simplesmente lhe tinha sido imposto ao nascer. Seus amigos, estes sim ela talvez pudesse escolher, mas não tinha tido a chance de escolher-se a si própria. Não tinha sequer decidido ser uma pessoa.
O que era uma pessoa?
Sofia olhou de novo a moça no espelho.
— Acho que agora prefiro ir fazer minha lição de casa — disse, como que tentando se desculpar. No momento seguinte já estava no corredor.
Não, prefiro ir até o jardim, pensou.
— Miau, miau, miau!
Sofia espantou o gato para a escada de fora e fechou a porta.
Quando já estava no jardim, caminhando no passeio de saibro com a carta misteriosa na mão, experimentou subitamente uma sensação estranha. Sentiu-se como uma boneca que ganhara vida por uma varinha de condão.
Não era extraordinário estar viva naquele momento e ser personagem de uma aventura maravilhosa como a vida?
Sherekan saltou elegantemente sobre o passeio de saibro e desapareceu na groselheira, que se erguia bem ao lado. Era um gato muito vivo, cheio de uma energia vibrante que ia dos bigodes brancos até a ponta da cauda chicoteante. Ele também estava ali no jardim, mas certamente não tinha consciência disso do mesmo modo como Sofia.
Depois de pensar um pouco sobre o fato de existir, Sofia não pôde deixar de pensar também que um dia desapareceria.
Estou vivendo no mundo agora, pensou. Mas um dia terei desaparecido.
Será que havia uma vida após a morte? Também sobre esta questão o gato não fazia a menor idéia.
Há pouco tempo a avó de Sofia tinha morrido. Por mais de meio ano, Sofia sentia todos os dias a falta que sua avó lhe fazia. Não era injusto que um dia a vida tivesse um fim?
Cismada, Sofia parou um instante no passeio de saibro. Tentou concentrar todo o seu pensamento no fato de existir, a fim de esquecer que um dia deixaria de existir. Mas não conseguia. No mesmo instante em que se concentrava no fato de existir, pensava também que um dia morreria. E o mesmo ocorria ao contrário: só quando sentiu intensamente que um dia desapareceria é que pôde entender exatamente o quanto a vida era infinitamente valiosa. E quanto maior e mais clara era uma face da moeda, tanto maior e mais clara se tornava a outra. Vida e morte eram os dois lados de uma mesma coisa.
Não se pode experimentar a sensação de existir sem se experimentar a certeza que se tem de morrer, pensou. E é igualmente impossível pensar que se tem de morrer sem pensar ao mesmo tempo em como a vida é fantástica.
Sofia lembrou-se de que sua avó dissera algo semelhante no dia em que soube de sua doença. — Só agora entendo o quanto a vida é rica — foram suas palavras.
Não era triste que a maioria das pessoas tivesse primeiro que ficar doente para só então entender o quanto a vida é bela? Ou então que tivessem de encontrar uma carta misteriosa na caixa de correio?
Talvez fosse melhor verificar se não havia chegado mais alguma coisa. Sofia correu até o portão e examinou o que havia dentro da caixa de correio. E estremeceu da cabeça aos pés ao descobrir outro envelope idêntico ao primeiro. Será que ela verificara direito se a caixa estava realmente vazia da primeira vez que apanhou a correspondência?
O outro envelope também trazia o seu nome. Abriu-o e tirou uma pequena folha de papel, igual à primeira, em que estava escrito:
De onde vem o mundo?
Não faço a menor idéia, pensou Sofia. Mas também ninguém sabe! E apesar disso Sofia achou a pergunta pertinente. Pela primeira vez em sua vida ela pensava que era praticamente impossível viver num mundo sem ao menos perguntar de onde ele vinha.
Sofia estava tão perturbada com as duas cartas misteriosas que resolveu se enfiar em sua caverna. A caverna era o seu esconderijo secreto. E ela só ia para lá quando estava muito brava, muito triste ou muito alegre. Hoje ela estava muito confusa.
Capítulo 2 (Excerto)
A CARTOLA
O QUE É FILOSOFIA?
(Páginas 24-26.)
(…)
Muitas pessoas têm hobbies diferentes. Algumas colecionam moedas e selos antigos, outras gostam de trabalhos manuais, outras ainda dedicam todo o seu tempo livre a uma determinada modalidade de esporte.
Também há os que gostam de ler. Mas os tipos de leitura também são muito diferentes. Alguns lêem apenas jornais ou gibis, outros gostam de romances, outros ainda preferem livros sobre temas diversos como astronomia, a vida dos animais ou as novas descobertas da tecnologia.
Se me interesso por cavalos ou pedras preciosas, não posso querer que todos os outros tenham o mesmo interesse. Se fico grudado na televisão assistindo a todas as transmissões de esporte, tenho que aceitar que outras pessoas achem o esporte uma chatice.
Mas será que existe alguma coisa que interessa a todos? Será que existe alguma coisa que concerne a todos, não importando quem são ou onde se encontram? Sim, querida Sofia, existem questões que deveriam interessar a todas as pessoas. E é sobre tais questões que trata este curso.
Qual é a coisa mais importante da vida? Se fazemos esta pergunta a uma pessoa de um país assolado pela fome, a resposta será: a comida. Se fazemos a mesma pergunta a quem está morrendo de frio, então a resposta será: o calor. E quando perguntamos a alguém que se sente sozinho e isolado, então certamente a resposta será: a companhia de outras pessoas.
Mas, uma vez satisfeitas todas essas necessidades, será que ainda resta alguma coisa de que todo mundo precise? Os filósofos acham que sim. Eles acham que o ser humano não vive apenas de pão. É claro que todo mundo precisa comer. E precisa também de amor e de cuidado. Mas ainda há uma coisa de que todos nós precisamos. Nós temos a necessidade de descobrir quem somos e por que vivemos.
Portanto, interessar-se em saber por que vivemos não é um interesse “casual” como colecionar selos, por exemplo. Quem se interessa por tais questões toca um problema quem vem sendo discutido pelo homem praticamente desde quando passamos a habitar este planeta. A questão de saber como surgiu o universo, a Terra e a vida por aqui é uma questão maior e mais importante do que saber quem ganhou mais medalhas de ouro nos últimos Jogos Olímpicos.
O melhor meio de se aproximar da filosofia é fazer perguntas filosóficas:
Como o mundo foi criado? Será que existe uma vontade ou um sentido por detrás do que ocorre? Há vida depois da morte? Como podemos responder a estas perguntas? E, principalmente: como devemos viver?
Essas perguntas têm sido feitas pelas pessoas de todas as épocas. Não conhecemos nenhuma cultura que não se tenha perguntado quem é o ser humano e de onde veio o mundo.
Basicamente, não há muitas perguntas filosóficas para se fazer. Já fizemos algumas das mais importantes. Mas a história nos mostra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas que estamos fazendo.
É mais fácil, portanto, fazer perguntas filosóficas do que respondê-las.
Da mesma forma, hoje em dia cada um de nós deve encontrar a sua resposta para estas perguntas. Não dá para procurar numa enciclopédia se existe um Deus, ou se há vida após a morte. A enciclopédia também não nos diz como devemos viver. Mas a leitura do que outras pessoas pensaram pode nos ser útil quando precisamos construir nossa própria imagem do mundo e da vida.
A busca dos filósofos pela verdade pode ser comparada com uma história policial. Alguns acham que Andersen é o criminoso; outros acham que é Nielsen ou Jepsen. Um crime na vida real pode chegar a ser desvendado pela polícia um dia. Mas também podemos imaginar que a polícia nunca consiga solucionar determinado caso, embora a solução para ele esteja em algum lugar.
Mesmo que seja difícil responder a uma pergunta, isto não significa que ela não tenha uma – e só uma – resposta certa. Ou há algum tipo de vida depois da morte, ou não.
Muitos dos antigos enigmas foram resolvidos pela ciência ao longo dos anos. Antigamente, um grande enigma era saber como era o lado escuro da Lua. Não era possível chegar a uma resposta apenas através de discussão; a resposta ficava para a imaginação de cada um. Hoje, porém, sabemos exatamente como é o lado escuro da Lua. Não dá mais para “acreditar” que há um homem morando na Lua, nem que ela é um grande queijo, todo cheio de buracos.
Um dos grandes filósofos gregos, que viveu há mais de dois mil anos, acreditava que a filosofia era fruto da capacidade do homem de se admirar com as coisas. Ele achava que para o homem a vida é algo tão singular que as perguntas filosóficas surgem como que espontaneamente. É como o que ocorre quando assistimos a um truque de mágica: não conseguimos entender como é possível acontecer aquilo que estamos vendo diante de nossos olhos. E então, depois de assistirmos à apresentação, nos perguntamos: como é que o mágico conseguiu transformar dois lenços de seda brancos num coelhinho vivo?
Para muitas pessoas, o mundo é tão incompreensível quanto o coelhinho que um mágico tira de uma cartola que, há poucos instantes, estava vazia.
No caso do coelhinho, sabemos perfeitamente que o mágico nos iludiu. Quando falamos sobre o mundo, as coisas são um pouco diferentes. Sabemos que o mundo não é mentira ou ilusão, pois estamos vivendo nele, somos parte dele. No fundo, somos o coelhinho branco que é tirado da cartola. A única diferença entre nós e o coelhinho branco é que o coelhinho não sabe que está participando de um truque de mágica. Conosco é diferente. Sabemos que estamos fazendo parte de algo misterioso e gostaríamos de poder explicar como tudo funciona.
PS. Quanto ao coelhinho branco, talvez seja melhor compará-lo com todo o universo. Nós, que vivemos aqui, somos os bichinhos microscópicos que vivem na base dos pêlos do coelho. Mas os filósofos tentam subir da base para a ponta dos finos pêlos, a fim de poder olhar bem dentro dos olhos do grande mágico.
(…)
UMA ESTRANHA CRIATURA
(Páginas 27-31)
(…)
Eu já disse que a capacidade de nos admirarmos com as coisas é a única coisa de que precisamos para nos tornarmos bons filósofos? Se não, então digo agora: A ÚNICA COISA DE QUE PRECISAMOS PARA NOS TORNARMOS BONS FILÓSOFOS É A CAPACIDADE DE NOS ADMIRARMOS COM AS COISAS.
Todo mundo sabe que os bebês possuem essa capacidade. Depois de alguns meses na barriga da mãe, eles são empurrados para uma realidade completamente diferente. Mas depois, quando crescem, parece que esta capacidade vai desaparecendo. Como se explica isto? Será que Sofia Amundsen é capaz de responder a esta pergunta?
Vamos ver: se um bebezinho pudesse falar, na certa ele diria alguma coisa sobre o novo e estranho mundo a que chegou. Pois apesar de a criança não saber falar, podemos ver como ela olha ao seu redor e quer tocar com curiosidade todos os objetos que vê.
Quando vêm as primeiras palavras, a criança pára e diz “Au! Au!” toda vez que vê um cachorro. Podemos ver como ela fica agitada dentro do carrinho e movimenta os bracinhos dizendo “Au, au, au!”. Para nós, que já deixamos para trás alguns anos de nossas vidas, o entusiasmo da criança pode parecer até um tanto exagerado. “Sim, sim, é um au-au”, dizemos nós, os “vividos”. “Mas agora fique quietinho.” Não ficamos muito entusiasmados, pois já vimos outros cachorros antes.
Esta cena insólita talvez se repita algumas centenas de vezes, até que a criança passe por um cachorro, ou por um elefante, ou por um hipopótamo sem ficar fora de si. Mas muito antes de a criança aprender a falar corretamente – ou muito antes de ela aprender a pensar filosoficamente -, ela já se habituou com o mundo.
Uma pena, se você quer saber o que eu acho.
O que importa para mim, querida Sofia, é que você não esteja entre aqueles que consideram o mundo uma evidência. Para ter certeza disso, vamos fazer dois exercícios de raciocínio antes de começarmos com nosso curso propriamente dito.
Imagine que você está dando um passeio na floresta. De repente, no meio do caminho, você vê uma pequena nave espacial. Então, um pequeno marciano sai da nave e olha para você lá de baixo…
O que você pensaria? Bem, isto não importa. Mas será que já passou pela sua cabeça que você pode ser uma marciana?
Naturalmente, é muito pouco provável que você um dia tropece numa criatura de outro planeta. Não sabemos nem mesmo se há vida em outros planetas. Mas pode ser que você um dia tropece em si mesma. Pode ser que um belo dia você pare o que está fazendo e passe a se ver de uma forma completamente diferente. E pode ser que isto aconteça justamente durante um passeio na floresta.
“Sou uma criatura estranha”, você irá pensar. “Sou um animal misterioso…”
E então vai ser como acordar de um sono de anos. Como o da Bela Adormecida. “Quem sou eu?”, você irá se perguntar. Você sabe que viaja pelo universo num planeta. Mas o que é o universo?
Você está me acompanhando, Sofia? Então vamos fazer mais um teste de raciocínio.
Certa manhã, mamãe, papai e o pequeno Thomas – a esta altura já com dois ou três anos – estão sentados na cozinha tomando o café. De repente, mamãe se levanta, vira-se para a pia e então… bem, então papai começa a flutuar sob o teto da cozinha.
O que você acha que Thomas diria? Talvez ele apontasse o dedo para seu pai e dissesse: “Papai voando!”.
Na certa Thomas ficaria espantado, mas ficar espantado não é novidade para ele. Afinal, o papai faz tantas coisas estranhas que, a seus olhos, um pequeno vôo sobre a mesa do café da manhã não faz lá muita diferença. Todos os dias, por exemplo, seu pai faz a barba com um aparelhinho esquisito, às vezes sobe no telhado e vira a antena da TV, outras vezes enfia a cabeça no compartimento do motor do carro e sai com a cara toda preta lá de dentro.
Agora é a vez da mamãe. Ela ouviu o que Thomas disse e vira-se resoluta. Como você acha que ela reagiria à visão de seu marido voando sobre a mesa da cozinha?
Na mesma hora ela deixa cair o vidro de geléia e solta um grito de pavor. Talvez ela até precise de um médico, depois que papai voltar e sentar-se em sua cadeira. (Há muito tempo ele deveria ter aprendido a se comportar à mesa!)
Por que será que Thomas e mamãe reagem de forma tão diferente? O que você acha?
É uma questão de hábito. (Grave bem isso!) Mamãe aprendeu que as pessoas não podem voar. Thomas não. Ele ainda não tem muita certeza do que é possível e do que não é possível neste mundo.
Mas e quanto ao mundo propriamente dito, Sofia? Você acha que ele é possível? O mundo também fica pairando livremente no espaço.
O triste de tudo isto é que, à medida que crescemos, nos acostumamos não apenas com a lei da gravidade. Acostumamo-nos, ao mesmo tempo, com o mundo em si.
Ao que tudo indica, ao longo da nossa infância nós perdemos a capacidade de nos admirarmos com as coisas do mundo. Mas com isto perdemos uma coisa essencial – algo de que os filósofos querem nos lembrar. Pois em algum lugar dentro de nós, alguma coisa nos diz que a vida é um grande enigma. E já experimentamos isto, muito antes de aprendermos a pensar.
Para ser mais preciso: embora as questões filosóficas digam respeito a todas as pessoas, nem todas se tornam filósofos. Por diferentes motivos, a maioria delas é tão absorvida pelo cotidiano que a admiração pela vida acaba sendo completamente reprimida. (Elas se alojam bem no fundo do pêlo do coelho, fazem um ninho bem confortável e ficam lá embaixo pelo resto de suas vidas.)
Para as crianças, o mundo – e tudo o que há nele – é uma coisa nova; algo que desperta a admiração. Nem todos os adultos vêem a coisa dessa forma. A maioria deles vivencia o mundo como uma coisa absolutamente normal.
E precisamente neste ponto é que os filósofos constituem uma louvável exceção. Um filósofo nunca é capaz de se habituar completamente com este mundo. Para ele ou para ela o mundo continua a ter algo de incompreensível, algo até de enigmático, de secreto. Os filósofos e as crianças têm, portanto, uma importante característica comum. Podemos dizer que um filósofo permanece a sua vida toda tão receptivo e sensível às coisas quanto um bebê.
E agora você precisa se decidir, querida Sofia: você é uma criança que ainda não se “acostumou” com o mundo? Ou você é uma filósofa capaz de jurar que isto nunca vai lhe acontecer?
Se você simplesmente balança a cabeça e não se sente nem como criança, nem como filósofa, a explicação para isto é que você já se acostumou tanto com o mundo que não consegue mais se surpreender com ele. Neste caso, você corre perigo. E justamente por medida de segurança, para evitar que isto aconteça, é que você está recebendo este curso de filosofia. Eu não quero que justamente você passe a pertencer ao clube dos apáticos e indiferentes. Quero que você viva uma vida instigante.
Você receberá este curso inteiramente grátis. Assim, não haverá devolução de dinheiro, caso você desista de fazê-lo. Se você quiser interromper o curso em determinado momento, também não há problema. Você só precisa deixar uma mensagem para mim na caixa de correio. Esta mensagem pode ser, digamos, uma rã viva. De qualquer forma, tem de ser alguma coisa verde. Afinal, não vamos querer assustar o carteiro.
Vamos resumir: um coelho branco é tirado de dentro de uma cartola. E porque se trata de um coelho muito grande, este truque leva bilhões de anos para acontecer. Todas as crianças nascem bem na ponta dos finos pêlos do coelho. Por isso elas conseguem se encantar com a impossibilidade do número de mágica a que assistem. Mas conforme vão envelhecendo, elas vão se arrastando cada vez mais para o interior da pelagem do coelho. E ficam por lá. Lá embaixo é tão confortável que elas não ousam mais subir até a ponta dos finos pêlos, lá em cima. Só os filósofos têm ousadia para se lançar nesta jornada rumo aos limites da linguagem e da existência. Alguns deles não chegam a concluí-la, mas outros se agarram com força aos pêlos do coelho e berram para as pessoas que estão lá embaixo, no conforto da pelagem, enchendo a barriga de comida e bebida:
— Senhoras e senhores — gritam eles —, estamos flutuando no espaço!
Mas nenhuma das pessoas lá de baixo se interessa pela gritaria dos filósofos.
— Deus do céu! Que caras mais barulhentos! — elas dizem.
E continuam a conversar: será que você poderia me passar a manteiga? Qual a cotação das ações hoje? Qual o preço do tomate? Você ouviu dizer que a Lady Di está grávida de novo?
(…)
CAPÍTULO 3 (EXCERTO)
OS MITOS
A VISÃO MITOLÓGICA DO MUNDO
(Páginas 34-40.)
(…)
Por filosofia entendemos uma forma completamente nova de pensar, surgida na Grécia por volta de 600 a.C. Antes disso, todas as perguntas dos homens haviam sido respondidas pelas diferentes religiões. Essas explicações religiosas tinham sido passadas de geração para geração através dos mitos.
Um mito é a história de deuses e tem por objetivo explicar por que a vida é assim como é.
Ao longo dos milênios, espalhou-se por todo o mundo uma diversificada gama de explicações mitológicas para as questões filosóficas. Os filósofos gregos tentaram provar que tais explicações não eram confiáveis.
A fim de entendermos o pensamento dos primeiros filósofos, precisamos entender primeiro o que significa ter uma visão mitológica do mundo. Vamos tomar por exemplo algumas concepções mitológicas aqui mesmo do Norte da Europa. Não há necessidade de irmos muito longe para mostrar o que queremos.
Na certa você já ouviu falar de Tor e de seu martelo. Antes de o cristianismo chegar à Noruega, acreditava-se aqui no Norte que Tor cruzava os céus numa carruagem puxada por dois bodes. E quando ele agitava seu martelo, produziam-se raios e trovões. A palavra “trovão” – Thor-døn em norueguês – significa originariamente “o rugido de Tor”. Em sueco, a palavra para trovão é åska, na verdade ås-aka – que significa a jornada dos deuses no céu.
Quando troveja e relampeja, geralmente também chove. E a chuva era vital para os camponeses da era dos vikinks. Assim, Tor era adorado como o deus da fertilidade.
A resposta mitológica à questão de saber por que chovia era, portanto, a de que Tor agitava seu martelo. E quando caía a chuva, as sementes germinavam e as plantas cresciam nos campos.
Não se entendia por que as plantas cresciam nos campos e como davam frutos. Mas os camponeses sabiam que isto tinha alguma coisa a ver com a chuva. Além disso, todos acreditavam que a chuva tinha algo a ver com Tor. E isto fazia dele um dos deuses mais importantes do Norte da Europa.
Mas Tor era importante ainda por outro motivo, que tinha algo a ver com toda a ordem do mundo.
Os vikings imaginavam o mundo habitado como uma ilha, constantemente ameaçada por perigos externos. Esta parte habitada do mundo eles chamavam de Midgard, que significa “o reino que está no meio”. Em Midgard também havia Ǻsgard, a morada dos deuses. Fora de Midgard havia Utgard, isto é, o reino de fora, habitado pelos perigosos trolls, que não se cansavam de tentar destruir o mundo com toda a sorte de golpes baixos. Chamamos estes monstros malignos também de “forças do caos”. Na religião nórdica e também na maioria das outras culturas, as pessoas acreditavam que havia um equilíbrio precário entre as forças do bem e do mal.
Uma possibilidade que os trolls tinham de destruir Midgard era roubar Freyja, a deusa da fertilidade. Se conseguissem isto, nada mais cresceria nos campos e as mulheres não teriam mais filhos. Por isso era tão importante que os bons deuses mantivessem os trolls afastados.
E também nesse caso Tor era importante: seu martelo não trazia apenas chuva, mas era também uma arma na luta contra as perigosas forças do caos. O martelo emprestava a Tor um poder quase infinito. Ele podia, por exemplo, atirá-lo nos trolls e matá-los. E também não precisava ter medo de perdê-lo, pois o martelo era como um bumerangue e voltava para seu dono.
Esta era a explicação mitológica para o funcionamento da natureza e para o fato de existir sempre uma luta entre o bem e o mal.
Mas não se tratava apenas de explicações.
As pessoas não podiam simplesmente ficar sentadas de braços cruzados, esperando pela intervenção dos deuses, quando catástrofes tais como secas e epidemias as ameaçavam. As pessoas precisavam elas mesmas participar dessa luta contra o mal. E isto elas faziam através de toda a sorte de cerimônias ou rituais religiosos.
O principal ritual religioso na Antiguidade nórdica era o sacrifício. Oferecer alguma coisa em sacrifício a um deus significava aumentar o seu poder. As pessoas precisavam, por exemplo, oferecer sacrifícios aos deuses, a fim de que eles se fortalecessem o suficiente para vencer as forças do mal. Isto podia ser feito, por exemplo, sacrificando-se um animal. Presume-se que a Tor eram sacrificados sobretudo bodes. Para Odin sacrificavam-se às vezes também pessoas.
O mito mais conhecido na Noruega é narrado no poema Trymskveda. Ele nos conta que Tor adormeceu e que, quando acordou, seu martelo tinha desaparecido. Tor ficou tão furioso que suas mãos tremeram e sua barba estremeceu. Acompanhado de seu homem de confiança, Loki, Tor foi até Freyja para lhe pedir emprestadas suas asas, a fim de que Loki pudesse voar até Jotunheim e descobrir se os trolls tinham roubado o martelo de Tor. Lá chegando, Loki encontrou Trym, o rei dos trolls, que logo foi se gabando por ter enterrado o martelo cinco quilômetros debaixo da terra. E, para completar, Trym disse que os deuses só teriam o martelo de volta se Freyja se casasse com ele.
Você está acompanhando, Sofia? Subitamente, os deuses do bem estão diante de um drama jamais visto: um drama envolvendo um refém. Os trolls têm agora em seu poder a mais importante arma de defesa dos deuses, e esta situação é absolutamente inaceitável. Enquanto os trolls estiverem com o martelo de Tor, seu poder sobre os mundos dos deuses e dos homens será irrestrito. Para devolver o martelo eles exigem Freyja. Mas esta troca não é possível. Se os deuses entregarem a deusa da fertilidade, que protege todas as formas de vida, então o verde desaparecerá dos pastos, e deuses e homens acabarão morrendo. Não há, portanto, como avançar ou como retroceder nesta situação. Para você entender o que estou dizendo, imagine um grupo terrorista que ameaça explodir uma bomba atômica no centro de Londres ou de Paris, caso suas perigosas exigências não sejam cumpridas.
Continuando, o mito nos diz que Loki volta para Ǻsgard e pede a Freyja que se enfeite de noiva, pois ela terá de se casar com o troll (infelizmente, infelizmente!). Freyja fica furiosa e diz que, se ela se casar com um troll, as pessoas vão pensar que ela é louca por homens.
E então o deus Heimdal tem uma boa idéia. Ele sugere que Tor se fantasie de noiva. Prendendo os cabelos e amarrando duas pedras no lugar dos seios, ele ficaria parecido com uma mulher. É claro que Tor não fica muito entusiasmado com esta idéia, mas acaba reconhecendo que só assim os deuses teriam uma chance de reaver o martelo. No fim, Tor é fantasiado de noiva e Loki o acompanha como dama de honra. — E assim levamos não apenas uma, mas duas mulheres para os trolls — diz Loki em tom de brincadeira.
Se quisermos formular a coisa de uma forma mais moderna, podemos chamar Tor e Loki de um “comando antiterror” dos deuses. Fantasiados de mulher, eles pretendem se infiltrar na fortaleza dos trolls e reaver o martelo de Tor.
Logo que eles chegam a Jotunheim, os trolls iniciam todos os preparativos para as bodas. Na festa, porém, a noiva – isto é, Tor – come um boi inteiro, oito salmões e bebe três barris de cerveja. Trym fica admirado com o que vê. Por um triz o disfarce do comando antiterror não é descoberto. Mas Loki consegue salvá-los desse perigo. Ele conta que Freyja não comia havia oito dias, tão ansiosa que ela estava para chegar a Jotunheim.
Quando Trym ergue o véu da noiva para beijá-la, ele recua ao se deparar com o olhar severo de Tor. Mas também desta vez Loki consegue contornar a situação. Ele conta que a noiva havia sete noites não conseguia dormir de alegria com o casamento. Então Trym ordena que tragam o martelo e que ele seja colocado no colo da noiva durante a cerimônia de casamento.
Conta o mito que quando Tor viu o martelo no seu colo, ele deu uma boa risada. Primeiro matou Trym e depois todos os outros trolls de Jotunheim. E, assim, o terrível drama envolvendo um refém teve um final feliz. Mais uma vez, Tor – o Batman ou o James Bond dos deuses – tinha vencido as forças do mal.
Bem, acho que podemos parar por aqui com a história do mito, Sofia. Mas o que será que este mito em particular realmente quer nos dizer? É claro que ele não foi escrito em versos apenas para divertir. Também este mito quer explicar alguma coisa. E aqui vai uma interpretação possível:
Quando a seca assolava uma região, as pessoas precisavam de uma explicação para a total ausência de chuva. Não seria porque os trolls tinham roubado o martelo de Tor?
Podemos imaginar também que este mito tenta explicar a alternância das estações do ano: no inverno a natureza está morta, porque o martelo de Tor está em Jotunheim. Mas na primavera Tor consegue reavê-lo. E, assim, os mitos tentam explicar às pessoas algo que elas não conseguem entender.
Mas as pessoas não se contentavam apenas com explicações como esta que acabamos de ouvir. Elas também tentavam participar desses acontecimentos tão importantes para suas vidas. E o faziam através de diferentes rituais religiosos, que guardavam uma relação com os mitos. Assim, podemos imaginar que no caso de seca, ou de uma colheita ruim, as pessoas encenassem um drama que recontasse a história do mito. Talvez um homem da aldeia se fantasiasse de noiva usando pedras no lugar dos seios, a fim de reaver o martelo que estava em poder dos trolls. Era esta a forma que as pessoas viam de fazer alguma coisa para atrair chuva e fazer as sementes germinarem nos campos.
Embora não saibamos exatamente como tudo acontecia, uma coisa é certa: há muitos exemplos de outras partes do mundo que nos mostram que as pessoas encenavam um “mito das estações do ano”, a fim de acelerar os processos naturais.
O que fizemos foi apenas um breve passeio pelo mundo dos mitos nórdicos. Há inúmeros outros mitos sobre Tor e Odin, Frey e Freyja, Hod e Balder, e sobre muitas, muitas outras divindades. Visões míticas como estas existiam no mundo todo, muito antes de os filósofos começarem a questioná-las. Pois os gregos também tinham a sua visão mitológica do mundo, quando surgiram os primeiros filósofos. Ao longo dos séculos, as histórias dos deuses foram sendo passadas de geração em geração. Na Grécia, os deuses eram chamados de Zeus e Apolo, Hera e Atena, Dioniso e Asclépio, Heracles e Hefaístos, apenas para citar alguns nomes.
Por volta de 700 a.C., Homero e Hesíodo registraram por escrito boa parte do tesouro da mitologia grega. Isto levou a uma situação completamente nova. É que, a partir do momento em que os mitos foram colocados no papel, já se podia discutir sobre eles.
Os primeiros filósofos gregos criticaram a mitologia descrita por Homero, porque para eles os deuses ali representados tinham muitas semelhanças com os homens. De fato, eles eram exatamente tão egoístas e traiçoeiros como qualquer um de nós. Pela primeira vez na história da humanidade foi dito claramente que os mitos talvez não passassem de frutos da imaginação do homem.
Um exemplo dessa crítica aos mitos pode ser encontrado no filósofo Xenófanes, nascido por volta de 570 a.C. Para ele, as pessoas teriam criado os deuses à sua própria imagem e semelhança: “Os mortais acreditam que os deuses nascem, falam e se vestem de forma semelhante à sua própria… Os etíopes imaginam seus deuses pretos e de nariz achatado; os tracianos, ao contrário, os vêem ruivos e de olhos azuis… Se as vacas, cavalos ou leões tivessem mãos e com elas pudessem pintar e produzir obras como os homens, eles criariam e representariam suas divindades à sua imagem e semelhança: os deuses dos cavalos teriam feições eqüinas, os das vacas se pareceriam com elas, e assim por diante”.
Nesta época, os gregos fundaram muitas cidades-Estados na Grécia e em suas colônias no Sul da Itália e na Ásia Menor. Nelas, os escravos faziam todo o serviço braçal e os cidadãos livres podiam dedicar-se exclusivamente à política e à cultura. Sob tais condições de vida, o pensamento humano deu um salto: sem depender de nada nem de ninguém, cada indivíduo podia agora opinar sobre como a sociedade devia ser organizada. Desse modo, o indivíduo podia formular suas questões filosóficas sem ter que para isso recorrer à tradição dos mitos.
Dizemos que naquela época ocorreu a evolução de uma forma de pensar atrelada ao mito para um pensamento construído sobre a experiência e a razão. O objetivo dos primeiros filósofos gregos era o de encontrar explicações naturais para os processos da natureza.
CAPÍTULO 4 (EXCERTO)
OS FILÓSOFOS DA NATUREZA
O PROJETO DOS FILÓSOFOS
(Página 43.)
Aqui estamos nós novamente! É melhor a gente partir diretamente para a lição de hoje, sem desviar para coelhinhos brancos ou coisa parecida.
Vou contar para você, em linhas gerais, como as pessoas têm refletido sobre questões filosóficas desde a Antiguidade até os dias de hoje. E tudo isto seguindo a ordem dos acontecimentos.
Como a maioria dos filósofos viveu em outra época – e provavelmente também numa cultura completamente diferente da nossa -, vale a pena examinar o projeto de cada filósofo. Quero dizer com isto que precisamos tentar entender do que precisamente se ocuparam estes filósofos. Um filósofo pode se perguntar, por exemplo, como surgem as plantas e os animais. Outro pode querer descobrir se há um Deus ou se as plantas têm uma alma imortal.
Depois de termos definido qual é o projeto de determinado filósofo, será mais fácil acompanhar seu pensamento, pois nenhum filósofo pode se ocupar de todas as questões concernentes à filosofia.
Estou sempre falando de filósofos e de seus pensamentos, e isto tem uma razão de ser. É que também a história da filosofia está marcada pela atuação de homens. De fato, em toda a história da humanidade a mulher foi subjugada tanto como ser feminino quanto como ser pensante. E isto é ruim, pois desta forma se perderam muitas experiências importantes. Somente no nosso século [XX] é que as mulheres entram de fato para a história da filosofia.
Não vou passar lição de casa. Quer dizer, aqui você não vai ter que resolver complicadas tarefas de matemática. De vez em quando, porém, vou pedir a você um pequeno exercício.
Se você está de acordo com estas condições, podemos começar.
OS FILÓSOFOS DA NATUREZA
(Páginas 43-45.)
Os primeiros filósofos gregos são freqüentemente chamados de “filósofos da natureza”, porque se interessavam sobretudo pela natureza e pelos processos naturais.
Já tivemos oportunidade de nos perguntar de onde vêm todas as coisas. Hoje em dia muitas pessoas acreditam, umas mais, outras menos, que em algum momento tudo surgiu do nada. Este pensamento não era muito difundido entre os gregos. Por alguma razão, eles sempre partiam do fato de que sempre existiu “alguma coisa”.
A grande questão, portanto, não era saber como tudo surgiu do nada. O que instigava os gregos era saber como a água podia se transformar em peixes vivos, ou como a terra sem vida podia se transformar em árvores frondosas ou em flores multicoloridas. Tudo isto sem falar em como um bebê podia sair do corpo de sua mãe!
Os filósofos viam com seus próprios olhos que havia constantes transformações na natureza. Mas como estas transformações eram possíveis? Como uma substância podia se transformar em algo completamente diferente, numa forma de vida, por exemplo?
Os primeiros filósofos tinham uma coisa em comum: eles acreditavam que determinada substância básica estava por trás de todas essas transformações. Não é muito fácil explicar como eles chegaram a esta idéia. Sabemos apenas que ela se desenvolveu a partir da noção de que deveria haver uma substância básica, que fosse a causa oculta, por assim dizer, de todas as transformações da natureza.
Para nós, o mais interessante não é saber que respostas esses primeiros filósofos encontraram. O interessante é saber que perguntas eles fizeram e que tipo de resposta buscavam. Mais importante para nós é saber como, e não o que eles pensavam exatamente.
Sabemos que eles colocavam questões referentes às transformações que podiam observar na natureza, na tentativa de descobrir algumas leis naturais que fossem eternas. Eles queriam entender os fenômenos naturais, sem ter que para isto recorrer aos mitos. Interessava-lhes, sobretudo, tentar entender por si mesmos os processos naturais, por meio da observação da natureza. E isto era algo completamente diferente da tentativa de explicar raios e trovões, inverno e primavera por referência a acontecimentos no mundo dos deuses.
E assim a filosofia se libertou da religião. Podemos dizer que os filósofos da natureza deram os primeiros passos na direção de uma forma científica de pensar. E com isto deram o pontapé inicial para todas as ciências naturais, surgidas posteriormente.
A maior parte de tudo o que os filósofos da natureza disseram e escreveram ficou perdida para a posteridade. E a maior parte do pouco que sabemos está nos escritos de Aristóteles, que viveu duzentos anos depois dos primeiros filósofos. Mas Aristóteles apenas sintetiza os resultados a que tinham chegado os filósofos que viveram antes dele. Isto significa que nem sempre é possível sabermos como eles chegaram às suas conclusões. O que sabemos, porém, é suficiente para podermos afirmar que o projeto dos primeiros filósofos gregos englobava questões relacionadas à substância básica por detrás das transformações ocorridas na natureza.
TRÊS FILÓSOFOS DE MILETO
(Páginas 45-46.)
O primeiro filósofo de que temos notícia é Tales, da colônia grega de Mileto, na Ásia Menor. Tales foi um homem que viajou muito. Entre outras coisas, dizem que certa vez, no Egito, ele calculou a altura de uma pirâmide medindo a sombra da pirâmide no exato momento em que sua própria sombra tinha a mesma medida de sua altura. Dizem ainda que em 585 a.C. ele previu um eclipse solar.
Tales considerava a água a origem de todas as coisas. Não sabemos o que exatamente ele queria dizer com isto. Talvez ele quisesse dizer que toda forma de vida surge na água e a ela retorna quando se desfaz.
Quando esteve no Egito, certamente ele pôde observar como os campos inundados ficavam fecundos depois que as águas do Nilo retornavam ao seu delta. É possível que ele tenha observado também que, depois da chuva, apareciam rãs e minhocas.
Além disso, é muito provável que Tales tenha se perguntado como a água podia se transformar em gelo e em vapor, para depois voltar a ser água.
Segundo dizem, Tales teria afirmado que “todas as coisas estão cheias de deuses”. Também aqui só podemos tentar adivinhar o que ele queria dizer. Talvez ele tenha chegado à conclusão de que a terra escura era a origem de tudo, de flores e sementes até abelhas e baratas. E é possível, então, que ele tenha imaginado a terra cheia de pequenos e invisíveis “germens da vida”. De qualquer forma, é certo que com esta afirmação ele não estava pensando nos deuses de Homero.
O próximo filósofo de que temos notícia é Anaximandro, que também viveu em Mileto. Ele achava que nosso mundo era apenas um dos muitos mundos que surgem de alguma coisa e se dissolvem nesta alguma coisa que ele chamava de infinito. É difícil dizer o que ele entendia por infinito. Mas uma coisa é certa: ao contrário de Tales, Anaximandro não imaginou uma substância determinada. Talvez ele quisesse dizer que aquilo a partir do qual tudo surge é algo completamente diferente do que é criado. E como tudo que é criado é também finito, o que está antes e depois deste finito tem de ser infinito. É claro que, nesse sentido, a substância básica não podia ser algo tão trivial quanto a água.
Um terceiro filósofo de Mileto foi Anaxímenes (c. 550-526 a.C.). Para ele, o ar ou o sopro de ar era a substância básica de todas as coisas.
É claro que Anaxímenes conhecia a teoria da água de Tales. Mas de onde vinha a água? Para Anaxímenes, a água era o ar condensado. Podemos observar que, quando chove, o ar se comprime até virar água. Anaxímenes achava que se a água fosse ainda mais comprimida ela se transformaria em terra. Talvez ele tenha visto que depois do degelo aparecem a terra e a areia. Para ele, o fogo era o ar rarefeito. Na visão de Anaxímenes, portanto, terra, água e fogo surgiam do ar.
Da terra e da água até as plantas dos campos era só um pulinho. Talvez Anaxímenes acreditasse que a terra, o ar, o fogo e a água tivessem necessariamente que estar presentes para que a vida pudesse surgir. Mas o ponto de partida propriamente dito era o ar. Ele compartilhava, portanto, da opinião de Tales, segundo a qual uma substância básica subjazia a todas as transformações da natureza.
NADA PODE SURGIR DO NADA
(Páginas 46-47.)
Os três filósofos de Mileto acreditavam em uma – e só uma – substância primordial, a partir da qual tudo se originava. Mas como uma substância era capaz de subitamente se modificar e se transformar em algo completamente diferente? Vamos chamar este problema de o problema da transformação.
A partir de 500 a.C., aproximadamente, viveram na colônia grega de Eléia, no Sul da Itália, alguns filósofos. Esses “eleatas” interessavam-se por questões como esta que acabamos de mencionar. O mais conhecido entre eles foi Parmênides (c. 540-480 a.C.).
Parmênides acreditava que tudo o que existe sempre existiu. Este era um pensamento muito corrente entre os gregos, para quem era praticamente evidente que tudo o que existe no mundo sempre existiu. Nada pode surgir do nada, dizia Parmênides. E nada que existe pode se transformar em nada.
Mas Parmênides foi mais longe do que a maioria dos outros. Ele considerava totalmente impossível qualquer transformação real das coisas. Nada pode se transformar em algo diferente do que já é.
É claro que Parmênides sabia das constantes transformações que ocorrem na natureza. Mas ele não conseguia harmonizar isto com aquilo que sua razão lhe dizia. E quando era forçado a decidir se confiava nos sentidos ou na razão, decidia-se pela razão.
Todos nós conhecemos a frase “Só acredito vendo”. Mas Parmênides não acreditava nem quando via. Ele dizia que os sentidos nos fornecem uma visão enganosa do mundo; uma visão que não está em conformidade com o que nos diz a razão. Como filósofo, ele achava que sua tarefa consistia em desvendar todas as formas de “ilusão dos sentidos”.
Esta forte crença na razão humana é chamada de racionalismo. Um racionalista é aquele que tem grande confiança na razão humana enquanto fonte de conhecimento do mundo.
TUDO FLUI
(Páginas 47-48.)
Na mesma época de Parmênides viveu Heráclito (c. 540-480 a.C.) de Éfeso, na Ásia Menor. Para ele, as constantes transformações eram justamente a característica mais fundamental da natureza. Poderíamos talvez dizer que Heráclito, mais do que Parmênides, confiava no que os sentidos lhe diziam.
“Tudo flui”, dizia Heráclito. Tudo está em movimento e nada dura para sempre. Por esta razão, “não podemos entrar duas vezes no mesmo rio”. Isto porque quando entro pela segunda vez no rio, tanto eu quanto ele já estamos mudados.
Heráclito também nos chama a atenção para o fato de que o mundo está impregnado por constantes opostos. Se nunca ficássemos doentes, não saberíamos o que significa a saúde. Se não tivéssemos fome, não experimentaríamos a agradável sensação de saciá-la depois de uma refeição. Se nunca houvesse guerras, não saberíamos o valor da paz, e se nunca houvesse inverno, não poderíamos assistir à chegada da primavera.
Tanto o bem quanto o mal são necessários ao todo, dizia Heráclito. Sem a constante interação dos opostos o mundo deixaria de existir.
“Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, satisfação e fome”, dizia ele. Ele emprega nesta passagem a palavra “Deus”, mas é claro que com isto não se refere aos deuses de que falavam os mitos. Para Heráclito, Deus – ou o elemento divino – é algo que abrange o mundo inteiro. Para ele, Deus se manifesta na natureza em constante transformação e crivada de opostos.
No lugar da palavra “Deus” ele emprega com freqüência a palavra grega logos, que significa razão. Mesmo quando nós, homens, não pensamos da mesma forma ou não possuímos a mesma razão, deve haver – segundo Heráclito – uma espécie de “razão universal”, que dirige todos os fenômenos da natureza. Esta razão universal – ou “lei universal” – é a mesma para todos; é a partir dela que todos se orientam. E não obstante, a maioria das pessoas vive segundo sua própria razão, dizia Heráclito. Ele não considerava muito as pessoas que o cercavam. Para ele, a opinião da maioria delas não passava de “brincadeira de criança”.
Em todas as transformações e opostos da natureza Heráclito via, portanto, uma unidade, um todo. Esta “alguma coisa” que era subjacente a tudo ele chamava de “Deus” ou de “logos”.
QUATRO ELEMENTOS BÁSICOS
(Páginas 48-51.)
Sob certo aspecto, Parmênides e Heráclito pensavam de maneira totalmente oposta. A razão de Parmênides deixava claro que nada pode mudar. Mas as experiências sensoriais de Heráclito deixavam igualmente claro que a natureza está em constante transformação. Qual dos dois tinha razão? Será que devemos confiar no que nos diz a razão, ou será que devemos confiar nos sentidos?
Tanto Parmênides quanto Heráclito fazem duas afirmações:
Parmênides diz:
a) que nada pode mudar
e
b) que, por isso mesmo, as impressões dos sentidos não são dignas de confiança.
Heráclito, ao contrário, afirma:
a) que tudo se transforma (“tudo flui”)
e
b) que as impressões dos sentidos são confiáveis.
Desacordo maior não poderia haver entre dois filósofos! Mas qual dos dois tinha razão? Fica a cargo de Empédocles (c. 494-434 a.C.) apontar o caminho que tiraria a filosofia do impasse a que ela tinha chegado. Ele achava que tanto Parmênides quanto Heráclito tinham razão numa de suas afirmações, mas estavam totalmente enganados quanto à outra.
Para Empédocles, a grande discordância estava no fato de que ambos os filósofos tinham assumido como ponto de partida o fato quase inquestionável de que haveria apenas um elemento básico. Se isto fosse verdade, o abismo entre o que a razão nos diz e o que nossos sentidos percebem seria intransponível.
Naturalmente, a água não pode se transformar num peixe ou numa borboleta. A água em si não pode se transformar. Água pura será água pura por toda a eternidade. Sob este aspecto, Parmênides tinha razão quando afirmava que nada se transformava. Ao mesmo tempo, Empédocles concordava com Heráclito quando este dizia que devemos confiar no que dizem os nossos sentidos. Precisamos acreditar no que vemos, e o que vemos é justamente o fato de que a natureza está em constante transformação.
Empédocles chegou à conclusão de que a noção de um único elemento primordial tinha que ser refutada. Nem a água nem o ar, sozinhos, podiam se transformar num buquê de rosas ou numa borboleta. Para a natureza, portanto, seria impossível produzir alguma coisa a partir de um único elemento básico.
Empédocles acreditava que a natureza possuía ao todo quatro elementos básicos, também chamados por ele de “raízes”. Estes quatro elementos eram a terra, o ar, o fogo e a água.
Todas as transformações da natureza seriam resultado da combinação desses quatro elementos, que, depois, novamente se separavam um do outro. Pois tudo consiste em terra, ar, fogo e água, só que em diferentes proporções de mistura. Quando uma flor ou um animal morrem, esses quatro elementos voltam a se separar. Essas transformações podem ser percebidas a olho nu. No entanto, terra, ar, fogo e água continuam a ser o que são, inalterados, incólumes, independentes de todas as misturas de que façam parte. Não é certo, portanto, afirmar que “tudo” muda. Basicamente, nada se altera. O que acontece é que esses quatro elementos diferentes simplesmente se combinam e depois voltam a se separar para então se combinarem novamente.
Talvez possamos fazer aqui uma comparação com o trabalho de um pintor. Se ele tiver à sua disposição apenas uma cor – o vermelho, por exemplo -, não poderá pintar árvores verdes. Mas se ele tiver amarelo, vermelho, azul e preto, então poderá criar centenas de cores diferentes, porque poderá combinar as cores em diferentes proporções.
Um exemplo do que ocorre na cozinha nos mostra a mesma coisa. Se eu tiver apenas farinha, terei de ser mágico para fazer dela um bolo. Mas se eu tiver ovos, farinha, leite e açúcar, poderei assar diferentes bolos a partir desses quatro elementos básicos.
E não é por acaso que Empédocles considerava precisamente a terra, o ar, o fogo e a água as “raízes” da natureza. Antes dele, outros filósofos tinham tentado provar que o elemento básico teria de ser ou a água, ou o ar, ou ainda o fogo. Tales e Anaxímenes tinham enfatizado a importância da água e do ar como elementos da natureza. Os gregos também consideravam o fogo muito importante. Eles viam, por exemplo, a importância do Sol para todas as formas de vida na natureza e é claro que também sabiam do calor do corpo de homens e animais.
Talvez Empédocles tenha visto um pedaço de madeira queimando. Quando isto ocorre, alguma coisa se desintegra. Podemos ouvir a madeira estalar e crepitar. É a água. Alguma coisa vira fumaça. É o ar. O fogo é o que não vemos. E quando as chamas se apagam, sobra alguma coisa. São as cinzas, ou a terra.
Depois que Empédocles mostrou que as transformações da natureza surgem da combinação de quatro “raízes” que depois se separam, uma questão continuou em aberto: o que faz com que os elementos se combinem para dar origem a uma nova vida? E o que é responsável pelo fato de uma mistura – uma flor, por exemplo – voltar a se desintegrar?
Empédocles dizia que na natureza atuavam duas forças, por ele chamadas de amor e de disputa. O que une as coisas é o amor; o que as separa é a disputa.
Empédocles diferencia, portanto, elemento e força. Vale a pena gravar isto na memória. Até hoje a ciência estabelece uma diferença entre elemento básico e forças naturais. A ciência moderna acredita poder explicar todos os processos da natureza através de uma interação entre os diferentes elementos básicos e algumas poucas forças naturais.
Empédocles também refletiu um pouco sobre a questão de saber o que ocorre quando percebemos alguma coisa. Como posso “ver” uma flor, por exemplo? O que acontece neste caso? Você já pensou nisso, Sofia? Se não pensou, está aí uma boa oportunidade para fazê-lo.
Empédocles acreditava que, como todas as outras coisas da natureza, também nossos olhos são compostos de terra, ar, fogo e água. Assim, a terra contida em meus olhos perceberia o componente terra no objeto visto; o ar, o componente ar; o fogo, o componente fogo; e a água, o componente água. Se faltasse aos olhos um desses elementos, eu não poderia enxergar a natureza em sua totalidade.
UM POUCO DE TUDO EM TUDO
(Páginas 51-52.)
Outro filósofo que não se dava por satisfeito com a idéia de que determinado elemento básico – a água, por exemplo – podia se transformar em tudo o que vemos na natureza foi Anaxágoras (500-428 a.C.). Ele também não aceitava a idéia de que terra, ar, fogo ou água pudessem se transformar em ossos, pele ou cabelos.
Anaxágoras achava que a natureza era composta por uma infinidade de partículas minúsculas, invisíveis a olho nu. Tudo pode ser dividido em partes ainda menores, mas mesmo na menor das partes existe um pouco de tudo. Assim, se pele e cabelo não podem surgir de alguma outra coisa, então eles devem estar presentes também no leite que bebemos e nas comidas que comemos.
Dois exemplos atuais talvez nos mostrem o que Anaxágoras queria dizer. Hoje em dia, com a tecnologia do laser, podemos produzir os chamados hologramas. Se tomamos um holograma que representa um carro, por exemplo, e se este holograma é depois fragmentado, ainda assim continuaremos a ver a imagem do carro inteiro, mesmo que tenhamos na mão apenas a parte do holograma que antes mostrava o pára-choques. Isto porque todo o carro está presente em cada uma das minúsculas partes.
De certa forma, nosso corpo também é construído dessa forma. Se retiro uma célula da pele de meu dedo, o núcleo desta célula contém não apenas a descrição da minha pele. Na mesma célula estão também a descrição dos meus olhos, da cor da minha pele, do número e do formato dos meus dedos, etc. Em cada uma das células existe uma descrição detalhada da estrutura de todas as outras células do meu corpo. Em cada uma das células existe, portanto, “um pouco de tudo”. O todo está também na menor das partes.
Anaxágoras chamava estas partes minúsculas que traziam em si um pouco de tudo, de “sementes” ou “germens”.
Ainda nos lembramos de que Empédocles achava que o amor unia as partes para formar o todo. Anaxágoras também imaginou um tipo de força que seria responsável, por assim dizer, pela ordem e pela criação de homens, animais, flores e árvores. A esta força ele deu o nome de inteligência.
O que há de interessante ainda sobre Anaxágoras é o fato de ele ter sido o primeiro filósofo de Atenas, cuja vida conhecemos em parte. Natural da Ásia Menor, aos quarenta anos aproximadamente ele se mudou para Atenas. Ali foi acusado de ateísmo e teve que deixar novamente a cidade. Dentre outras coisas, ele disse que o Sol não era um deus, mas uma massa incandescente, maior do que a península do Peloponeso.
Anaxágoras interessava-se muito por astronomia. Ele acreditava que todos os corpos celestes eram feitos da mesma matéria que compunha a Terra. E chegou a esta convicção depois de ter examinado um meteorito. Por isto seria de se pensar que em outros planetas houvesse vida, dizia ele. Além disso, Anaxágoras explicou que a Lua não possuía luz própria, mas que tirava seu brilho da Terra. Finalmente, ele explicou como surgiam os eclipses.
CAPÍTULO 5 (EXCERTO)
DEMÓCRITO
(Páginas 57-60. Os textos entre colchetes são de Pausa para a Filosofia.)
A TEORIA ATÔMICA
Que bom poder falar com você novamente, Sofia! Hoje vou lhe contar sobre o último grande filósofo da natureza. Ele se chamava Demócrito (c. 460-370 a.C.) e era natural da cidade portuária de Abdera, na costa norte do mar Egeu. Se você conseguiu responder à pergunta sobre as peças de Lego [Por que o Lego é o brinquedo mais genial do mundo?], certamente não terá dificuldade para entender o projeto deste filósofo.
Demócrito concordava com seus antecessores num ponto: as transformações que se podiam observar na natureza não significavam que algo realmente “se transformava”. Ele presumiu, então, que todas as coisas eram constituídas por uma infinidade de pedrinhas minúsculas, invisíveis, cada uma delas sendo eterna e imutável. A estas unidades mínimas Demócrito deu o nome de átomos.
A palavra “átomo” significa “indivisível”. Para Demócrito era muito importante estabelecer que as unidades constituintes de todas as coisas não podiam ser divididas em unidades ainda menores. Isso porque se os átomos também fossem passíveis de desintegração e pudessem ser divididos em unidades ainda menores, a natureza acabaria por se diluir totalmente. Como uma sopa que vai ficando cada vez mais rala.
Além disso, as “pedrinhas” constituintes da natureza tinham que ser eternas, pois nada pode surgir do nada. Neste ponto, Demócrito concordava com Parmênides e com os eleatas. Para ele, os átomos eram unidades firmes e sólidas. Só não podiam ser iguais, pois se todos os átomos fossem iguais não haveria explicação para o fato de eles se combinarem para formar de papoulas a oliveiras, do pêlo de um bode ao cabelo humano.
Demócrito achava que existia na natureza uma infinidade de átomos diferentes: alguns arredondados e lisos, outros irregulares e retorcidos. E precisamente porque suas formas eram tão irregulares é que eles podiam ser combinados para dar origem a corpos os mais diversos. Independentemente, porém, do número de átomos e de sua diversidade, todos eles seriam eternos, imutáveis e indivisíveis.
Se um corpo – por exemplo, de uma árvore ou de um animal – morre e se decompõe, seus átomos se espalham e podem ser reaproveitados para dar origem a outros corpos. Pois se é verdade que os átomos se movimentam no espaço, também é verdade que eles possuem diferentes “ganchos” e “engates” e podem ser novamente reaproveitados na composição de outras coisas que vemos ao nosso redor.
E agora acho que você não tem mais dúvida sobre o que eu queria dizer com as peças de Lego, não é? Elas possuem aproximadamente todas as características que Demócrito descreveu para os átomos. E é exatamente por isso que se prestam tão bem à construção de qualquer coisa. Em primeiro lugar, são indivisíveis. Em segundo, diferem entre na si na forma e no tamanho, são compactas e impermeáveis. Além disso, as peças de Lego possuem ganchos e engates, por assim dizer, o que permite que sejam combinadas na construção de todo tipo de figura. Tais ligações podem ser desfeitas para que as mesmas peças possam ser reaproveitadas na construção de novos objetos.
Justamente por possibilitarem seu reaproveitamento é que as peças de Lego se tornaram tão populares. A mesma peça de Lego pode servir hoje para a construção de um carro, amanhã para um castelo. Ainda por cima, podemos dizer que são “eternas”. As crianças de hoje podem brincar com as mesmas pedras que fizeram a diversão de seus pais quando eles ainda eram crianças.
É claro que também podemos construir objetos de barro. Mas o barro nem sempre pode ser reaproveitado, pois se desfaz em partes cada vez menores, até se reduzir a pó. E estas minúsculas partículas de argila não podem ser reunidas para formar novos objetos.
Hoje em dia podemos dizer que a teoria atômica de Demócrito estava quase perfeita. De fato, a natureza é composta de diferentes átomos, que se ligam a outros para depois se separarem novamente. Um átomo de hidrogênio presente numa célula da pontinha do meu nariz pode ter pertencido um dia à tromba de um elefante. Um átomo de carbono que está hoje no músculo do meu coração provavelmente esteve um dia na cauda de um dinossauro.
Hoje em dia, porém, a ciência descobriu que os átomos podem ser divididos em partículas ainda menores, as “partículas elementares”. São elas os prótons, nêutrons e elétrons. E talvez estas partículas também possam ser divididas em outras, menores ainda. Mas os físicos são unânimes em achar que em alguma parte deve haver um limite para esta divisão. Deve haver as chamadas partículas mínimas, a partir das quais toda a natureza se constrói.
Demócrito não teve acesso aos aparelhos eletrônicos de nossa época. Na verdade, sua única ferramenta foi a sua razão. Mas a razão não lhe deixou escolha. Se aceitamos que nada pode se transformar, que nada surge do nada e que nada desaparece, então a natureza simplesmente tem de ser composta por pecinhas minúsculas, que se combinam e depois se separam.
Demócrito não acreditava numa “força” ou numa “inteligência” que pudessem intervir nos processos naturais. As unidas coisas que existem são os átomos e o vácuo, dizia ele. E como ele só acreditava no “material”, nós o chamamos de materialista.
Por detrás do movimento dos átomos, portanto, não havia determinada “intenção”. Mas isto não significa que tudo o que acontece é um “acaso”, pois tudo é regido pelas inalteráveis leis da natureza. Demócrito acreditava que tudo o que acontece tem uma causa natural; uma causa que é inerente à própria coisa. Conta-se que ele teria dito que preferiria descobrir uma lei natural a se tornar rei da Pérsia.
Para Demócrito, a teoria atômica explicava também nossas percepções sensoriais. Quando percebemos alguma coisa, isto se deve ao movimento dos átomos no espaço. Quando vejo a Lua, isto acontece porque os “átomos da Lua” tocam os meus olhos.
Mas o que acontece com a consciência? Está aí uma coisa que não pode ser composta de átomos, quer dizer, de “coisas” materiais, certo? Errado. Demócrito acreditava que a alma era composta por alguns átomos particularmente arredondados e lisos, os “átomos da alma”. Quando uma pessoa morre, os átomos de sua alma espalham-se para todas as direções e podem se agregar a outra alma, no momento mesmo em que esta é formada.
Isto significa que o homem não possui uma alma imortal. E este é um pensamento compartilhado por muitas pessoas em nossos dias. Como Demócrito, elas acreditam que a alma está intimamente relacionada ao cérebro e que não podemos possuir qualquer forma de consciência quando o cérebro deixa de funcionar e degenera.
Com sua teoria atômica, Demócrito coloca um ponto final, pelo menos temporariamente, na filosofia natural grega. Ele concorda com Heráclito em que tudo “flui” na natureza, pois as formas vão e vêm. Por detrás de tudo o que flui, porém, há algo de eterno e de imutável, que não flui. A isto ele dá o nome de átomo.
Enquanto lia, Sofia olhava constantemente pela janela para ver se o misterioso escritor daquelas páginas aparecia para colocar outra carta na caixa de correio. Agora, terminada a leitura, Sofia tinha os olhos fixos em algum ponto da rua, mergulhada em pensamentos.
Ela achou o raciocínio de Demócrito ao mesmo tempo muito simples e incrivelmente engenhoso. Ele tinha encontrado a solução para os problemas do “elemento básico” e das “transformações”. Esta questão era tão complicada que os filósofos tinham levado gerações quebrando a cabeça com ela. No fim, Demócrito resolveu todo o problema, usando para isto apenas a sua razão.
Sofia quase não conseguiu conter um sorriso. Tinha que ser verdade que a natureza era composta de partículas minúsculas que nunca se modificavam. Ao mesmo tempo, Heráclito também tinha razão ao dizer que todas a formas da natureza “fluem”. Isto porque todos os homens e todos os bichos morrem, e até mesmo uma montanha vai se desintegrando aos poucos. O importante, porém, é que até esta montanha é composta de minúsculas partes, indivisíveis, que nunca se desintegram.
Ao mesmo tempo, Demócrito colocou ainda outras questões para a reflexão. Por exemplo, ao dizer que tudo acontece mecanicamente. Ao contrário de Empédocles e Anaxágoras, ele não acreditava na interferência de forças espirituais sobre a vida. Além disso, Demócrito não acreditava que o homem possuía uma alma imortal.
Será que ela, Sofia, podia realmente dizer que Demócrito tinha razão?
Isto ela não sabia. Mas ela estava só no começo de seu curso de filosofia.
CAPÍTULO 6 (EXCERTO)
O DESTINO
O DESTINO
(Páginas 65-66.)
Bom dia mais uma vez, minha cara Sofia! Por precaução, quero dizer expressamente que você nunca deve tentar me seguir. Nós nos encontraremos algum dia, mas sou eu quem vai estabelecer quando e onde isto deve acontecer.
É isto. Você não vai querer ser desobediente, vai?
Bem, vamos retomar o tema de nossos filósofos. Vimos como eles tentaram encontrar explicações naturais para as transformações da natureza e que, antes deles, tais transformações eram explicadas pelos mitos.
Mas também em outras áreas era preciso tirar do caminho antigas superstições. E podemos constatar isto tanto no que diz respeito à saúde e doença quanto no que se refere à política. Nestes dois domínios, os gregos tinham sido absolutamente fatalistas até então.
“Ser fatalista” significa acreditar que tudo o que vai acontecer já está determinado previamente. Esta noção pode ser encontrada no mundo todo, tanto hoje quanto em qualquer outro momento da história. Aqui no Norte da Europa, as sagas de famílias islandesas, por exemplo, nos revelam uma forte crença na Providência.
Entre os gregos, bem como em outros povos, também encontramos a noção de que os homens são capazes de “ver” o seu destino através de diferentes oráculos. Isto significa que o destino de um homem ou de um Estado pode ser previsto de diferentes formas e interpretado a partir de certos “presságios”.
Até hoje, muita gente acha possível ler a sorte nas cartas do baralho, nas mãos das pessoas ou nas estrelas do céu.
Também é muito comum a “leitura da sorte” no café que sobra no fundo da xícara, depois que alguém o bebeu. Talvez este resto de café forme no fundo determinada imagem, um desenho (e é claro que, para enxergá-lo, precisamos contar com a ajuda da nossa imaginação). Se este desenho se parece com um carro, isto talvez signifique que a pessoa que bebeu o café logo vai fazer uma longa viagem de carro.
Vemos que o “adivinho” tenta adivinhar algo que de fato não pode ser adivinhado. Isto é típico da arte de prever o futuro. E justamente porque é tão vago aquilo que essas pessoas “pré-vêem”, em geral é muito difícil rebater o que o adivinho nos diz.
Quando olhamos o céu estrelado, o que vemos é um verdadeiro caos de pontinhos luminosos. Não obstante, ao longo da história muitas pessoas acreditaram que as estrelas podiam nos dizer alguma coisa sobre a nossa vida na Terra. Até hoje existem muitos políticos que pedem conselhos a astrólogos antes de tomar decisões importantes.
O ORÁCULO DE DELFOS
(Páginas 66-67.)
Os gregos acreditavam que o famoso oráculo de Delfos era capaz de lhes dizer coisas sobre seu destino. Em Delfos, o deus do oráculo era Apolo. Ele falava através de sua sacerdotisa, Pítia, que ficava sentada num banquinho colocado sobre uma fenda na terra.
Dessa fenda subiam vapores inebriantes, que colocavam Pítia numa espécie de transe. E isto era necessário para que ela se tornasse o meio pelo qual Apolo falava.
Quem vinha a Delfos fazia suas perguntas, primeiramente, para os sacerdotes locais, que depois iam consultar Pítia. A sacerdotisa do oráculo lhes dava uma resposta, que era tão incompreensível ou tão ambígua que os sacerdotes tinham que “interpretá-la” para os consulentes.
Dessa forma, os gregos podiam se valer da sabedoria de Apolo, que, para eles, era o deus que sabia de tudo, tanto do passado quanto do futuro.
Muitos chefes de Estado não ousavam entrar numa guerra ou tomar decisões importantes sem antes consultar o oráculo de Delfos. Dessa forma, os sacerdotes de Apolo eram quase como diplomatas ou conselheiros, que possuíam um profundo conhecimento do povo e do país.
No templo de Delfos havia uma famosa inscrição: CONHECE-TE A TI MESMO! E ela ficava ali para lembrar aos homens que eles não passavam de meros mortais e que nenhum homem pode fugir de seu destino.
Entre os gregos contavam-se muitas histórias de pessoas que tinham sido apanhadas por seus destinos. Ao longo do tempo, uma série de peças – as tragédias – foi escrita sobre essas “trágicas” personalidades. O exemplo mais conhecido é a história do rei Édipo, que, na tentativa de fugir de seu destino, acaba correndo ao seu encontro.
A CIÊNCIA DA HISTÓRIA E A MEDICINA
(Páginas 67-69.)
Para os antigos gregos, não apenas a vida dos indivíduos era determinada pelo destino. Eles achavam que todo o desenrolar da história do mundo também era determinado pelo destino. Assim, os gregos acreditavam, por exemplo, que o desfecho de uma guerra deveria ser atribuído a uma intervenção divina. Ainda hoje, muitas pessoas acreditam que os acontecimentos históricos são governados por Deus ou por outras forças místicas.
Mas enquanto os filósofos gregos tentavam encontrar explicações naturais para os processos da natureza, formava-se pouco a pouco uma ciência da história, cujo objetivo também era encontrar causas naturais para o curso da história universal. O fato de um Estado perder uma guerra não mais era atribuído ao desejo de vingança dos deuses. Os historiadores gregos mais conhecidos foram Heródoto (484-424 a.C.) e Tucídides (460-400 a.C.).
Os gregos dos primeiros tempos também responsabilizavam os deuses pelas doenças. Assim, as doenças contagiosas freqüentemente eram vistas como um castigo dos deuses. De outro lado, os deuses também podiam curar as pessoas, bastando para isto que lhes fosse feito o sacrifício apropriado.
Esta idéia não é típica apenas dos gregos. Em tempos mais recentes, antes que a moderna ciência da medicina se desenvolvesse, era muito comum ouvir que as enfermidades tinham uma causa sobrenatural. A palavra influenza, que empregamos até hoje, significa originariamente que alguém estava sob a “influência” maligna dos astros.
Ainda hoje, muitas pessoas no mundo todo consideram doenças como a AIDS, por exemplo, um castigo de Deus. Além disso, muitos acreditam que uma pessoa enferma possa ser curada por meios “sobrenaturais”.
Enquanto os filósofos gregos enveredavam por um caminho de reflexão absolutamente novo, surgiu também uma ciência médica grega, cujo objetivo era buscar explicações naturais para a saúde e a doença. Supõe-se que essa ciência médica grega foi fundada por Hipócrates, que nasceu na ilha de Cós por volta do ano de 460 a.C.
De acordo com a tradição médica de Hipócrates, os meios mais eficazes para prevenir as doenças eram a moderação e um modo de vida saudável. Por conseguinte, a saúde seria o estado natural do homem. Quando a doença aparece, isso significa que a natureza “saiu dos trilhos” devido a um desequilíbrio corporal ou anímico. O caminho para a saúde do homem está na moderação, na harmonia e “na mente sã em corpo são”.
Hoje em dia ainda se fala muito na “ética médica”. Isto significa que um médico deve exercer sua profissão segundo certas diretrizes éticas. Por exemplo, um médico não deve receitar a pessoas sadias medicamentos que causem dependência. Além disso, o médico deve manter o sigilo profissional, não transmitindo a outras pessoas as informações que um paciente lhe deu sobre seu estado. Todas essas idéias remontam a Hipócrates. Ele fazia seus alunos prestarem um juramento, conhecido até hoje como o juramento de Hipócrates dos médicos:
Por Apolo, o médico, e por Asclépio, por Higia e Panacea e por todos os deuses e deusas, a quem conclamo como minhas testemunhas, juro cumprir o meu dever e manter este juramento com todas as minhas forças e com todo o meu discernimento: tributarei a meu Mestre de Medicina igual respeito que a meus progenitores, repartindo com ele meus meios de vida e socorrendo-o em caso de necessidade; tratarei seus filhos como se fossem meus irmãos e, se for sua vontade aprender esta ciência, eu lhes ensinarei desinteressadamente e sem exigir recompensa de qualquer espécie. Instruirei com preceitos, lições orais e demais métodos de ensino os meus próprios filhos e os filhos de meu Mestre e, além deles, somente os discípulos que me seguirem sob empenho de suas palavras e sob juramento, como determina a praxe médica. Aviarei minhas receitas de modo que sejam do melhor proveito para os enfermos, livrando-os de todo mal e da injustiça, para o que dedicarei todas as minhas faculdades e conhecimentos. Não administrarei a pessoa alguma, ainda que isto me seja pedido, qualquer tipo de veneno nem darei qualquer conselho nesse sentido. Da mesma forma, não administrarei a mulheres grávidas qualquer meio abortivo. Guardarei sigilo e considerarei segredo tudo o que vir e ouvir sobre a vida das pessoas durante o tratamento ou fora dele.
CAPÍTULO 7 (EXCERTO)
SÓCRATES
A FILOSOFIA EM ATENAS
(Páginas 76-77.)
(…)
Vamos voltar à nossa filosofia. Já vencemos a primeira parte do curso. Refiro-me com isto à filosofia da natureza, que significou uma verdadeira ruptura com a visão mitológica do mundo. Vamos conhecer agora os três maiores filósofos da Antigüidade: Sócrates, Platão e Aristóteles. Esses três filósofos, cada um a seu modo, marcaram profundamente a civilização européia.
Os filósofos da natureza são freqüentemente chamados de pré-socráticos, pois viveram antes de Sócrates. É verdade que Demócrito morreu alguns anos depois de Sócrates, mas todo o seu pensamento está inserido no universo da filosofia natural pré-socrática. Isto porque Sócrates representa um divisor de águas não apenas do ponto de vista temporal. Nosso ponto de referência geográfico também se altera agora. É que Sócrates foi o primeiro filósofo nascido em Atenas e tanto ele quanto seus dois sucessores viveram e atuaram em Atenas. Talvez você se lembre que Anaxágoras também viveu algum tempo em Atenas, mas foi banido da cidade porque considerava o Sol uma esfera incandescente (Sócrates também não viria a ter um destino mais feliz!).
A partir da época de Sócrates, Atenas passou a constituir o centro da cultura grega. Mais importante ainda do que isto é observar que, quando passamos dos filósofos da natureza para Sócrates, verificamos também uma mudança essencial em todo o projeto filosófico.
Antes de conhecermos Sócrates, vamos falar um pouco sobre os chamados sofistas, que em sua época eram a marca registrada de Atenas.
Que se abram as cortinas, Sofia! A história do pensamento é um drama de muitos atos.
O HOMEM NO CENTRO
(Páginas 77-78.)
Por volta de 450 a.C., Atenas transformou-se no centro cultural do mundo grego. A partir dessa época, a filosofia tomou um novo rumo.
Os filósofos naturais eram sobretudo pesquisadores naturais. Eles ocupam, portanto, um lugar muito importante na história da ciência. Depois deles, o centro de interesse em Atenas se deslocou para o homem e para sua posição na sociedade.
Em Atenas desenvolvia-se pouco a pouco uma democracia com assembléias populares e tribunais. Um pressuposto para a democracia era o fato de que as pessoas recebiam educação suficiente para poder participar dos processos democráticos. Em nossos dias, podemos ver o quanto uma jovem democracia precisa de um povo esclarecido. Entre os atenienses era particularmente importante dominar a arte de bem falar, a retórica.
Não demorou para que um grupo de mestres e filósofos itinerantes, vindos das colônias gregas, se concentrasse em Atenas. Eles se autodenominavam sofistas, eram pessoas estudadas, versadas em determinado assunto, e ganhavam a vida em Atenas ensinando os cidadãos.
Os sofistas tinham um importante elemento comum com os filósofos naturais: eles também viam com olhos muito críticos a mitologia tradicional. Ao mesmo tempo, porém, os sofistas simplesmente rejeitavam tudo o que consideravam especulação filosófica desnecessária. Para eles, ainda que houvesse respostas para muitas questões filosóficas, ninguém jamais seria capaz de encontrar respostas realmente seguras e definitivas para os mistérios da natureza e do universo. Este ponto de vista é conhecido na filosofia como ceticismo.
Mas ainda que não possamos encontrar uma resposta para todos os mistérios da natureza, sabemos que somos pessoas e que precisamos aprender a conviver umas com as outras. Os sofistas resolveram, então, dedicar-se à questão do homem e de seu lugar na sociedade.
“O homem é a medida de todas as coisas”, disse o sofista Protágoras (c. 487-420 a.C.). Com isto ele queria dizer que o certo e o errado, o bem e o mal sempre tinham de ser avaliados em relação às necessidades do homem. Quando perguntado se acreditava nos deuses gregos, Protágoras dizia: “Dos deuses nada posso dizer de concreto […] pois nesse particular são muitas as coisas que ocultam o saber: a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana”. Chamamos de agnóstico aquele que não é capaz de afirmar categoricamente se existe ou não um Deus.
Via de regra, os sofistas eram homens que tinham feito longas viagens e, por isso mesmo, tinham conhecido diferentes sistemas de governo. Usos, costumes e leis das cidades-Estados podiam variar enormemente. Sob este pano de fundo, os sofistas iniciaram em Atenas uma discussão sobre o que seria natural e o que seria criado pela sociedade. Com isto, eles criaram na cidade-Estado de Atenas as bases para uma crítica social.
Eles puderam mostrar, por exemplo, que uma expressão como “sentimento natural de pudor” era algo que não se sustentava. Pois se o pudor e a vergonha fossem uma coisa natural, então eles tinham de ser características inatas. Mas será que tais características são inatas, Sofia, ou será que a sociedade as criou? Para pessoas que já viajaram muito, a resposta simplesmente seria a seguinte: o medo de se mostrar despido a outras pessoas não é uma coisa natural ou inata. O fato de se ter ou não vergonha disso está ligado sobretudo aos usos e costumes de uma sociedade.
Você pode imaginar como foram inflamadas as discussões que os sofistas incitaram na sociedade de Atenas quando afirmaram que não havia normas absolutas para o certo e o errado. Ao contrário deles, Sócrates tentou mostrar que algumas normas são realmente absolutas e de validade universal.
QUEM FOI SÓCRATES?
(Páginas 78-79.)
Sócrates (470-399 a.C.) talvez seja a personagem mais enigmática de toda a história da filosofia. Ele não escreveu uma única linha e, não obstante, está entre os que maior influência exerceram sobre o pensamento europeu. Seu fim trágico talvez seja o que o tornou famoso até mesmo entre os que conhecem pouco de filosofia.
Sabemos que Sócrates nasceu em Atenas e que ali passou toda a sua vida, sobretudo nas praças dos mercados e nas ruas, onde conversava com toda a sorte de pessoas. Sócrates dizia que a relva e as árvores do campo não podiam lhe ensinar nada. E ele era capaz de ficar horas parado, totalmente mergulhado em pensamentos.
Enquanto viveu já era visto como uma pessoa enigmática e logo depois de sua morte foi considerado o fundador das mais diversas correntes filosóficas. E justamente porque era tão enigmático e porque o que dizia podia ser interpretado de diferentes formas é que correntes filosóficas tão diferentes puderam reivindicá-lo como o precursor de seus princípios.
Uma coisa é certa: Sócrates era feio de doer. Era baixo e gordo, tinha olhos que pareciam querer saltar das órbitas e o nariz arrebitado. Mas seu interior era “absolutamente maravilhoso”, conforme diziam. E mais: diziam que se poderiam vasculhar o presente e o passado e não se encontraria ninguém comparável a ele.
Apesar disso, Sócrates foi condenado à morte por sua atividade como filósofo.
Conhecemos a vida de Sócrates sobretudo através de Platão, seu discípulo e também um dos maiores filósofos da história.
Platão escreveu muitos Diálogos, ou conversas filosóficas, nos quais Sócrates aparece.
Quando Platão dá a palavra a Sócrates, não podemos afirmar com toda a certeza que foi Sócrates quem realmente disse tais palavras. Por isso não é fácil separar os ensinamentos de Sócrates dos de Platão. O mesmo problema vale também para muitas outras personalidades da história que não nos legaram uma obra escrita. O exemplo mais conhecido é o de Jesus Cristo. Não podemos saber ao certo se o “Jesus histórico” realmente disse o que Mateus ou Lucas dizem que ele disse. Assim, será para sempre um mistério o que o “Sócrates histórico” realmente disse.
Apesar disso, não é muito importante saber quem Sócrates “realmente” foi. É sobretudo a imagem que Platão pintou dele que inspira o pensamento ocidental há quase dois mil e quatrocentos anos.
A ARTE DO DIÁLOGO
(Páginas 80-81.)
O ponto central de toda a atuação de Sócrates como filósofo estava no fato de que ele não queria propriamente ensinar as pessoas. Para tanto, em suas conversas, Sócrates dava a impressão de ele próprio querer aprender com seu interlocutor. Ao “ensinar”, ele não assumia a posição de um professor tradicional. Ao contrário, ele dialogava, discutia.
Mas Sócrates não teria se tornado um filósofo famoso se apenas tivesse prestado atenção ao que os outros diziam. E é claro que também não teria sido condenado à morte por causa disso. Geralmente, no começo de uma conversa, Sócrates só fazia perguntas, como se não soubesse de nada. Durante a conversa, freqüentemente conseguia levar seu interlocutor a ver os pontos fracos de suas próprias reflexões. Uma vez pressionado contra a parede, o interlocutor acabava reconhecendo o que estava certo e o que estava errado.
Dizem que a mãe de Sócrates era parteira, e o próprio Sócrates costumava comparar a atividade que exercia com a de uma parteira. Não é a parteira quem dá à luz o bebê. Ela só fica por perto para ajudar durante o parto. Sócrates achava, portanto, que sua tarefa era ajudar as pessoas a “parir” uma opinião própria, mais acertada, pois o verdadeiro conhecimento tem de vir de dentro e não pode ser obtido “espremendo-se” os outros. Só o conhecimento que vem de dentro é capaz de revelar o verdadeiro discernimento.
Deixe-me explicar melhor: a capacidade de dar à luz é uma característica natural. Da mesma forma, todas as pessoas podem entender as verdades filosóficas, bastando para isto usar a sua razão. Quando uma pessoa “toma juízo”, ela simplesmente traz para fora algo que já está dentro de si.
E justamente porque fingia que não sabia de nada, Sócrates forçava as pessoas a usar a razão. Sócrates era capaz de se fingir ignorante, ou de mostrar-se mais tolo do que realmente era. Chamamos a isto de ironia socrática. Foi assim que ele conseguiu expor as fraquezas do pensamento dos atenienses. E isto podia acontecer bem no meio da praça do mercado, no meio de toda a gente. Um encontro com Sócrates podia significar expor-se ao ridículo, ao riso do grande público.
Não é de espantar, portanto, que ele incomodasse e irritasse muitas pessoas, sobretudo os que detinham poder na sociedade. Sócrates dizia que Atenas era como uma égua preguiçosa e ele um mosquito que lhe picava o flanco para mostrar-lhe que ela ainda estava viva. (O que fazemos com os mosquitos, Sofia? Você pode me dizer?)
UMA VOZ DIVINA
(Páginas 81-82.)
Mas Sócrates não vivia pegando no pé das pessoas apenas porque queria atormentá-las. Havia qualquer coisa dentro dele que não lhe deixava outra saída senão esta. Ele sempre dizia que ouvia uma voz divina dentro de si. Sócrates protestava, por exemplo, contra o fato de as pessoas serem condenadas à morte. Além disso, recusava-se a denunciar seus inimigos políticos. No fim, isto lhe custou a própria vida.
No ano de 399 a.C. ele foi acusado de “corromper a juventude” e de “não reconhecer a existência dos deuses”. Por uma maioria apertada, Sócrates foi considerado culpado por um júri de cinqüenta pessoas.
Ele poderia muito bem ter pedido clemência. E poderia ter salvado sua vida se concordasse em deixar Atenas. Mas se tivesse feito isto, não teria sido Sócrates. O ponto é que ele considerava sua própria consciência – e a verdade – mais importante do que sua vida. Sócrates afirmou o tempo todo que tudo o que fizera fora para o bem do Estado. Não adiantou. Pouco depois, na presença de seus amigos mais íntimos, bebeu um cálice de cicuta.
Por quê, Sofia? Por que Sócrates teve de morrer? Até hoje as pessoas fazem esta pergunta. Mas ele não foi o único na história a ir até as últimas conseqüências e pagar suas idéias com a própria vida. Já citei aqui Jesus Cristo, e entre Jesus e Sócrates podemos estabelecer diversos paralelos. Vou mencionar apenas alguns.
Jesus e Sócrates já eram considerados pessoas enigmáticas no tempo em que viveram. Nenhum dos dois deixou qualquer registro escrito de suas idéias. Assim, não nos resta outra saída senão confiar na imagem deles que nos foi legada por seus discípulos. Uma coisa, porém, é certa: ambos eram mestres da retórica. Além disso, ambos tinham tanta autoconfiança no que diziam que podiam tanto arrebatar quanto irritar seus ouvintes. Para completar, ambos acreditavam falar em nome de uma coisa que era maior do que eles mesmos. Eles desafiavam os que detinham o poder na sociedade, porque criticavam todas as formas de injustiça e de abuso de poder. No fim, esta forma de agir lhes custou a vida.
Também há paralelos entre os processos de acusação de Jesus e de Sócrates. Ambos podiam ter pedido clemência e, com isto, ter salvado suas vidas. Mas eles acreditavam estar traindo sua missão se não fossem até as últimas conseqüências. E o fato de terem enfrentado a morte de cabeça erguida lhes garantiu a fidelidade das pessoas mesmo depois de sua morte.
Ao traçar esses paralelos entre Jesus Cristo e Sócrates, não estou querendo colocar um sinal de igual entre os dois. Quero dizer apenas que ambos tinham uma mensagem a transmitir e que esta mensagem estava indissoluvelmente associada à sua coragem pessoal.
UM CURINGA EM ATENAS
(Páginas 82-84.)
Sócrates, Sofia! Ainda não dissemos tudo o que queríamos sobre ele. O pouco que dissemos foi sobre o seu método. Mas como era o seu projeto filosófico?
Sócrates foi contemporâneo dos sofistas. Como eles, Sócrates também se ocupava das pessoas e da vida das pessoas, e não dos problemas dos filósofos naturais. Alguns séculos mais tarde, um filósofo romano – Cícero – disse que Sócrates havia trazido a filosofia do céu para a terra, transformado cidades e casas em sua morada e levado as pessoas a refletir sobre a vida e os costumes, sobre o bem e o mal.
Mas Sócrates diferia dos sofistas num ponto muito importante. Ele não se considerava um sofista, isto é, uma pessoa instruída, sábia. Ao contrário dos sofistas, ele não cobrava absolutamente nada por seus ensinamentos. Não, Sócrates se autodenominava filósofo, no sentido mais verdadeiro da palavra. Um “filo-sofo” é, na verdade, um “amante da sabedoria”, alguém cujo objetivo é chegar à sabedoria.
Você está bem acomodada, Sofia? É muito importante para o restante do curso que você entenda bem a diferença entre um sofista e um filósofo. Os sofistas cobram por suas exposições mirabolantes, e a história registra que tais “sofistas” têm aparecido e desaparecido com bastante freqüência. Estou pensando agora naqueles professores e nos sabichões que ou estão satisfeitos com o pouco que sabem, ou então vivem se gabando de que sabem um monte de coisas das quais na verdade não fazem a menor idéia. Você certamente já encontrou “sofistas” como esses em sua vida. Um verdadeiro filósofo, Sofia, é alguém completamente diferente; é o extremo oposto.
Um filósofo sabe muito bem que, no fundo, ele sabe muito pouco, justamente por isto ele vive tentando chegar ao verdadeiro conhecimento. Sócrates foi uma dessas raras pessoas. Ele sabia muito bem que nada sabia sobre a vida e o mundo. E agora é que vem o mais importante: o fato de saber tão pouco não o deixava em paz.
Um filósofo, portanto, é uma pessoa que reconhece que há muita coisa além do que ele pode entender e vive atormentado por isto. Desse ponto de vista, ele é mais inteligente do que todos que vivem se vangloriando de seus pretensos conhecimentos. “Mais inteligente é aquele que sabe que não sabe”, lembra-se? O próprio Sócrates dizia que a única coisa que sabia era que não sabia de nada. Grave bem esta afirmação, pois esta confissão é uma coisa rara mesmo entre os filósofos. Além disso, é tão perigoso fazer uma declaração dessas assim publicamente que ela pode lhe custar a vida. Os que questionam são sempre os mais perigosos. Responder não é perigoso. Uma única pergunta pode ser mais explosiva do que mil respostas.
Você já ouviu a história das roupas novas do imperador? Na verdade, o imperador estava completamente nu, mas nenhum de seus súditos ousava lhe dizer isto. De repente, uma criança gritou que o imperador estava pelado. Era uma criança corajosa, Sofia. Da mesma forma, Sócrates ousou mostrar às pessoas que elas sabiam muito pouco. Já nos referimos às semelhanças entre as crianças e os filósofos, lembra-se?
Para ser mais preciso: a humanidade está diante de questões importantes, para as quais não é fácil encontrar uma resposta adequada. E então abrem-se duas possibilidades: podemos simplesmente enganar a nós mesmos e ao resto do mundo como se soubéssemos de tudo o que vale a pena saber, ou então podemos simplesmente fechar os olhos para essas questões importantes e desistir para sempre de ir em frente. Isto divide a humanidade em duas partes. De um modo geral, as pessoas ou acham que estão cem por cento certas, ou então se mostram indiferentes. (Esses dois tipos de pessoas são aquelas que ficam se arrastando lá embaixo da pelagem do coelho!) É como separar as cartas de um baralho, Sofia. Fazemos um montinho com as cartas pretas e outro com as vermelhas. De vez em quando, porém, aparece um curinga: uma carta que não é nem de copas, nem de paus, nem de ouros, nem de espadas. Em Atenas, Sócrates era como um curinga: nem cem por cento seguro, nem indiferente. Ele sabia apenas que nada sabia, e isto o atormentava. Então tornou-se filósofo, isto é, alguém que não desiste, que busca incansavelmente chegar ao conhecimento.
Dizem que um dia um cidadão de Atenas perguntou ao oráculo de Delfos quem seria o homem mais inteligente de Atenas. O oráculo respondeu: Sócrates. Quando Sócrates ficou sabendo disso, admirou-se, para dizer o mínimo. (Acho mesmo é que ele deu boas gargalhadas, Sofia.) Imediatamente foi até a cidade e procurou um homem que ele e outras pessoas consideravam muito inteligente. Mas quando viu que este homem não era capaz de responder claramente às suas perguntas, Sócrates entendeu que o oráculo tinha razão.
Para Sócrates era importante encontrar um alicerce seguro para os nossos conhecimentos. Ele acreditava que este alicerce estava na razão humana. E porque acreditava muito na razão humana, Sócrates foi também um racionalista convicto.
O CONHECIMENTO DO QUE É CERTO
LEVA AO AGIR CORRETO
(Páginas 84-85.)
Como já disse, Sócrates acreditava ouvir uma voz divina dentro de si, e esta “consciência” lhe dizia o que era certo. Para ele, quem sabe o que é bom acaba fazendo o bem. Sócrates acreditava que o conhecimento do que é certo leva ao agir correto. E só quem faz o que é certo – assim dizia Sócrates – pode se transformar num homem de verdade. Quando agimos erroneamente, isto acontece porque não sabemos como fazer melhor. Por isso é tão importante ampliar nossos conhecimentos. Sócrates estava preocupado justamente em encontrar definições claras e válidas universalmente para o que é certo e o que é errado. Contrariamente aos sofistas, ele acreditava que a capacidade de distinguir entre o certo e o errado estava na razão, e não na sociedade.
Talvez não seja muito fácil para você digerir esta última frase, Sofia. Vou tentar novamente: Sócrates achava impossível alguém ser feliz se agisse contra suas próprias convicções. E aquele que sabe como se tornar uma pessoa feliz certamente tentará fazê-lo. Por isso é que faz a coisa certa aquele que sabe o que é certo. Pois ninguém deseja ser infeliz, não é mesmo?
O que você acha, Sofia? Será que você conseguiria ser feliz se tivesse que viver repetindo coisas que lá no fundo do seu coração você não acha certas? Há muitas pessoas que mentem o tempo todo, roubam e caluniam. Muito bem, elas sabem perfeitamente que isto não é certo – ou justo, se você preferir. Você acha que isto as deixa felizes? Sócrates achava que não.
CAPÍTULO 9 (EXCERTO)
PLATÃO
(Páginas 97-106. Os textos entre colchetes são de Pausa para a Filosofia.)
O ETERNAMENTE VERDADEIRO, ETERNAMENTE BELO E ETERNAMENTE BOM
No início deste nosso curso de filosofia, eu lhe disse que o interessante é perguntar pelo projeto de determinado filósofo. Nesse sentido, o que será que Platão queria investigar?
Para resumir em poucas palavras: Platão interessava-se pela relação entre aquilo que, de um lado, é eterno e imutável, e aquilo que, de outro, “flui”. (Exatamente como os pré-socráticos, portanto!)
Dissemos que os sofistas e o próprio Sócrates haviam se afastado das questões da filosofia natural e se interessado mais pelo homem e pela sociedade. E isto está absolutamente certo. Mas também Sócrates e os sofistas ocupavam-se de certa forma com a relação entre aquilo que, de um lado, é eterno e imutável, e aquilo que, de outro, “flui”. E tocavam neste ponto quando se tratava da moral do homem e dos ideais ou virtudes da sociedade. De modo muito geral, os sofistas achavam que a questão sobre o que era certo e errado modificava-se de cidade-Estado para cidade-Estado e de geração para geração. Para eles, portanto, essa questão de certo ou errado era “algo que fluía”. Sócrates não podia aceitar isto. Ele acreditava em regras ou normas eternas, que governavam o agir dos homens. Se usarmos apenas a nossa razão – dizia ele -, poderemos reconhecer todas essas normas imutáveis, pois a razão humana é precisamente algo eterno e imutável.
Você está acompanhando, Sofia? E agora vem Platão. Ele se interessava tanto pelo que é eterno e imutável na natureza quanto pelo que é eterno e imutável na moral e na sociedade. Sim… para Platão tratava-se, em ambos os casos, de uma mesma coisa. Ele tentava entender uma “realidade” que fosse eterna e imutável. E, para ser franco, é para isto que os filósofos existem. Eles não estão preocupados em eleger a mulher mais bonita do ano, ou os tomates mais baratos do fim de feira. (E exatamente por isso nem sempre são vistos com bons olhos!) Os filósofos não se interessam muito por essas coisas efêmeras e cotidianas. Eles tentam mostrar o que é “eternamente verdadeiro”, “eternamente belo” e “eternamente bom”.
Com isto podemos ter uma vaga idéia dos contornos do projeto filosófico de Platão. A partir de agora vamos tratar de um ponto de cada vez. Vamos tentar entender um raciocínio extraordinário, que deixou marcas profundas em toda a filosofia européia surgida depois.
O MUNDO DAS IDÉIAS
Empédocles e Demócrito já tinham nos chamado a atenção para o fato de que, apesar de todos os fenômenos da natureza “fluírem”, havia “algo” que nunca se modificava (as “quatro raízes” ou os “átomos”). Platão também se dedicou a este problema, mas de forma completamente diferente.
Platão achava que tudo o que podemos tocar e sentir na natureza “flui”. Não existe, portanto, um elemento básico que não se desintegre. Absolutamente tudo o que pertence ao “mundo dos sentidos” é feito de um material sujeito à corrosão do tempo. Ao mesmo tempo, tudo é formado a partir de uma forma eterna e imutável.
Entendeu? Tudo bem, não entendeu…
Por que todos os cavalos são iguais, Sofia? Talvez você ache que eles não são iguais. Mas existe algo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nós jamais teremos problemas para reconhecer um cavalo. Naturalmente, o “exemplar” isolado do cavalo, este sim “flui”, “passa”. Ele envelhece e fica manco, depois adoece e morre. Mas a verdadeira “forma do cavalo” é eterna e imutável.
Para Platão, este aspecto eterno e imutável não é, portanto, um “elemento básico” físico. Eternos e imutáveis são os modelos espirituais ou abstratos, a partir dos quais todos os fenômenos são formados.
Eu explico melhor: os pré-socráticos tinham oferecido uma explicação muito plausível para as transformações da natureza, sem ter de pressupor que algo efetivamente “se transformava”. Eles achavam que no ciclo da natureza havia partículas mínimas, eternas e constantes, que não se desintegravam. Muito bem, Sofia! Eu disse muito bem! Só que eles não tinham uma explicação aceitável de como estas partículas mínimas, que um dia tinham se juntado para formar um cavalo, se juntavam novamente quatrocentos ou quinhentos anos mais tarde para formar outro cavalo, novinho em folha! Ou um elefante, ou um crocodilo. O que Platão quer dizer é que os átomos de Demócrito nunca podem se juntar para formar um “crocofante” ou um “eledilo”. E foi isto, precisamente, que colocou em marcha suas reflexões filosóficas.
Se você já entendeu o que estou dizendo, pode pular este parágrafo. Caso não tenha entendido, vou tentar ser mais claro: digamos que você pegue uma caixa cheia de peças de Lego e construa um cavalo. Depois você desmancha o que fez e recoloca as peças de volta na caixa. Você não pode esperar obter outro cavalo apenas chacoalhando a caixa de peças. Afinal, como é que as peças de Lego podem produzir um cavalo por si mesmas? Não… você é que tem que montar o cavalo novamente, Sofia. E se você conseguir, isto significa que na sua cabeça você tem uma imagem do que seja um cavalo. O cavalo de Lego foi formado, portanto, a partir de uma imagem padrão que permanece inalterada de cavalo para cavalo.
Você não chegou a uma conclusão semelhante sobre os cinqüenta bolos iguais? [Página 92: “Meu nome é Platão, e eu gostaria de propor quatro tarefas para você. Primeiro, gostaria que você refletisse sobre como um padeiro consegue assar cinqüenta bolos exatamente iguais.”] Vamos imaginar agora que você caia do espaço na Terra e nunca tenha visto uma padaria. Então você passa pela vitrine muito convidativa de uma padaria e vê sobre um tabuleiro cinqüenta broas exatamente iguais, todas em forma de anõezinhos. Suponho que, nessas condições, você vá coçar a cabeça e se perguntar como todas aquelas broas podem ser iguais. E é bem possível que você perceba que um anãozinho está sem um braço, o outro perdeu um pedaço da cabeça e um terceiro tem uma barriga maior que a dos outros. Contudo, depois de pensar bem, você chega à conclusão de que todas as broas em forma de anãozinho têm um denominador comum. Embora nenhum deles seja absolutamente perfeito, você suspeita que eles devem ter uma origem comum. E chega à conclusão de que todos foram assados na mesma fôrma.
E mais ainda, Sofia: isto desperta em você o desejo de ver esta fôrma, pois fica claro que ela deve ser indescritivelmente mais perfeita e, de certa forma, mais bonita do que uma de suas frágeis e imperfeitas cópias.
Se você resolveu esta questão sozinha, então você conseguiu resolver um problema filosófico exatamente da mesma maneira que Platão. Como a maioria dos filósofos, ele também “caiu do espaço na Terra”, por assim dizer. (Ele foi lá para a pontinha dos finos pêlos do coelho.) [Página 26: “PS. Quanto ao coelhinho branco, talvez seja melhor compará-lo com todo o universo. Nós, que vivemos aqui, somos os bichinhos microscópicos que vivem na base dos pêlos do coelho. Mas os filósofos tentam subir da base para a ponta dos finos pêlos, a fim de poder olhar bem dentro dos olhos do grande mágico.”] Platão ficou admirado com a semelhança entre todos os fenômenos da natureza e chegou, portanto, à conclusão de que “por cima” ou “por trás” de tudo o que vemos à nossa volta há um número limitado de formas. A estas formas Platão deu o nome de idéias. Por trás de todos os cavalos, porcos e homens existe a “idéia cavalo”, a “idéia porco” e a “idéia homem”. (E é por causa disto que a citada padaria pode fazer broas em forma de porquinhos ou de cavalos, além de anõezinhos. Pois uma padaria que se preze geralmente tem mais que uma fôrma. Só que uma única fôrma é suficiente para todo um tipo de broa.)
Conclusão: Platão acreditava numa realidade autônoma por trás do “mundo dos sentidos”. A esta realidade ele deu o nome de mundo das idéias. Nele estão as “imagens padrão”, as imagens primordiais, eternas e imutáveis, que encontramos na natureza. Esta notável concepção é chamada por nós de a teoria das idéias de Platão.
O VERDADEIRO CONHECIMENTO
Até aqui acho que você está me acompanhando, minha cara Sofia. Mas talvez você esteja se perguntando se Platão estava realmente falando sério. Será que ele acreditava mesmo que tais fenômenos pudessem existir numa realidade totalmente diferente?
Certamente ele não pensou literalmente desta forma durante toda a sua vida, mas a leitura de alguns de seus diálogos deixa claro que é assim que ele quer ser entendido. Vamos tentar acompanhar sua linha de argumentação.
Como dissemos, um filósofo tenta entender algo que é eterno e imutável. Teria pouco sentido, por exemplo, escrever todo um tratado de filosofia sobre a existência de determinada bolha de sabão. Em primeiro lugar, porque se teria pouca chance de examiná-la cuidadosamente antes que ela desaparecesse. Em segundo, porque dificilmente se conseguiria vender um tratado filosófico sobre algo que ninguém viu e que existiu por apenas alguns segundos.
Platão achava que tudo o que vemos ao nosso redor na natureza, tudo o que podemos tocar pode ser comparado a uma bolha de sabão. Pois nada do que existe no mundo dos sentidos é duradouro. Você concorda que todas as pessoas e todos os animais mais cedo ou mais tarde morrem e desaparecem, não é mesmo? Até um bloco de mármore aos poucos vai se desfazendo e se desintegrando. (A Acrópole de hoje não passa de ruínas, Sofia. Uma coisa escandalosa, se você quer saber a minha opinião. Mas a vida é essa…) Platão é da opinião de que nunca podemos chegar a conhecer verdadeiramente algo que se transforma. Sobre as coisas do mundo dos sentidos, coisas tangíveis, portanto, não podemos ter senão opiniões incertas. E só podemos chegar a ter um conhecimento seguro daquilo que reconhecemos com a razão.
Sim, sim, Sofia, vou explicar melhor: retornando ao exemplo da broa em forma de anãozinho, pode muito bem acontecer de alguma coisa dar errado enquanto o padeiro está fazendo a massa, ou então enquanto a broa está crescendo ou assando, de tal modo que, no fim, não seja possível dizer que formato aquela broa tem. Mas depois de eu ter visto vinte, trinta broas em forma de anãozinho, pois mais imperfeitas que elas sejam, posso ter uma idéia clara do formato que possui a fôrma em que elas foram assadas. E posso chegar a esta conclusão mesmo sem nunca ter visto a fôrma. Aliás, nada garante que seria melhor ver a fôrma com os próprios olhos, isto porque nem sempre podemos confiar em nossos sentidos. A faculdade de visão pode variar de pessoa para pessoa. De outra parte, podemos confiar no que a razão nos diz, pois a razão é a mesma para todas as pessoas.
Se você está numa sala de aula com trinta alunos e o professor pergunta qual a cor mais bonita do arco-íris, certamente ele ouvirá muitas respostas diferentes. Mas se ele perguntar quanto é três vezes oito, a classe inteira deve chegar ao mesmo resultado. É que neste caso é a razão quem julga; e a razão é, de certa forma, o extremo oposto de achar e sentir. Podemos dizer que a razão é eterna e universal, justamente porque ela só se manifesta sobre dados que são eternos e universais.
Platão interessou-se muito por matemática, exatamente porque os dados matemáticos nunca se alteram. Por isso podemos chegar a um conhecimento seguro no que diz respeito à matemática. Mas vamos dar um exemplo: imagine que você encontre na floresta uma pinha redonda. Talvez você diga que “acha” a pinha perfeitamente redonda, mas pode ser que [sua amiga] Jorunn afirme que a pinha está um pouco amassada de um lado. (E aí vocês começam a discutir!) Só que não dá para vocês chegarem a um conhecimento seguro sobre aquilo que vêem com os olhos. Por outro lado, vocês sabem que a soma dos ângulos de um círculo é exatamente 360°. Neste caso, porém, vocês estão falando de um círculo ideal, que não existe na natureza, mas que vocês conseguem visualizar perfeitamente com os “olhos de dentro”. (Vocês estão falando sobre o formato oculto da fôrma, e não sobre uma broa específica, casual, que está sobre a mesa da cozinha.)
Para resumir brevemente: não podemos ter senão opiniões incertas sobre tudo o que sentimos ou percebemos sensorialmente. Mas podemos chegar a um conhecimento seguro sobre aquilo que reconhecemos com nossa razão. A soma dos ângulos de um triângulo é 180°. E será assim por toda a eternidade. Da mesma forma, a “idéia” de que um cavalo terá sempre quatro patas continuará válida, ainda que todos os cavalos do mundo dos sentidos fiquem mancos de uma perna.
UMA ALMA IMORTAL
Vimos que, para Platão, a realidade se dividia em duas partes.
A primeira parte é o mundo dos sentidos, do qual não podemos ter senão um conhecimento aproximado ou imperfeito, já que para tanto fazemos uso de nossos cinco (aproximados e imperfeitos) sentidos. Nesse mundo dos sentidos, tudo “flui” e, conseqüentemente, nada é perene. Nada é no mundo dos sentidos; nele, as coisas simplesmente surgem e desaparecem.
A outra parte é o mundo das idéias, do qual podemos chegar a ter um conhecimento seguro, se para tanto fizermos uso de nossa razão. Este mundo das idéias não pode, portanto, ser conhecido através dos sentidos. Em compensação, as idéias (ou formas) são eternas e imutáveis.
Para Platão, portanto, o homem também é um ser dual. Temos um corpo, que “flui” e que está indissoluvelmente ligado ao mundo dos sentidos, compartilhando do mesmo destino de todas as outras coisas presentes neste mundo (por exemplo, uma bolha de sabão). Todos os nossos sentidos estão ligados a este corpo e, conseqüentemente, não são inteiramente confiáveis. Mas também possuímos uma alma imortal, que é a morada da razão. E justamente porque a alma não é material, ela pode ter acesso ao mundo das idéias.
Já estou quase no fim. Mas há algo mais, Sofia. ALGO MAIS!
Platão também achava que a alma já existia antes de vir habitar nosso corpo. E ela existia no mundo das idéias. (Ela ficava junto com as fôrmas de bolo lá no alto da prateleira.) Entretanto, no momento mesmo em que a alma passa a habitar o corpo humano, ela se esquece das idéias perfeitas. E então tem início um processo extraordinário: quando as pessoas entram em contato com as formas da natureza, aos poucos uma vaga lembrança vai emergindo dentro de sua alma. O homem vê um cavalo, mas um cavalo imperfeito (ou uma broa em forma de cavalinho!). E isto é suficiente para despertar na sua alma a vaga lembrança do cavalo ideal que ela conheceu um dia no mundo das idéias. Ao mesmo tempo em que ocorre, isto desperta no homem um anseio de retornar à verdadeira morada da alma. Platão chamava este anseio, esta saudade, de Eros, que significa amor. A alma experimenta, portanto, um “anseio amoroso” de retornar à sua verdadeira morada. A partir de então, ela passa a perceber o corpo e tudo o que é sensorial como imperfeito e supérfluo. Nas asas do amor, a alma deseja voar “de volta para casa”, para o mundo das idéias. [Veja na Bíblia, em Lc 15.11-32, a parábola do filho pródigo.] Ela quer se libertar do cárcere do corpo.
Devo dizer sem demora que Platão descreve aqui o desenrolar ideal de uma vida, pois é claro que nem todas as pessoas liberam suas almas para que elas possam empreender uma jornada de volta ao mundo das idéias. A maioria das pessoas apega-se aos “reflexos” das idéias no mundo dos sentidos. Elas vêem um cavalo, e outro, e depois outro. Mas não conseguem ver aquilo de que o cavalo é apenas uma imitação grosseira. (Elas entram na cozinha e “atacam” as broas, sem se perguntar de onde elas surgiram.) O que Platão descreve é o caminho percorrido pelo filósofo. Podemos considerar sua filosofia a descrição da atividade de um filósofo.
Quando você vê uma sombra, Sofia, na mesma hora você pensa que alguma coisa deve estar projetando esta sombra. Por exemplo, pode acontecer de você ver a sombra de um animal. Talvez a de um cavalo, mas você não está bem certa. Então você se vira e vê o animal verdadeiro, que, naturalmente, é muito mais bonito e de contornos mais nítidos do que a imprecisa sombra. É POR ISSO QUE PLATÃO CONSIDERA TODOS OS FENÔMENOS DA NATUREZA MEROS REFLEXOS DAS FORMAS ETERNAS, OU IDÉIAS. Só que a maioria das pessoas está satisfeita com sua vida em meio a esses reflexos sombreados. Elas acreditam que as sombras são tudo o que existe, e por isso não as vêem como sombras. Com isto, esquecem-se também da imortalidade de suas almas.
DEIXANDO PARA TRÁS AS TREVAS DA CAVERNA
Platão nos conta uma parábola que ilustra bem esta reflexão. Nós a conhecemos por alegoria da caverna. Vou contá-la com minhas próprias palavras.
Imagine um grupo de pessoas que habitam o interior de uma caverna subterrânea. Elas estão de costas para a entrada da caverna e acorrentadas no pescoço e nos pés, de sorte que tudo o que vêem é a parede da caverna. Atrás delas ergue-se um muro alto e por trás desse muro passam figuras de formas humanas sustentando outras figuras que se elevam para além da borda do muro. Como há uma fogueira queimando atrás dessas figuras, elas projetam sombras bruxuleantes na parede da caverna. Assim, a única coisa que as pessoas da caverna podem ver é este “teatro de sombras”. E como essas pessoas estão ali desde que nasceram, elas acham que as sombras que vêem são a única coisa que existe.
Imagine agora que um desses habitantes da caverna consiga se libertar daquela prisão. Primeiramente ele se pergunta de onde vêm aquelas sombras projetadas na parede da caverna. Depois consegue se libertar dos grilhões que o prendem. O que você acha que acontece quando ele se vira para as figuras que se elevam para além da borda do muro? Primeiro, a luz é tão intensa que ele não consegue enxergar nada. Depois, a precisão dos contornos das figuras, de que ele até então só vira as sombras, ofusca a sua visão. Se ele conseguir escalar o muro e passar pelo fogo para poder sair da caverna, terá mais dificuldade ainda para enxergar devido à abundância de luz. Mas depois de esfregar os olhos, ele verá como tudo é bonito. Pela primeira vez verá cores e contornos precisos; verá animais e flores de verdade, de que as figuras na parede da caverna não passavam de imitações baratas. Suponhamos, então, que ele comece a se perguntar de onde vêm os animais e as flores. Ele vê o Sol brilhando no céu e entende que o Sol dá vida às flores e aos animais da natureza, assim como também era graças ao fogo da caverna que ele podia ver as sombras refletidas na parede.
Agora, o feliz habitante das cavernas pode andar livremente pela natureza, desfrutando da liberdade que acabara de conquistar. Mas as outras pessoas que ainda continuam lá dentro da caverna não lhe saem da cabeça. E por isso ele decide voltar. Assim que chega lá, ele tenta explicar aos outros que as sombras na parede não passam de trêmulas imitações da realidade. Mas ninguém acredita nele. As pessoas apontam para a parede da caverna e dizem que aquilo que vêem é tudo o que existe. Por fim, acabam matando-o.
O que Platão nos mostra com esta alegoria da caverna é o caminho que o filósofo percorre das noções imprecisas para as idéias reais que estão por trás dos fenômenos da natureza. Na certa Platão também estava pensando em Sócrates, que tinha sido morto pelos “habitantes da caverna” por ter colocado em dúvida as noções a que eles estavam habituados e por querer lhes mostrar o caminho do verdadeiro conhecimento. Desta forma, a alegoria da caverna é uma imagem da coragem e da responsabilidade pedagógica do filósofo.
Platão defende o ponto de vista de que a relação entre as trevas da caverna e a natureza fora dela corresponde à relação entre as formas da natureza e o mundo das idéias. Ele não acha a natureza em si sombria e triste, mas acha sim que ela é sombria e triste em relação à clareza das idéias. A foto de uma bela jovem não é sombria e triste. Ao contrário. Só que não deixa de ser uma foto.
CAPÍTULO 11 (EXCERTO)
ARISTÓTELES
FILÓSOFO E CIENTISTA
(Páginas 121-122.)
Querida Sofia! Certamente você ficou impressionada com a teoria das idéias, de Platão. E você não é a primeira. Não sei se você aceitou tudo sem maiores problemas, ou se tem algum comentário crítico a fazer. Mas se você fez críticas à teoria de Platão, saiba que estas mesmas críticas já foram feitas por Aristóteles (384-322 a.C.). Durante vinte anos ele foi aluno da Academia de Platão.
Aristóteles não nasceu em Atenas. Ele era natural da Macedônia e veio para a Academia quando Platão tinha sessenta e um anos. Seu pai era um médico de renome; um cientista da natureza, portanto. Este pano de fundo já diz alguma coisa sobre o projeto filosófico de Aristóteles. Seu maior interesse estava justamente na natureza viva. Ele não foi apenas o último grande filósofo grego; foi também o primeiro grande biólogo da Europa.
Exagerando um pouco, podemos dizer que Platão estava tão mergulhado nas formas eternas, no mundo das “idéias”, que quase não registrou as mudanças da natureza. Aristóteles, ao contrário, interessava-se justamente pelas mudanças, por aquilo que hoje chamamos de processos naturais.
Exagerando mais ainda, podemos dizer que Platão se apartou do mundo dos sentidos e que só percebia muito superficialmente tudo aquilo que vemos ao nosso redor. (É que ele queria escapar da caverna para espiar o eterno mundo das idéias!) Aristóteles fez exatamente o contrário: ele saiu ao encontro da natureza e estudou peixes e rãs, anêmonas e papoulas.
Você bem poderia dizer que enquanto Platão usou apenas sua razão, Aristóteles – ao contrário – usou também seus sentidos.
Mas há nítidas diferenças entre eles, até mesmo na forma de escrever. Enquanto Platão era poeta e criador de mitos, os escritos de Aristóteles são sóbrios e pormenorizados como os verbetes de uma enciclopédia. Em compensação, muito do que ele escreveu estava baseado em estudos naturais realizados com extrema diligência.
Registros da Antigüidade dão conta de não menos que cento e setenta títulos assinados por Aristóteles. Destes, quarenta e sete chegaram até nossos dias. Não se tratava de livros completos. A maior parte dos escritos de Aristóteles compõe-se de apontamentos feitos para suas aulas. Também na época de Aristóteles, a filosofia era essencialmente uma atividade oral.
A importância de Aristóteles para a cultura européia está também no fato de ele ter criado uma linguagem técnica usada ainda hoje pelas mais diversas ciências. Ele foi o grande sistematizador, o homem que fundou e ordenou as várias ciências.
Como Aristóteles escreveu sobre todas as ciências, vou me limitar a tratar aqui sobre algumas das áreas mais importantes.
E como me detive tanto em Platão, quero falar a você primeiramente sobre os argumentos de Aristóteles contra a teoria das idéias de Platão. Na seqüência, veremos como ele formulou sua própria filosofia natural. Afinal, Aristóteles resumiu o que os filósofos naturais haviam dito antes dele. Veremos também como ele tenta colocar em ordem nossos conceitos e funda a lógica como ciência. Por fim, vou falar um pouco sobre a visão que Aristóteles tinha do homem e da sociedade.
Se você aceita este roteiro, então só nos resta arregaçar as mangas e começar.
AS IDÉIAS NÃO SÃO INATAS
(Páginas 122-124.)
Assim como os filósofos que o antecederam, Platão também queria encontrar algo de eterno e de imutável em meio a todas as mudanças. Foi assim que ele chegou às idéias perfeitas, que estão acima do mundo sensorial. Além disso, Platão considerava essas idéias mais reais do que os próprios fenômenos da natureza. Primeiro vinha a idéia “cavalo” e depois todos os cavalos do mundo dos sentidos, trotando como sombras projetadas sobre a parede de uma caverna. A idéia “galinha” vinha, portanto, antes da galinha e do ovo.
Aristóteles achava que Platão tinha virado tudo de cabeça para baixo. Ele concordava com seu mestre em que o exemplar isolado do cavalo “flui”, passa, e que nenhum cavalo vive para sempre. Ele também concordava que, em si, a forma do cavalo era eterna e imutável. Mas a “idéia” cavalo não passava para ele de um conceito criado pelos homens e para os homens, depois de eles terem visto um certo número de cavalos. A “idéia” ou a “forma” cavalo não existia, portanto, antes da experiência vivida. Para Aristóteles, a “forma” cavalo consiste nas características do cavalo, ou seja, naquilo que chamaríamos de espécie.
Vou explicar melhor: Aristóteles entendia por “forma” aquilo que todos os cavalos têm em comum. E aqui a imagem da fôrma de fazer broas perde a sua validade, pois as fôrmas de fazer broas existem independentemente de cada broa em particular. Aristóteles não acreditava que houvesse na natureza um armário, por assim dizer, com fôrmas desse tipo. Para ele, as “formas” estavam dentro das próprias coisas; as “formas” das coisas eram suas características próprias.
Aristóteles também não concordava com Platão no que se refere ao fato de a “idéia” galinha vir antes da galinha propriamente dita. Aquilo que Aristóteles chama de a “forma” galinha está em todas as galinhas e são as características que distinguem as galinhas. Por exemplo, o fato de elas botarem ovos. Assim, a galinha em si e a “forma” galinha são duas coisas tão inseparáveis quanto o corpo e a alma.
Com isto resumimos a essência das críticas de Aristóteles à teoria das idéias de Platão. Mas você deve atentar bem para o fato de estarmos falando de uma dramática mudança de pensamento. Para Platão, o grau máximo de realidade está em pensarmos com a razão. Para Aristóteles, ao contrário, era evidente que o grau máximo de realidade está em percebermos ou sentirmos com os sentidos. Platão considera tudo o que vemos ao nosso redor na natureza meros reflexos de algo que existe no mundo das idéias e, por conseguinte, também na alma humana. Aristóteles achava exatamente o contrário: o que existe na alma humana nada mais é do que reflexos dos objetos da natureza. Para Aristóteles, Platão foi prisioneiro de uma visão mítica do mundo, que confundia as idéias dos homens com a realidade do mundo.
Aristóteles nos chama a atenção para o fato de que não existe nada na consciência que já não tenha sido experimentado antes pelos sentidos. Platão poderia ter dito que não existe nada na natureza que não tivesse existido antes no mundo das idéias. Aristóteles achava que, desta forma, Platão estava duplicando o número de coisas. Ele tinha explicado o exemplar isolado do cavalo fazendo referência à “idéia” cavalo. Mas que tipo de explicação é esta, Sofia? Quero dizer, de onde saiu a “idéia cavalo”? Será que, nessa linha de raciocínio, não poderia existir ainda um terceiro cavalo, de que a “idéia” cavalo não fosse senão uma imitação?
Aristóteles achava que todas as nossas idéias e pensamentos tinham entrado em nossa consciência através do que víamos e ouvíamos. Mas nós também temos uma razão inata. Temos uma capacidade inata de ordenar em diferentes grupos e classes todas as nossas impressões sensoriais. É assim que surgem conceitos como os de “pedra”, “planta”, “animal” e “homem”. É assim que surgem os conceitos de “cavalo”, “lagosta” e “canarinho”.
Aristóteles não negava que o homem tivesse uma razão inata. Muito pelo contrário: para ele, a razão era precisamente a característica mais importante do homem. Só que nossa razão permanece “vazia” enquanto não percebemos nada. Uma pessoa, portanto, não possui “idéias” inatas.
AS FORMAS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DAS COISAS
(Páginas 124-125.)
Após ter marcado bem a sua posição em relação à teoria das idéias de Platão, Aristóteles constatou que a realidade consiste em várias coisas isoladas, que representam uma unidade de forma e substância. A “substância” é o material de que a coisa se compõe, ao passo que a “forma” são as características peculiares da coisa.
Uma galinha bate as asas na sua frente, Sofia. A “forma” da galinha é precisamente o bater de asas, o cacarejar e a postura de ovos. Assim, a “forma” da galinha são as características próprias da espécie. Em outras palavras, a “forma” da galinha é aquilo que ela faz. Quando a galinha morre – e, portanto, pára de cacarejar -, a “forma” da galinha também deixa de existir. A única coisa que resta é a “substância” da galinha (que triste, não, Sofia?). Mas aquilo não é mais uma galinha.
Como já disse, Aristóteles se interessava pelas mudanças da natureza. A substância sempre encerra a possibilidade de vir a adquirir determinada forma. Podemos dizer que a substância se esforça por concretizar uma possibilidade que lhe é inerente. Assim, para Aristóteles, toda mudança observada na natureza é uma transformação, ocorrida na substância, de uma possibilidade para uma realidade.
Sim, sim, Sofia… vou explicar melhor. E vou tentar fazê-lo contando a você uma história engraçada. Era uma vez um escultor que vivia debruçado sobre um grande bloco de granito. Todos os dias ele dava umas batidinhas naquela pedra amorfa. Um dia, um jovem veio visitá-lo. – O que você está procurando? – perguntou o jovem. – Espere e verá – respondeu o escultor. Depois de alguns dias o jovem voltou e o escultor tinha “tirado da pedra” um belo cavalo. Surpreso, o jovem ficou um longo tempo parado diante do cavalo, até que perguntou ao escultor: - Como é que você sabia que ele estava lá dentro?
Sim, como é que ele sabia? De certa forma, o escultor tinha visto a forma do cavalo no bloco de granito, pois precisamente este bloco de granito encerrava a possibilidade de se transformar num cavalo. Aristóteles achava que todas as coisas da natureza encerram a possibilidade de concretizar determinada forma.
Vamos voltar ao ovo e à galinha. Um ovo de galinha encerra a possibilidade de se transformar numa galinha. Isto não significa que todos os ovos de galinha chegam a se transformar em galinhas; afinal, muitos deles acabam na mesa do café da manhã como ovos fritos, mexidos ou como omelete, sem que a forma inerente ao ovo chegue a se concretizar. Do mesmo modo, porém, também é claro que um ovo de galinha jamais irá se transformar num ganso. Esta possibilidade não é inerente ao ovo de galinha. A forma de uma coisa, portanto, diz tanto sobre as suas possibilidades quanto sobre suas limitações.
Quando Aristóteles fala de “forma” e “substância”, ele não está pensando apenas em organismos vivos. Assim como a “forma” de uma galinha é cacarejar, bater as asas e pôr ovos, a “forma” de uma pedra é voltar ao chão quando atirada para o alto. Assim como a galinha não pode deixar de cacarejar, também a pedra não consegue deixar de cair no chão. É claro que você pode apanhar uma pedra e jogá-la bem para o alto, mas como é da natureza da pedra voltar a cair no chão, você não vai conseguir jogá-la na Lua. (Tome cuidado ao fazer este experimento, pois a pedra pode se vingar. Ela pode querer voltar para a Terra o mais rapidamente possível, e pobre daquele que estiver no seu caminho!)
A CAUSA FINAL, OU DA FINALIDADE
(Páginas 126-127.)
Antes de deixarmos de lado o fato de que todas as coisas vivas e mortas têm uma forma que diz alguma coisa sobre as possibilidades dessas coisas, devo acrescentar ainda que Aristóteles tinha uma notável visão das relações de causa e efeito na natureza.
No nosso dia-a-dia, quando falamos das “causas” disso ou daquilo, referimo-nos a como as coisas acontecem. A vidraça se quebra, porque Peter atirou uma pedra. Um sapato passa a existir porque um sapateiro costurou alguns pedaços de couro. Mas Aristóteles acreditava que na natureza havia diferentes tipos de causas. É importante saber, sobretudo, o que ele entendia por aquilo que chamou de causa da finalidade.
No caso da janela quebrada, também seria pertinente perguntar por que Peter atirou a pedra. Estamos perguntando, portanto, que intenção ele tinha, que objetivo ele perseguia. Também não há dúvida de que a intenção ou a finalidade desempenham um papel importante no caso da manufatura do sapato. Mas Aristóteles também partia de uma tal causa da finalidade para explicar alguns processos vivos da natureza. Vamos citar apenas um exemplo.
Por que chove, Sofia? Na certa você aprendeu na escola que chove porque o vapor d’água esfria nas nuvens e condensa na forma de gotas de chuva que, por causa da força da gravidade, caem no chão. Aristóteles também teria acenado com a cabeça em sinal de concordância. Mas ele teria acrescentado que, até agora, você só citou três causas. A “causa substancial” ou causa material, que é o fato de o vapor d’água em questão (as nuvens) estar ali bem na hora em que o ar esfriou; a “causa atuante” ou causa eficiente, que é o fato de o vapor d’água esfriar, e a causa formal, que é o fato de ser inerente à “forma” ou à natureza da água cair no chão. Se você não tivesse dito mais nada, Aristóteles teria acrescentado que chove porque as plantas e os animais precisam da água da chuva para crescer. É isto que ele chama de a causa final, ou da finalidade. Como você pode ver, de repente Aristóteles atribuiu às gotas de chuva uma espécie de tarefa vital, um “propósito”.
Nós provavelmente inverteríamos as coisas e diríamos que as plantas crescem porque há umidade. Você está vendo a diferença, Sofia? Aristóteles acreditava que por trás de tudo na natureza havia um propósito, uma finalidade. Chove para que as plantas cresçam e as laranjas e as uvas possam crescer e servir de alimento aos homens.
Hoje em dia a ciência não pensa mais assim. Dizemos que os alimentos e a água são condições para que homens e animais possam existir. Sem essas condições nós não existiríamos. Mas não é intenção das laranjas ou da água nos alimentar.
No que se refere à sua teoria das causas, podemos nos sentir tentados a afirmar que Aristóteles se enganou. Mas não vamos nos apressar demais. Muitas pessoas acreditam que Deus criou o mundo para que homens e animais possam nele viver. Deste ponto de vista, podemos naturalmente afirmar que a água corre nos rios porque homens e animais precisam de água para viver. Só que neste caso estamos falando do propósito ou da intenção de Deus. Não que as gotas de chuva ou a água dos rios gostem de nós e queiram nos proteger.
LÓGICA
(Páginas 127-129.)
A diferença entre “forma” e “substância” também é muito importante quando Aristóteles descreve como o homem reconhece as coisas do mundo.
Quando reconhecemos as coisas, nós as ordenamos em diferentes grupos ou categorias. Por exemplo, vejo um cavalo hoje, outro amanhã e outro depois de amanhã. Os cavalos não são exatamente iguais, mas há alguma coisa que é comum a todos os cavalos. E esta coisa que é comum a todos os cavalos é a “forma” do cavalo. Tudo o que é distintivo ou individual pertence à “substância” do cavalo.
E assim vamos nós pelo mundo, colocando as coisas em gavetas diferentes. Colocamos vacas no curral, cavalos no estábulo, porcos no chiqueiro e galinhas no galinheiro. O mesmo acontece quando Sofia Amundsen limpa o seu quarto. Ela coloca os livros na estante, os cadernos na mochila e as revistas na gaveta da escrivaninha. As roupas são cuidadosamente dobradas: peças íntimas são colocadas numa gaveta, malhas de lã em outra e meias em outra. Veja que fazemos o mesmo nas nossas cabeças: estabelecemos a diferença entre coisas que são feitas de pedra, coisas de algodão e coisas de borracha. Distinguimos coisas vivas de coisas mortas, e “plantas” de “animais” e de “seres humanos”.
Você está acompanhando, Sofia? Aristóteles queria, portanto, arrumar o quarto da jovem natureza. Ele tentou mostrar que todas as coisas na natureza pertenciam a diferentes grupos e subgrupos. (Hermes é um ser vivo. Ou melhor, um animal. Ou melhor, um animal vertebrado. Ou melhor, um mamífero. Ou melhor, um cachorro. Ou melhor, um labrador. Ou melhor, um labrador macho.)
Vá até o seu quarto, Sofia. Pegue qualquer objeto que estiver no chão. Qualquer um, não importa. Você verá que o objeto que você pegou está inserido numa ordem superior. Quando encontramos uma coisa que não conseguimos classificar, levamos um verdadeiro choque. Por exemplo, se você se depara com uma pequena coisa e não sabe dizer ao certo se esta coisa pertence ao reino animal, vegetal ou mineral, acho que você não ousaria tocá-la.
Reino animal, vegetal ou mineral. Foi isto o que eu disse. Estou pensando naquele jogo de salão em que um pobre coitado é mandado para fora da sala enquanto os outros ficam pensando no que o pobre coitado terá de adivinhar quando voltar. Os outros decidem pensar em Mons, o gato do vizinho que nessa hora está no jardim. Então o pobre coitado entra de novo na sala e começa a adivinhar. Os outros só podem responder com “sim” e “não”. Se o pobre coitado for um bom aristotélico – e neste caso não seria um pobre coitado -, o diálogo entre ele e os demais bem que poderia ser este: É concreto? (Sim!) Pertence ao reino mineral? (Não!) É vivo? (Sim!) Pertence ao reino vegetal? (Não!) É um animal? (Sim!) É um pássaro? (Não!) É um mamífero? (Sim!) Isto é tudo sobre o bicho? (Sim!) É um gato? (Sim!) É Mons? (Siiiimm! Risadas…).
Foi Aristóteles, portanto, quem inventou esta brincadeira. A Platão atribuímos a honra de ter inventado o “esconde-esconde”; e a Demócrito, a honra de ter inventado as pedrinhas de Lego.
Aristóteles foi um organizador, um homem extremamente meticuloso, que queria pôr ordem nos conceitos dos homens. De fato, ele também fundou a ciência da lógica, e estabeleceu uma série de normas rígidas para que conclusões ou provas pudessem ser consideradas logicamente válidas. Vamos ver um exemplo: se constato primeiramente que “todas as criaturas vivas são mortais” (primeira premissa), e depois constato que “Hermes é uma criatura viva” (segunda premissa), então posso tirar a elegante conclusão de que “Hermes é mortal”.
O exemplo nos mostra que a lógica de Aristóteles trata da relação entre conceitos; neste caso, “criatura viva” e “mortal”. Mesmo que tenhamos que concordar com Aristóteles em que a conclusão tirada é cem por cento correta, temos de admitir que ele não nos diz nada de novo. Afinal de contas, nós já sabíamos que Hermes é “mortal”. (Ele é um cachorro, e todos os cachorros são “criaturas vivas” e, portanto, “mortais” por oposição às pedras da montanha.) Sim, Sofia, já sabíamos disso. Mas nem sempre a relação entre grupos ou coisas nos parece tão evidente. De vez em quando pode ser necessário pôr certa ordem em nossos conceitos.
Vou citar apenas um exemplo: será que realmente é verdade que um filhotinho de rato, minúsculo, pode mamar tal como um carneiro ou um porco? Isto parece muito estranho, mas vamos raciocinar um pouco: ratos não botam ovos (onde é que já se viu um ovo de rato?). Isto significa que seus filhotes são criaturas que já nascem vivas, exatamente como os porcos e os carneiros. Chamamos de mamíferos os animais que dão à luz filhotes vivos, e os mamíferos são animais que mamam o leite de suas mães. Chegamos, assim, aonde queríamos. A resposta já estava dentro de nós, só que precisávamos primeiro pensar um pouco. Na pressa tínhamos nos esquecido de que os ratos realmente mamam o leite de suas mães. Talvez isto se deva ao fato de nós nunca termos visto um ratinho mamando. E isto, por sua vez, se explica pelo fato de que os ratos têm um pouco de vergonha dos homens quando estão amamentando seus filhotes.
A ESCADA DA NATUREZA
(Páginas 129-131.)
No seu projeto de “colocar ordem” na vida, Aristóteles chama a atenção primeiramente para o fato de que tudo o que ocorre na natureza pode ser dividido em dois grupos principais. De um lado, temos as coisas inanimadas tais como pedras, gotas de água e torrões de terra. Essas coisas não encerram em si uma potencialidade de transformação. Segundo Aristóteles, elas só podem se transformar sob a ação de agentes externos. De outro lado, temos as criaturas vivas, que possuem dentro de si uma potencialidade de transformação.
Para Aristóteles, a natureza progride paulatinamente das coisas inanimadas para as criaturas vivas. Ao reino das coisas inanimadas segue-se primeiramente o reino das plantas, que, “em relação ao reino das coisas inanimadas, parece quase animado, e em relação ao reino dos animais parece quase inanimado”. Finalmente, Aristóteles divide o reino das criaturas vivas em dois subgrupos, o dos animais e o do homem.
Não podemos deixar de reconhecer que esta divisão, apesar da nítida insegurança em relação às plantas, é clara e simples. Há uma grande diferença entre as coisas vivas e as não vivas. Também entre as plantas e os animais existe uma enorme diferença; por exemplo, entre uma rosa e um cavalo. E também quero dizer que há uma grande diferença entre um cavalo e um homem. Mas onde estão exatamente essas diferenças? Será que você é capaz de me responder?
Infelizmente não tenho tempo de esperar que você escreva a sua resposta e a coloque num envelope cor-de-rosa junto com um torrão de açúcar [P. 75: “No momento seguinte, um enorme cão labrador entrou no esconderijo vindo do lado da floresta. Na boca ele trazia um grande envelope amarelo, que deixou cair aos pés de Sofia. (…) Aquele era o mensageiro! Sofia respirou aliviada. Por isso é que as bordas dos envelopes estavam sempre úmidas. Por isso, também, é que os envelopes tinham aquelas marcas. Marcas de dentes, agora ela sabia. Como ela não tinha pensado nisso antes? Agora sim fazia sentido a orientação que o filósofo lhe dera de colocar no envelope um docinho ou um torrão de açúcar quando quisesse mandar uma carta para ele.”]. Por isso prefiro responder eu mesmo e agora. Quando Aristóteles divide os fenômenos da natureza em diferentes grupos, ele parte das características das coisas; melhor dizendo, daquilo que elas são capazes ou daquilo que elas fazem.
Tudo o que vive (plantas, animais e pessoas) tem a capacidade de se alimentar, crescer e se multiplicar. Os animais e os homens têm, além disso, a capacidade de perceber o mundo que os cerca e de se locomover na natureza. E todas as pessoas têm, somada a tudo isto, a capacidade de pensar – ou melhor, a capacidade de ordenar suas impressões sensoriais em diferentes grupos e classes.
Desta forma, não existem na natureza divisões realmente estanques. Podemos perceber uma transição gradual de vegetais simples para plantas mais complexas, de animais simples para animais mais complexos. Bem no alto desta “escada” está o homem, que, para Aristóteles, vive a plenitude da vida da natureza. O homem cresce e se alimenta como as plantas, tem sentimentos e capacidade de locomoção como os animais, mas possui além de tudo isto uma característica muito especial, que só ele tem: a capacidade de pensar racionalmente.
Por isso, Sofia, o homem possui uma centelha da razão divina. Isso mesmo… eu disse “divina”. Em algumas passagens, Aristóteles explica que deve haver um Deus que colocou em marcha todos os movimentos da natureza. E, assim, Deus passa a assumir o cume absoluto da escada da natureza.
Para Aristóteles, os movimentos das estrelas e dos planetas comandavam os movimentos aqui na Terra. Mas devia haver alguma coisa que fazia os corpos celestes se movimentarem. Esta coisa Aristóteles chamava de o primeiro impulsor, ou Deus. Este primeiro impulsor não se movimenta, mas é a causa primordial de todos os movimentos dos corpos celestes e, por conseqüência, dos movimentos na natureza.
ÉTICA
(Páginas 131-132.)
Vamos voltar ao homem, Sofia. Para Aristóteles, a “forma” do homem se define por ele possuir tanto uma “alma vegetal” quanto uma “alma animal” e uma “alma racional”. E Aristóteles pergunta: como o homem deve viver? Do que o homem precisa para viver uma boa vida?
Posso responder resumidamente: o homem só é feliz se puder desenvolver e utilizar todas as suas capacidades e possibilidades.
Aristóteles acreditava em três formas de felicidade: a primeira forma de felicidade é uma vida de prazeres e satisfações. A segunda forma de felicidade é uma vida como cidadão livre, responsável. E a terceira forma de felicidade é a vida como pesquisador e filósofo.
Aristóteles sublinha o fato de que é preciso integrar essas três formas a fim de que o homem possa levar uma vida realmente feliz. Ele recusa, portanto, toda e qualquer decisão unilateral. Se Aristóteles vivesse hoje, talvez ele dissesse que a vida de uma pessoa que só cultiva o corpo é tão unilateral – e portanto tão lacunosa – quanto a vida de outra que só usa a cabeça. Ambos os extremos são expressões de um modo errado de viver a vida.
Também no que concerne às virtudes, Aristóteles chama a atenção para um “meio-termo de ouro”. Não devemos ser nem covardes, nem audaciosos, mas corajosos. (Coragem de menos significa covardia e coragem demais significa audácia.) Também não devemos ser nem avarentos, nem extravagantes, mas generosos. (Generosidade de menos é avareza e generosidade demais é extravagância.)
O mesmo vale para a alimentação. Comer de menos é perigoso, mas comer demais também o é. A ética de Platão e de Aristóteles lembra a ciência médica grega: só através do equilíbrio e da moderação é que podemos nos tornar pessoas felizes ou “harmônicas”.
POLÍTICA
(Página 132.)
A visão de sociedade de Aristóteles também expressa essa necessidade de moderação, esse abandono do exagero. Ele chama o homem de um “ser político”. Aristóteles acha que sem a sociedade ao nosso redor não somos pessoas no verdadeiro sentido do termo. Nesse contexto, a família e a cidade satisfazem nossas necessidades vitais primárias, como a comida e o calor, o casamento e a criação de filhos. Mas a forma mais elevada do convívio humano, para Aristóteles, só pode ser o Estado.
E aqui surge a pergunta de como o Estado deve ser organizado. (Você ainda se lembra do Estado dos filósofos de Platão?) Aristóteles cita diversas boas formas de Estado. Uma delas é a monarquia, ou seja, aquela em que há um único chefe de Estado. Mas para que esta forma de Estado seja boa, ela não pode degenerar em “tirania”, na qual o único soberano comanda e dirige o Estado em proveito próprio. Outra boa forma de Estado é a aristocracia. Aqui, um grupo maior ou menor de soberanos governa o Estado. Esta forma de Estado deve cuidar para não acabar virando o governo de uns poucos, que dirigem o Estado em prol de seus próprios interesses. Seria mais ou menos o que chamaríamos hoje de “oligarquia”. Uma terceira boa forma de Estado é a democracia. Mas também esta forma de Estado tem o seu lado negativo. Uma democracia pode facilmente desvirtuar e se transformar no chamado domínio da plebe. (Ainda que o tirano Hitler não tivesse se tornado o chefe de Estado da Alemanha, uma multidão de pequenos nazistas teria conseguido instituir um terrível “domínio da plebe”.)
A VISÃO DA MULHER
(Páginas 132-133.)
Para concluir, precisamos dizer alguma coisa sobre a visão que Aristóteles tinha da mulher. Infelizmente, ela não era tão animadora quanto a de Platão. Fundamentalmente, Aristóteles achava que faltava alguma coisa à mulher. Para ele, a mulher era “um homem incompleto”. Na reprodução, a mulher é passiva e receptora, enquanto o homem é ativo e produtivo. Por esta razão é que – segundo Aristóteles – o filho do casal herdava apenas as características do pai. Aristóteles acreditava que todas as características da criança já estavam presentes no sêmen do pai. Para ele, a mulher era apenas o solo que acolhia e fazia germinar a semente que vinha do “semeador”, ou seja, do homem. Para colocarmos a coisa em termos verdadeiramente aristotélicos: o homem dá a “forma”; a mulher, a “substância”.
É surpreendente e mesmo lamentável que um homem como Aristóteles, tão inteligente para tantos assuntos, pudesse se enganar desse jeito no que se refere à relação entre os sexos. Mas isto nos mostra duas coisas: primeiro, que Aristóteles não deve ter tido muita experiência prática na vida com mulheres e crianças; em segundo lugar, que uma série de coisas pode dar errado quando são apenas os homens que reinam supremos na filosofia e na ciência.
A visão distorcida que Aristóteles tinha da mulher surtiu efeitos particularmente danosos, pois foi ela – e não a visão de Platão – que predominou durante toda a Idade Média. Desta forma, a Igreja herdou uma visão da mulher para a qual não há qualquer fundamento na Bíblia. Afinal de contas, Jesus certamente não foi um inimigo das mulheres!
Vou ficando por aqui. Mas você logo vai ter notícias minhas.
CAPÍTULO 12 (EXCERTO)
O HELENISMO
O HELENISMO
(Páginas 144-145.)
É bom rever você, Sofia! Você já viu alguma coisa sobre os filósofos da natureza, Sócrates, Platão e Aristóteles. Com isto você já conhece as bases da filosofia européia. Daqui para a frente vamos nos poupar aqueles envelopinhos brancos com perguntas introdutórias. Suponho que na escola você já tenha lições e provas suficientes.
Vou lhe contar um pouco sobre o longo período que separa Aristóteles, no final do século IV a.C., do começo da Idade Média, por volta de 400 d.C. Note que escrevemos “antes” e “depois de Cristo”, isto porque o cristianismo foi precisamente um dos fatores mais importantes, e também mais misteriosos, deste período.
Aristóteles morreu no ano de 322 a.C., e nesse meio tempo Atenas tinha perdido a sua posição de hegemonia. Isto estava relacionado, entre outras coisas, com as grandes transformações políticas que vieram em decorrência das conquistas de Alexandre Magno (356-323 a.C.).
Alexandre Magno era rei da Macedônia. Aristóteles também era natural da Macedônia e por algum tempo chegou mesmo a ser professor do jovem Alexandre. Foi Alexandre quem conseguiu a derradeira e decisiva vitória sobre os persas. E mais ainda, Sofia: com suas muitas campanhas bélicas, ele uniu o Egito e todo o Oriente, até a Índia, à civilização grega.
Começou então uma era completamente nova na história da humanidade. Surgiu uma comunidade internacional, na qual a cultura e a língua gregas desempenhavam papel preponderante. Este período, que durou cerca de trezentos anos, é freqüentemente chamado de helenismo. Por helenismo entendemos a cultura predominantemente grega vigente nos três grandes reinos helênicos, a Macedônia, a Síria e o Egito.
A partir do ano de 50 a.C., aproximadamente, Roma passou a assumir o predomínio militar. Esta nova grande potência foi conquistando um a um todos os reinos helênicos, e a cultura romana, bem como a língua latina, passaram a predominar da Espanha, no Ocidente, até o extremo da Ásia. Começou então o período romano, por nós também conhecido como o final da Antigüidade. Mas há aqui uma coisa importante que você precisa gravar: antes de os romanos conquistarem o mundo helênico, a própria Roma tinha sido uma província da cultura grega. Não é de estranhar, portanto, que a cultura grega – e a filosofia grega – tenha continuado a desempenhar um papel importante, muito tempo depois de a importância política dos gregos já ter sido esquecida.
RELIGIÃO, FILOSOFIA E CIÊNCIA
(Páginas 145-147.)
O helenismo foi marcado pelo desaparecimento das fronteiras entre os diferentes países e culturas. Anteriormente, gregos, romanos, egípcios, babilônios, sírios e persas tinham adorado seus deuses dentro dos limites de suas próprias religiões. Agora, todas essas diferentes culturas foram misturadas num caldeirão, por assim dizer, de concepções religiosas, filosóficas e científicas.
Talvez não seja exagero dizer que a praça do mercado municipal foi substituída pela arena mundial. Antes desta época, também se ouvia nas praças uma confusão de vozes oferecendo ora diferentes mercadorias, ora diferentes pensamentos e idéias. A novidade agora era que as praças dos mercados estavam cheias de mercadorias e idéias do mundo inteiro. E esta “confusão de vozes” acontecia agora em diferentes línguas.
Já dissemos que a cosmovisão dos gregos tinha ultrapassado em muito as fronteiras da antiga Grécia. Com o tempo, porém, muitas divindades orientais também passaram a ser adoradas em toda a região do Mediterrâneo. Surgiram várias religiões novas, que tomavam emprestadas de diferentes culturas antigas suas concepções religiosas. Falamos aqui de uma mistura de religiões, ou de um sincretismo religioso.
Anteriormente a isto, as pessoas tinham experimentado um sentimento de afinidade muito forte com seu próprio povo e com sua própria cidade-Estado. À medida que tais fronteiras e linhas divisórias foram sendo paulatinamente apagadas, elas passaram a experimentar uma sensação de dúvida e de incerteza em relação à sua filosofia de vida. O final da Antigüidade foi marcado predominantemente por dúvidas religiosas, dissolução cultural e pessimismo. Dizia-se que o mundo “tinha envelhecido”.
As novas religiões surgidas durante o helenismo tinham em comum o fato de pretenderem ensinar a seus fiéis como obter salvação para a morte. Muitos desses ensinamentos eram mantidos em segredo. Mediante a iniciação em determinados círculos secretos e mediante o cumprimento de certos rituais, o homem podia ter esperança na imortalidade da alma e numa vida eterna. Nesse sentido, certa iniciação na verdadeira natureza do universo podia ser tão importante para a salvação da alma quanto os rituais religiosos.
De modo geral, podemos dizer que a filosofia do helenismo não teve nada de muito original. Não apareceu outro Platão, nem outro Aristóteles. Mas os três grandes filósofos de Atenas se transformaram em fonte de inspiração para diferentes correntes filosóficas, que vou tentar resumir a seguir.
Também a ciência do helenismo foi marcada pela mistura de diferentes experiências culturais. Nesse particular, a cidade de Alexandria, no Egito, desempenhava um papel-chave como ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente. Enquanto Atenas, com as escolas filosóficas deixadas por Platão e Aristóteles, continuou sendo a capital da filosofia, Alexandria transformou-se na metrópole da ciência. Com sua grande biblioteca, esta cidade passou a ser o centro da matemática, astronomia, biologia e medicina.
A cultura helênica pode muito bem ser comparada com o mundo de hoje. O século XX também é marcado por uma comunidade internacional cada vez mais aberta. À semelhança do que ocorreu no mundo helênico, também em nossa época este fato tem gerado grandes transformações na religião e nas visões de mundo. Do mesmo modo como podíamos encontrar em Roma, no início do calendário cristão, concepções religiosas gregas, egípcias e orientais, também agora, no final do século XX, podemos encontrar em todas as cidades européias de porte médio concepções religiosas oriundas de todas as partes do mundo.
Outro dado interessante é o fato de, em nossa época, vermos como a mescla de religiões novas e antigas, filosofia e ciência pode criar as bases para novas ofertas no “mercado de visões de mundo”.
Grande parte deste “conhecimento novo” é, na verdade, herança de um pensamento antigo, cujas raízes remontam ao helenismo, entre outros períodos.
Como já dissemos, a filosofia do helenismo continuou a investigar os problemas levantados por Sócrates, Platão e Aristóteles. O ponto comum entre eles era o desejo de responder às perguntas sobre qual seria a melhor maneira de o homem viver e morrer. Assim, a ética também foi colocada na ordem do dia e se transformou no mais importante projeto filosófico da nova comunidade internacional. A questão era saber em que consistia a verdadeira felicidade e como ela podia ser alcançada.
Vamos estudar brevemente quatro dessas correntes filosóficas.
OS CÍNICOS
(Páginas 147-148.)
Conta-se que, um dia, Sócrates parou diante de uma tenda do mercado em que estavam expostas diversas mercadorias. Depois de algum tempo, ele exclamou: “Vejam quantas coisas o ateniense precisa para viver!”. Naturalmente ele queria dizer com isto que ele próprio não precisava de nada daquilo.
Esta postura de Sócrates foi o ponto de partida para a filosofia cínica, fundada em Atenas por Antístenes – um discípulo de Sócrates -, por volta de 400 a.C.
Os cínicos diziam que a verdadeira felicidade não depende de fatores externos como o luxo, o poder político e a boa saúde. Para eles, a verdadeira felicidade consistia em se libertar dessas coisas casuais e efêmeras. E justamente porque a felicidade não estava nessas coisas ela podia ser alcançada por todos. E, uma vez alcançada, não podia mais ser perdida.
O cínico mais importante foi Diógenes, discípulo de Antístenes. Conta-se que ele vivia dentro de um barril e não possuía mais do que uma túnica, um cajado e um embornal de pão. (Desse jeito não era nada fácil roubar dele sua felicidade!) Um dia, quando estava sentado ao sol junto ao seu barril, recebeu a visita de Alexandre Magno. Alexandre aproximou-se do sábio, perguntou-lhe se ele tinha algum desejo e disse-lhe que, caso tivesse, seu desejo seria imediatamente satisfeito. Ao que Diógenes respondeu: “Sim, desejo que te afastes da frente do meu sol”. Com isto Diógenes mostrou que era mais rico e mais feliz que o grande conquistador. Ele tinha tudo o que desejava.
Os cínicos achavam que as pessoas não precisavam se preocupar com a saúde, nem mesmo com o sofrimento e com a morte. E elas também não deveriam se atormentar com o sofrimento dos outros. Hoje em dia, quando empregamos as palavras “cínico” e “cinismo” estamos nos referindo, na maioria das vezes, a apenas este aspecto: o da impudência, da insensibilidade ao sentir e ao sofrer do outro.
OS ESTÓICOS
(Páginas 148-149.)
Os cínicos foram de grande importância para a filosofia estóica, que surgiu em Atenas por volta de 300 a.C. Seu fundador foi Zenão, originário da ilha de Chipre, que se transferiu para Atenas depois de ter sobrevivido a um naufrágio. Ele reunia seus ouvintes debaixo de um pórtico. O substantivo estóico vem da palavra grega para “pórtico” (stoa). O estoicismo teria mais tarde grande importância para a cultura romana.
Assim como Heráclito, os estóicos diziam que todas as pessoas eram parte de uma mesma razão universal, ou “logos”. Eles consideravam cada pessoa um mundo em miniatura, um “microcosmo”, que era reflexo do “macrocosmo”.
Isto levou à idéia de um direito universalmente válido, o assim chamado direito natural. O direito natural baseia-se na razão atemporal do homem e do universo e, por isso mesmo, não se modifica no tempo e no espaço. Nesse sentido, os estóicos colocam-se ao lado de Sócrates contra os sofistas.
O direito natural vale para todas as pessoas, inclusive para os escravos. Para os estóicos, as legislações dos diferentes Estados não passavam de imitações imperfeitas de um direito cujas bases estavam na própria natureza.
Assim como apagavam a diferença entre o indivíduo e o universo, os estóicos também negavam a oposição entre “espírito” e “matéria”. Para eles existia apenas uma natureza. Chamamos tal concepção de monismo (em oposição, por exemplo, ao claro dualismo, à bipartição da realidade, de Platão).
Os estóicos eram marcadamente “cosmopolitas”, o que significa que eram filhos legítimos de sua época. Sendo cosmopolitas eram mais abertos para a cultura contemporânea do que os “filósofos de barril” (os cínicos). Os estóicos chamavam a atenção para a convivência entre as pessoas, interessavam-se por política, e alguns deles chegaram até mesmo a ser estadistas atuantes, como o imperador romano Marco Aurélio (121-180), por exemplo. Graças a esses homens, e sobretudo ao orador, filósofo e político Cícero (106-43 a.C.), a cultura e a filosofia gregas conquistaram terreno em Roma. Foi Cícero quem cunhou o conceito de humanismo enquanto cosmovisão na qual o homem ocupa o ponto central. Alguns anos depois, o estóico Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) escreveu que “para a humanidade, a humanidade é sagrada”. Esta afirmação ficou para a posteridade como uma espécie de slogan do humanismo.
Além disso, os estóicos diziam que todos os processos naturais – por exemplo, a enfermidade e a morte – eram regidos pelas constantes leis da natureza. Por esta razão, o homem deveria aprender a aceitar o seu destino. Nada acontece por acaso, diziam os estóicos. Tudo acontece porque tem de acontecer e de nada adianta alguém lamentar a sorte quando o destino bate à sua porta. Também as coisas felizes da vida devem ser aceitas pelo homem com grande tranqüilidade. Vemos aqui a proximidade dos estóicos com os cínicos, que viam com total indiferença todos esses eventos exteriores. Ainda hoje falamos de uma “tranqüilidade estóica” quando queremos nos referir a uma pessoa que não se deixa inflamar por seus sentimentos.
OS EPICUREUS
(Páginas 149-151.)
Como vimos, Sócrates queria descobrir como o homem podia levar uma boa vida. Na interpretação de Sócrates feita pelos cínicos e estóicos, isto estava na necessidade de o homem se libertar de todo o luxo material. Mas Sócrates também teve um aluno chamado Aristipo. Para ele, o objetivo da vida seria obter dos sentidos o máximo possível de satisfação. Aristipo dizia que o prazer era o bem supremo, e a dor, o mal supremo. Assim, seu objetivo maior era desenvolver uma filosofia de vida capaz de afastar toda e qualquer forma de dor e sofrimento. (O objetivo dos cínicos e dos estóicos era suportar todas as formas de dor, e isto é algo completamente diferente de fazer todo o esforço para tirar do caminho a dor.)
Por volta de 300 a.C. Epicuro (341-270 a.C.) funda em Atenas uma escola filosófica: a escola dos epicureus. Ele desenvolveu ainda mais a ética do prazer de Aristipo e a combinou com a teoria do átomo de Demócrito.
Conta-se que os epicureus reuniam-se num jardim. Por esta razão, também eram chamados de “filósofos do jardim”. Dizem também que sobre o portão de entrada do jardim havia a seguinte inscrição: “Forasteiro, aqui te sentirás bem. Aqui, o bem supremo é o prazer”.
Epicuro ensinava que o resultado prazeroso de uma ação sempre deve ser ponderado em relação a seus eventuais efeitos colaterais. Se você já comeu chocolate demais, então você entende o que digo. Se não, vou lhe propor uma tarefa: pegue todas as suas economias e gaste cem coroas em chocolate. (Estou partindo do pressuposto de que você gosta de chocolate.) O importante nesta tarefa é que você coma todo o chocolate de uma só vez. Mais ou menos meia hora depois de ter comido todo esse delicioso chocolate você vai entender o que Epicuro queria dizer quando falava em “efeitos colaterais”.
Epicuro também achava que o resultado prazeroso de curto prazo devia ser ponderado em relação a um prazer maior, mais duradouro e mais intenso, a ser obtido em longo prazo. (Podemos imaginar, por exemplo, que durante todo um ano você não compre chocolate porque prefira economizar sua mesada para comprar uma bicicleta nova, ou então para fazer uma viagem ao exterior.) Diferentemente dos animais, o homem tem a possibilidade de planejar a sua vida. Ele possui a capacidade de “calcular o seu prazer”. Um delicioso chocolate é, sem dúvida, um valor, mas a bicicleta nova ou a viagem à Inglaterra também o são.
Epicuro fazia questão de enfatizar, porém, que “prazer” não significa necessariamente satisfação dos sentidos (por exemplo, comer chocolate). A amizade ou a sensação vivenciada ao se admirar uma obra de arte também podem ser muito prazerosas. Além disso, outros pressupostos para o prazer da vida são os velhos ideais gregos do autocontrole, da temperança e da serenidade. Isto porque o desejo precisa ser controlado. Assim, a serenidade também nos ajuda a suportar a dor.
Com freqüência, pessoas acometidas por temores de origem religiosa procuravam o jardim de Epicuro. Nesse caso, a teoria do átomo de Demócrito era extremamente útil contra a religião e a superstição. Para viver uma boa vida também era importante se libertar do medo da morte. Nesta questão, Epicuro retomava a teoria de Demócrito sobre os “átomos da alma”. Talvez você ainda lembre que Demócrito não acreditava na vida depois da morte, já que após a morte os “átomos da alma” se dispersavam para todos os lados.
“Por que ter medo da morte?”, perguntava Epicuro. “Enquanto somos, a morte não existe, e quando ela passa a existir, nós deixamos de ser.” (Visto deste ponto de vista, de fato ninguém jamais foi incomodado pelo fato de estar morto.)
O próprio Epicuro resumia sua filosofia libertadora naquilo que ele chamava de quatro remédios:
Não precisamos temer os deuses. Não precisamos nos preocupar com a morte. É fácil alcançar o bem. É fácil suportar o que nos amedronta.
Na Grécia não era novidade comparar a atividade do filósofo com a do médico. Nesse sentido, o homem precisa ter sempre à mão uma “farmacinha filosófica de bolso” que contenha os quatro remédios importantes que mencionei acima.
Contrariamente aos estóicos, os epicureus quase não se interessavam pela política e pela sociedade. “Vive em reclusão!” era o conselho de Epicuro. Talvez possamos comparar o seu jardim com as comunidades de nossos dias. Nesta época em que vivemos, muitas pessoas buscam uma ilha, um “porto seguro” em meio ao turbilhão da sociedade.
Depois de Epicuro, muitos epicureus evoluíram sua reflexão no sentido de uma busca unilateral do prazer. Sua palavra de ordem era: “Viver o momento!”. A palavra “epicurista” é freqüentemente usada em nossos dias de forma pejorativa, para designar alguém que só vive pelo prazer.
O NEOPLATONISMO
(Páginas 151-153.)
Vimos que os cínicos, os estóicos e os epicureus tiveram como ponto de partida os ensinamentos de Sócrates. Além dele, podemos constatar também uma influência dos pré-socráticos Demócrito e Heráclito. Mas a mais importante corrente filosófica do final da Antigüidade foi inspirada em Platão. E por isso ela é chamada de neoplatonismo.
O neoplatônico mais importante foi Plotino (c. 205-270), que estudou filosofia em Alexandria e mais tarde mudou-se para Roma. É interessante notar que ele veio de Alexandria, a cidade que já havia alguns séculos era o grande ponto de encontro entre a filosofia grega e a mística oriental. Plotino trouxe para Roma uma doutrina da salvação que viria a se tornar séria concorrente do cristianismo vigente naquela época. Mas o neoplatonismo também viria a exercer uma forte influência sobre a teologia cristã.
Na certa você ainda se lembra da teoria das idéias de Platão, Sofia. Você ainda deve saber, portanto, que ele estabelecia uma diferença entre o mundo das idéias e o mundo dos sentidos. Assim, Platão distinguia claramente entre a alma do homem e o seu corpo. Deste ponto de vista, o homem era uma criatura dual: para Platão, nosso corpo se constitui de terra e pó, como tudo o mais do mundo dos sentidos, mas nós também possuímos uma alma imortal. Muito antes de Platão essa noção já era bastante difundida na Grécia. Além dela, Plotino conhecia também concepções asiáticas semelhantes.
Plotino via o mundo como algo distendido entre dois pólos. Numa extremidade estava a luz divina, que ele chamava de o Uno. Às vezes ele também a chamava de Deus. Na outra extremidade reinavam trevas absolutas, que não eram banhadas pela luz do Uno. Mas Plotino achava que essas trevas de fato não tinham uma existência concreta. Para ele, elas nada mais eram do que a ausência de luz. Ou seja, as trevas não são. A única coisa que existe para ele é Deus, ou o Uno. Mas assim como uma fonte de luz pouco a pouco se perde na escuridão, também podemos imaginar um lugar aonde os raios divinos não são capazes de chegar.
De acordo com Plotino, portanto, a luz do Uno ilumina a alma, ao passo que a matéria são as trevas, que não possuem uma existência real. Mas as formas da natureza também possuem, segundo ele, um tênue reflexo do Uno.
Imagine uma enorme fogueira crepitando no meio da noite, cara Sofia. Do meio do fogo saltam centelhas em todas as direções. Num amplo círculo ao redor do fogo a noite é iluminada, e a alguns quilômetros de distância ainda é possível ver o leve brilho desta fogueira. À medida que nos afastamos, a fogueira vai se transformando num minúsculo ponto de luz, como uma lanterna fraca na noite. E se nos afastarmos mais ainda, chegaremos a um ponto em que a luz do fogo não mais consegue nos alcançar. Em algum lugar os raios luminosos se perdem na noite e se estiver muito escuro não vamos enxergar nada. Nesse momento, contornos e sombras deixam de existir.
Agora imagine a realidade como sendo esta enorme fogueira. O que arde é Deus – e as trevas lá fora são a matéria fria, da qual são feitos homens e animais. Junto a Deus estão as idéias eternas, que são as formas primordiais de todas as criaturas. Sobretudo a alma humana é uma “centelha de fogo”. Mas por toda a parte na natureza aparece um pouco desta luz divina. Podemos vê-la em todos os seres vivos; sim, até mesmo uma rosa ou uma campânula possuem um brilho divino. No ponto mais distante do Deus vivo estão a terra, a água e as pedras.
Estou dizendo que tudo o que vemos tem um pouco do mistério divino. Podemos ver o brilho desta alguma coisa num girassol ou numa papoula. Percebemos um pouco mais deste insondável mistério numa borboleta que pousou num galho, ou num peixinho dourado que nada no aquário. Mas o ponto mais próximo em que nos encontramos de Deus é dentro de nossa própria alma. Só lá é que podemos nos re-unir com o grande mistério da vida. De fato, em alguns raros momentos podemos sentir que somos, nós mesmos, este mistério divino.
As imagens que Plotino usa lembram a alegoria da caverna de Platão: quanto mais nos aproximamos da entrada da caverna, mais perto estamos daquilo de onde provém tudo o que existe. Mas em oposição à nítida divisão da realidade em duas partes estabelecida por Platão, a doutrina de Plotino nos convida a vivenciar a plenitude. Tudo é um, pois tudo é Deus. Até mesmo as sombras lá embaixo, na caverna de Platão, têm um tênue reflexo dessa “Unidade”.
Em alguns poucos momentos de sua vida Plotino experimentou a sensação de fundir sua alma com Deus. De modo geral, chamamos isto de experiência mística. Plotino não foi o único a viver tal experiência. Pessoas de todas as culturas, em todos os tempos, têm relatado experiências semelhantes. Ainda que as descrições dessas experiências sejam as mais diversas, esses relatos têm muitos e importantes pontos comuns. Vamos ver alguns deles.
MISTICISMO
(Páginas 154-155.)
Uma experiência mística significa sentir-se um só com Deus ou com a “alma do universo”. Em muitas religiões, diz-se que há um abismo entre Deus e sua criação. O místico, porém, não conhece este abismo. O que ele – ou ela – conhece é uma “elevação a Deus”.
Trata-se do seguinte: aquilo que geralmente chamamos de “eu” não é nosso eu verdadeiro. Em poucos e efêmeros momentos podemos experimentar a sensação de nos identificarmos com um eu muito maior. Alguns místicos chamam este eu maior de Deus, outros de “espírito cósmico”, outros de “natureza cósmica”, outros ainda de “universo”. Nessa identificação, nessa fusão, o místico experimenta a sensação de “perder-se a si mesmo”: ele desaparece – ou se perde – em Deus, como uma gota d’água “se perde” quando se mistura à água do mar. Certa vez, um místico indiano expressou assim essa experiência: “Quando eu era, Deus não era. Agora Deus é, e eu não sou mais”. O místico cristão Ângelus Silesius (1624-1677) disse: “A pequena gota se transforma em mar quando chega até ele; e assim a alma se transforma em Deus quando é nele acolhida”.
Talvez você não ache muito confortável a idéia de “perder-se a si mesma”, Sofia. E eu entendo você. Mas o ponto é o seguinte: o que se perde é infinitamente menor do que aquilo que se ganha. Você se perde nesta forma que você tem agora, mas ao mesmo tempo compreende que você é algo infinitamente maior. Você é o universo inteiro. Sim, você é o espírito cósmico, querida Sofia. Você é Deus. Se para isto você tem de perder-se enquanto Sofia Amundsen, então talvez sirva de consolo o reconhecimento de que um dia você terá de perder este “eu cotidiano”, de uma forma ou de outra. Para os místicos, o seu verdadeiro eu, que você só poderá experimentar se conseguir se libertar de si mesma, é o fogo misterioso que queima para toda a eternidade.
Só que tal experiência mística nem sempre ocorre espontaneamente. Com freqüência, o místico tem de percorrer “o caminho da purificação e da iluminação”, a fim de poder se encontrar com Deus. Este caminho consiste na meditação e numa vida extremamente simples. Ao fim da jornada, porém, o místico chega a seu objetivo e pode dizer: “Eu sou Deus! Eu sou Você!”.
Encontramos vertentes místicas em todas as grandes religiões do mundo. E tudo o que os místicos escrevem sobre suas experiências apresenta visíveis semelhanças, a despeito de todas as diferenças culturais. Somente quando o místico tenta uma interpretação religiosa ou filosófica para sua experiência mística é que se evidencia o pano de fundo cultural.
Na mística ocidental – quer dizer, no judaísmo, no cristianismo e no islamismo -, o místico afirma que seu encontro é com um Deus pessoal. Embora Deus esteja presente na natureza e na alma humana, ele também está muito além e muito acima deste mundo. Na mística oriental – isto é, no hinduísmo, no budismo e na religião chinesa -, o que se afirma é que o místico experimenta uma fusão total com um Deus que é o “espírito cósmico”. O místico pode dizer “Eu sou o espírito cósmico”, ou então “Eu sou Deus”. Pois Deus não está apenas presente no mundo; ele não tem outro lugar para estar.
Na Índia, sobretudo, já havia várias e fortes correntes místicas muito antes de Platão. Swami Vivekananda, que contribuiu para trazer ao Ocidente os pensamentos do hinduísmo, disse certa vez: “Assim como certas religiões do mundo chamam de ateus os homens que não acreditam num Deus pessoal além de si mesmos, dizemos que é ateu aquele que não acredita em si mesmo. Não acreditar no esplendor da própria alma: isto é o que chamamos de ateísmo”.
Uma experiência mística também pode ser de importância para a ética. Um antigo presidente indiano, Radhakrishnan, disse certa vez: “Ama o teu próximo como a ti mesmo, pois tu és o teu próximo. É ilusão acreditar que teu próximo é outro, e não tu”.
Pessoas de nossa época, que não pertencem a determinada religião, têm relatado experiências místicas. De repente elas experimentam algo que chamam de “consciência cósmica” ou “sentimento oceânico”: sentem-se como que arrancadas do tempo e experimentam o mundo “da perspectiva da eternidade”.
CAPÍTULO 14 (EXCERTO)
DOIS CÍRCULOS CULTURAIS
(…)
Vimos como os filósofos do helenismo reinterpretaram as idéias dos antigos filósofos gregos. Vimos, também, que alguns quiseram até transformar esses filósofos em verdadeiros fundadores de religiões. Por pouco Plotino não chegou a declarar Platão o redentor da humanidade.
Mas, como sabemos, bem no meio deste período de que estamos tratando nasceu outro redentor. E desta vez fora do círculo cultural greco-romano. Estou me referindo a Jesus de Nazaré. Neste capítulo, veremos como o cristianismo pouco a pouco foi se infiltrando no mundo greco-romano (…).
Jesus era judeu e os judeus pertencem ao círculo cultural semita. Os gregos e os romanos pertencem ao círculo cultural indo-europeu. Podemos constatar, então, que a civilização européia tem duas raízes. Antes de estudarmos mais em detalhe como o cristianismo aos poucos foi se mesclando com a cultura greco-romana, vamos dar uma olhada mais de perto nessas duas raízes.
OS INDO-EUROPEUS
(Páginas 167-169.)
Chamamos de indo-europeus todos os países e culturas nos quais são faladas as línguas indo-européias. A elas pertencem todas as línguas européias, à exceção das línguas fino-úgricas (o lapão, o finlandês, o estoniano e o húngaro), além da língua falada nos Países Bascos. A maioria das línguas indianas e iranianas também pertence à mesma família das línguas indo-européias.
Os indo-europeus primitivos viveram há mais ou menos quatro mil anos, provavelmente nas proximidades do mar Negro e do mar Cáspio. Dali, saíram em grandes levas para o sudeste – rumo ao Irã e à Índia -; para o sudoeste – Grécia, Itália e Espanha -; para o oeste, atravessando a Europa central até a Inglaterra e a França; para noroeste, rumo à Escandinávia; e para o norte, rumo ao Leste Europeu e à Rússia. Por toda a parte, os indo-europeus mesclaram-se às culturas pré-indo-européias, sendo que a religião e a língua dos indo-europeus foi o elemento que acabou predominando nesta fusão.
Tanto os antigos livros sagrados da Índia, os Vedas, quanto os escritos da filosofia grega e mesmo a mitologia de Snorre Sturlas-son foram escritas em línguas de uma mesma família. Mas não são apenas as línguas que se parecem. Às línguas aparentadas pertencem também pensamentos aparentados. Por esta razão é que em geral falamos de um círculo cultural indo-europeu.
A cultura dos indo-europeus era marcada sobretudo pela crença em muitos e diferentes deuses. Chamamos a isto de politeísmo. Em toda esta extensa área de influência indo-européia encontramos nomes de deuses e diferentes termos e expressões religiosos. Vou citar alguns exemplos:
Os antigos indianos adoravam o deus celestial Dyaus. Em grego este deus se chama Zeus; em latim, Júpiter (na verdade iov-pater, ou seja, “Pai Celestial”); e em norueguês antigo, Tyr. Os nomes Dyaus, Zeus, Iov e Tyr são, portanto, variantes da mesma palavra.
Talvez você saiba que os viquingues, no Norte da Europa, adoravam deuses que chamavam de asen. Em toda a área de influência indo-européia também encontramos uma palavra para designar “deuses”. Em sânscrito, os deuses se chamam asura; em iraniano, ahura. Outra palavra para deus em sânscrito é deva; em iraniano, daeva; em latim, deus; e em norueguês antigo, tivurr.
Também podemos constatar uma nítida afinidade entre alguns mitos em todo este círculo indo-europeu. Quando Snorre conta sobre os antigos deuses nórdicos, alguns mitos lembram mitos indianos que já haviam sido contados dois ou três mil anos antes. É claro que os mitos de Snorre são marcados pelo cenário natural nórdico, enquanto os indianos se desenvolvem sob o pano de fundo da natureza da Índia. Mas muitos desses mitos possuem um núcleo que aponta para uma origem comum. Um desses núcleos pode ser constatado de forma evidente nos mitos das poções da imortalidade e na luta dos deuses contra os monstros do caos.
Mas também nas formas de pensar podemos ver claras ligações entre as culturas indo-européias. Um ponto comum típico é o fato de elas conceberem o mundo como um imenso palco, no qual se desenrola o drama da luta incessante entre as forças do bem e do mal. Por esta razão, os indo-europeus sempre tentaram “predizer” o que iria acontecer com o mundo.
Podemos muito bem dizer que não é por acaso que a filosofia grega surgiu exatamente neste espaço cultural indo-europeu. As mitologias grega, indiana e nórdica apresentam princípios claros de um tipo de observação filosófica, ou “especulativa”, do mundo.
Os indo-europeus tentavam “entender” o desenrolar da história do mundo. Prova disto é que podemos encontrar em todo o espaço cultural indo-europeu uma palavra determinada que, em cada cultura, significa “compreensão” e “conhecimento”. Em sânscrito esta palavra é vidya, palavra idêntica à palavra grega ide, que – como você já sabe – foi de grande importância para a filosofia de Platão. Do latim conhecemos a palavra video, que para os romanos significava simplesmente “ver”. (Somente nos nossos dias é que o verbo “ver” foi quase equiparado ao ato de grudar os olhos na tela da televisão.) No inglês temos palavras como wise e wisdom (“sabedoria”); em alemão, Weise (“sábio”) e Wissen (“saber”, “conhecimento”). Em norueguês temos a palavra viten. A palavra norueguesa viten tem, portanto, a mesma raiz da palavra indiana vidya, da grega ide e da latina video.
De um modo muito geral, podemos dizer que a visão era o principal sentido para os indo-europeus. Entre os indianos e gregos, iranianos e germânicos, a literatura era marcada por grandes visões cósmicas. (E aqui aparece de novo a palavra “visão”, que vem do verbo latino video.) Além disso, eram comuns nas culturas indo-européias as representações dos deuses e das passagens descritas nos mitos em quadros e esculturas.
Por fim, os indo-europeus tinham uma visão cíclica da história. Isto significa que, para eles, a história se desenrolava “em círculos”, da mesma forma como temos a alternância das estações do ano. Não há, portanto, um verdadeiro começo para a história, assim como também não haverá um fim. O que encontramos freqüentemente são referências a mundos que surgem e desaparecem, numa alternância infinita entre nascimento e morte.
As duas grandes religiões orientais – o hinduísmo e o budismo – são de origem indo-européia. O mesmo vale para a filosofia grega. Por esta razão, podemos ver muitos e evidentes paralelos entre o hinduísmo e o budismo, de um lado, e a filosofia grega, de outro. Ainda hoje o hinduísmo e o budismo são fortemente marcados pela reflexão filosófica.
Não raro se enfatiza no hinduísmo e no budismo o fato de que o elemento divino está presente em tudo (panteísmo) e de que o homem pode chegar a uma unidade com Deus por meio do conhecimento religioso. (Você ainda se lembra de Plotino, Sofia?) Na maioria das vezes, a condição para isto é a meditação, ou um profundo mergulho dentro de si mesmo. No Oriente, portanto, a passividade e a vida reclusa são vistas como ideais religiosos. Também em solo grego muitas pessoas diziam que o homem tinha que viver uma vida ascética – quer dizer, em reclusão religiosa -, se quisesse obter a redenção de sua alma. Alguns componentes da vida nos conventos da Idade Média têm suas origens em tais concepções do mundo greco-romano.
Em muitas culturas indo-européias a crença na metempsicose, ou transmigração da alma, era muito importante. Por exemplo, no hinduísmo, o objetivo de cada devoto é o de um dia conseguir libertar sua alma desse processo de transmigração. E nós já sabemos que Platão também acreditava na transmigração da alma.
OS SEMITAS
(Páginas 170-172.)
Passemos agora aos semitas, Sofia. Vamos falar de um círculo cultural completamente diferente, com uma língua completamente diferente também. Os primeiros semitas são originários da península da Arábia, mas o círculo cultural semita também se expandiu para extensas e diferentes partes do mundo. Há mais de dois mil anos, os judeus vivem bem longe de sua pátria natal. Foi o cristianismo que levou a história e a religião semitas para mais longe de suas raízes, se bem que a cultura semita também foi transportada para todo o mundo pela expansão do Islã.
As três religiões ocidentais – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – têm um pano de fundo semita. O Alcorão, o livro sagrado do Islã, e o Antigo Testamento foram escritos em línguas semitas aparentadas. Uma das palavras do Antigo Testamento para “deus” tem, por isso, a mesma raiz lingüística de Allah (Alá), dos muçulmanos (a palavra allah significa pura e simplesmente “deus”).
No cristianismo o quadro se complica. É claro que também o cristianismo tem um pano de fundo semita, mas o Novo Testamento foi escrito em grego e quando a doutrina ou teologia cristã foi reformulada, ela foi marcada pelas línguas gregas e latinas e, com isto, também foi influenciada pela filosofia helenística.
Vimos que os indo-europeus acreditavam em muitos deuses. O que nos espanta no caso dos semitas é que desde muito cedo eles já acreditavam num único Deus. Chamamos isto de monoteísmo. No judaísmo, no cristianismo e no islamismo, o princípio fundamental é o de que existe apenas um Deus.
Outro traço comum semita é a sua visão linear da história. Queremos com isto dizer que a história é vista como uma linha: no passado, Deus criou o mundo e com isto começou a história. Um dia, porém, a história vai acabar e isto vai acontecer no dia do Juízo Final, quando Deus julgará os vivos e os mortos.
Um traço importante das três grandes religiões ocidentais é precisamente o papel da história. Acredita-se que Deus intervém na história, ou melhor, que a história existe para que Deus possa fazer valer sua vontade no mundo. Assim como um dia Ele conduziu Abraão à Terra Prometida, do mesmo modo irá conduzir a vida dos homens através da história até o Juízo Final. E então todo o mal será eliminado do mundo.
A forte ênfase na ação de Deus sobre a história teve como decorrência o fato de os semitas virem se ocupando da escritura da história há muitos milhares de anos. E são precisamente as raízes históricas que constituem o núcleo de seus escritos religiosos.
Ainda hoje a cidade de Jerusalém é um importante centro religioso para judeus, cristãos e muçulmanos. E isto também diz alguma coisa sobre o pano de fundo comum dessas três religiões. Em Jerusalém existem importantes sinagogas (judaicas), igrejas (cristãs) e mesquitas (muçulmanas). Por isso é tão trágico que justamente Jerusalém tenha se transformado num pomo de discórdia, em que pessoas se matam umas às outras aos milhares porque não conseguem entrar num acordo sobre quem deve ter o domínio da “cidade eterna”. Tomara que um dia a ONU consiga que Jerusalém se transforme num ponto de encontro das três religiões! (…)
Vimos que, para os indo-europeus, o mais importante dos sentidos era a visão. Igualmente interessante é saber que para o mundo semita a audição desempenhava um papel preponderante. Não é por acaso que a profissão de fé judaica começa com a frase: “Ouve, Israel!”. No Antigo Testamento lemos que as pessoas “ouviam” as palavras do Senhor e os profetas judeus gostavam de começar suas pregações com a fórmula “Assim falou Jeová” (Deus). Sobretudo, porém, os cultos religiosos judaicos, cristãos e muçulmanos são marcados pela leitura em voz alta das escrituras sagradas.
Eu também mencionei que os indo-europeus faziam quadros e esculturas de seus deuses. Para os semitas é igualmente característico o fato de eles respeitarem certa proibição pela representação pictórica. Isto significa que eles não podiam criar imagens ou esculturas de Deus e de tudo o que é sagrado. No Antigo Testamento está escrito que os homens não devem fabricar para si imagens de Deus. Esta norma é válida até hoje para o islamismo e o judaísmo. No Islã ainda impera uma aversão geral pela fotografia e pelas artes plásticas, pois as pessoas não devem querer competir com Deus na “criação” de alguma coisa.
Mas você deve estar pensando agora nas igrejas cristãs apinhadas de imagens de Deus e de Jesus. Você está certa, Sofia, e este é um exemplo de como o cristianismo foi influenciado pelo mundo greco-romano. (Na Igreja ortodoxa – quer dizer, na Grécia e na Rússia -, as imagens entalhadas, ou seja, esculturas e crucifixos com cenas de histórias da Bíblia, são proibidos até hoje.)
Contrariamente às grandes religiões orientais, as três religiões ocidentais enfatizam o abismo que existe entre Deus e sua criação. O objetivo não é redimir a alma do processo de transmigração, e sim a redenção dos pecados e da culpa. Além disso, a vida religiosa é mais marcada pela oração, pelo sermão e pela leitura da Bíblia do que pela meditação e pelo mergulho em si mesmo.
ISRAEL
(Páginas 172-174.)
Não estou querendo competir com o seu professor de religião, Sofia. Mas vamos examinar rapidamente o pano de fundo judeu do cristianismo.
Tudo começou com a criação do mundo por Deus. Como isto aconteceu você pode ler na primeira página da Bíblia. Na seqüência, o homem se rebelou contra Deus. E o castigo de Deus para isto foi a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. A partir desse momento, a morte passou a fazer parte do mundo.
A desobediência do homem a Deus atravessa toda a história contada na Bíblia. Se continuarmos folheando o Gênesis vamos encontrar referências ao dilúvio e à Arca de Noé. Então leremos que Deus fez um pacto com Abraão e seus descendentes. Este pacto – ou acordo – exigia que Abraão e todos os seus descendentes observassem rigorosamente os mandamentos de Deus. Mais tarde este pacto foi renovado, quando Moisés recebeu as Tábuas da Lei (A lei de Moisés!) no monte Sinai. Isto aconteceu por volta de 1200 a.C. Naquela época, os israelitas viviam havia muito tempo como escravos no Egito, mas com a ajuda de Deus todo o povo foi levado de volta a Israel.
Por volta de 1000 a.C. – muito tempo antes, portanto, de haver alguma coisa que se pudesse chamar de filosofia grega – ouvimos falar de três grandes reis em Israel. O primeiro foi Saul, que foi seguido por Davi, que, por sua vez, foi sucedido por Salomão. Agora, todos os israelitas estavam reunidos num mesmo reino e foi sobretudo sob o reinado de Davi que eles viveram um período de apogeu político, militar e cultural.
Quando os reis eram investidos no poder eram ungidos pelo povo. Por isso recebiam o título de Messias, que significa “aquele que foi ungido”. No contexto religioso, os reis eram vistos como mediadores entre Deus e o povo. Por isso é que os reis podiam ser chamados de “filhos de Deus”, e o país que governavam, de “reino de Deus”.
Mas o reino de Israel não tardou a enfraquecer e foi dividido em um reino ao norte (Israel) e outro ao sul (o reino de Judá). Em 722 a.C., o reino do norte foi devastado pelos assírios e perdeu completamente sua importância política e religiosa. Com o sul a coisa não foi muito melhor. O reino de Judá foi conquistado em 586 a.C. pelos babilônicos. O templo de Jerusalém foi destruído e uma grande parte do povo foi levada para a Babilônia. Este cativeiro babilônico só terminou em 539 a.C. Foi então que o povo pôde retornar a Jerusalém e reconstruir o enorme templo. Mas por todos os séculos que se seguiram até o nascimento de Cristo, início do nosso calendário, os judeus continuaram sob dominação estrangeira.
Os judeus se perguntavam por que o reino de Davi havia sido destruído e por que se abatia sobre o povo uma desgraça sobre outra. Afinal, Deus tinha prometido colocar sua mão protetora sobre Israel. Acontece que as pessoas também tinham prometido cumprir os mandamentos de Deus e isto acabou espalhando a crença de que Deus estaria castigando Israel por sua desobediência.
A partir de 750 a.C., aproximadamente, surgiram vários profetas que anunciavam o castigo de Deus a Israel, pois o povo não havia respeitado os mandamentos do Senhor. Eles diziam que um dia Deus viria julgar Israel. Chamamos tais profecias de “profecias do Juízo Final”.
Não tardaram a surgir outros profetas que anunciavam que Deus iria salvar uma parte do povo e enviar um “príncipe da paz” ou um rei da paz da casa de Davi. Este príncipe da paz iria restaurar o antigo reino de Davi e assegurar ao povo um futuro feliz.
“Este povo, que andava nas trevas, viu uma grande luz”, dizia o profeta Isaías. “Aos que habitavam na região da sombra da morte, nasceu-lhes o dia.” Chamamos estas profecias de “profecias da redenção”.
Resumindo: o povo de Israel vivia feliz sob o reinado de Davi. Quando a situação ficou difícil para os israelitas, alguns profetas começaram a anunciar a vinda de um profeta da casa de Davi. Este “Messias” ou “Filho de Deus” viria para “redimir” o povo, restituir a Israel sua grandeza e fundar um “Reino de Deus”.
JESUS
(Páginas 174-176.)
OK, Sofia. Suponho que você esteja conseguindo me acompanhar. As palavras-chaves neste contexto são “Messias”, “Filho de Deus”, “Redenção” e “Reino de Deus”. No início, tudo isto tinha um significado político. Mesmo na época de Jesus, muitos imaginavam o novo Messias como um líder político, militar e religioso do mesmo calibre do rei Davi. Quer dizer, o “redentor” era visto por todos como um libertador nacional, que teria vindo para pôr fim aos sofrimentos dos judeus sob a dominação dos romanos.
Mas outras vozes também se ergueram. Duzentos anos antes do nascimento de Jesus, outros profetas já haviam anunciado que o Messias prometido seria o redentor de todo o mundo. Ele não apenas libertaria os israelitas do jugo de outros povos, mas viria para redimir todos os homens do pecado, da culpa e também da morte. A esperança de uma redenção neste sentido da palavra há havia se espalhado por todo o mundo helenístico.
E então aparece Jesus. Ele não é o único que aparece como o Messias prometido; e, como muitos outros, também ele usa as expressões “Filho de Deus”, “Reino de Deus”, “Messias” e “Redenção”. Assim procedendo, Jesus alinha-se às antigas profecias. Ele vai para Jerusalém e se deixa aclamar pelas massas como o salvador do povo. Desta forma, ele retoma a antiga tradição dos reis, que eram entronizados através de um típico “ritual de acesso ao trono”. Jesus também se permite ser ungido pelo povo. “É chegada a hora”, disse ele. “O Reino de Deus está próximo.”
É muito importante gravar todas essas coisas. Mas o mais importante vem agora: o que diferenciava Jesus dos demais profetas que diziam ser o Messias era o fato de ele admitir publicamente que não era um comandante militar ou político. Sua tarefa era muito maior. Ele pregava a redenção e o perdão de Deus para todos os homens. E é por isso que ele podia caminhar por entre as pessoas e dizer: “Teus pecados estão perdoados”. Dizer abertamente essas coisas era algo jamais visto. Por esta razão não demorou muito tempo para que entre os escribas se levantassem protestos contra Jesus. Por fim, esses escribas também se puseram a trabalhar no processo de acusação e execução de Jesus.
Vou tentar ser mais exato: no tempo de Jesus, muitas pessoas esperavam por um Messias que restaurasse o Reino de Deus sob o rufar de tambores e o som de trombetas (quer dizer, a ferro e fogo). A expressão “Reino de Deus” está presente em todas as pregações de Jesus, só que num sentido muito mais abrangente. Jesus dizia que o Reino de Deus era o amor aos semelhantes, a compaixão pelos fracos e o perdão para todos os que tinham errado.
Vemos aqui uma dramática alteração no sentido de uma antiga expressão de cunho militar. As pessoas esperavam, portanto, por um general que proclamasse um Reino de Deus. E então aparece Jesus trajando uma túnica, usando sandálias, e diz que o Reino de Deus ou “a nova aliança” significa “Amar o teu próximo como a ti mesmo”. E mais ainda, Sofia. Jesus também disse que devemos amar nossos inimigos e quando eles nos esbofeteiam não devemos pagar-lhes na mesma moeda, mas oferecer-lhes a outra face. E que temos de perdoar; não sete vezes, mas sete vezes setenta.
Através dos atos de sua própria vida, Jesus também mostrou que não considerava indigno de si conversar com prostitutas, funcionários corruptos e inimigos políticos do povo. Mas ele vai mais além: ele diz que um perdulário que gastou todo o dinheiro que herdou, ou um funcionário do Estado que se apoderou de dinheiro público será visto por Deus como um homem reto e justo, bastando para isto que se voltem para Ele e Lhe peçam perdão. Tão generoso é Deus na sua misericórdia.
Mas ele vai mais além ainda, Sofia, e é preciso que você grave bem isto: Jesus disse que esses “pecadores” eram mais retos aos olhos de Deus – e, portanto, mereciam mais o seu perdão – do que os irrepreensíveis fariseus, orgulhosos de sua própria excelência.
Jesus enfatizava que nenhuma pessoa pode obter, ela mesma, a graça de Deus. Nós mesmos não podemos nos redimir (como acreditavam muitos gregos!). No Sermão da Montanha, quando Jesus estabelece seus rígidos princípios éticos, ele não o faz apenas porque quer mostrar a vontade de Deus. Ele também quer mostrar que nenhuma pessoa é reta perante os olhos de Deus. Isto é, a graça de Deus não tem limites, mas somos nós que temos de nos voltar a Ele e Lhe suplicar o perdão através de orações.
Outras explicações sobre a pessoa de Jesus e seus ensinamentos eu deixo para o seu professor de religião. Com isto ele terá bastante trabalho. Espero que ele possa mostrar a vocês que Jesus foi um ser humano extraordinário. Ele soube usar de forma genial a língua de seu tempo e deu a conceitos e palavras-chaves antigos um sentido novo, extremamente ampliado. Não é de admirar, portanto, que ele tenha acabado na cruz. Sua mensagem radical sobre a redenção dos homens ameaçava tantos interesses e posições de poder que ele tinha de ser eliminado.
Quando falamos sobre Sócrates, vimos o quanto pode ser perigoso apelar à razão das pessoas. No caso de Jesus, vemos como pode ser perigoso exigir dos outros um amor assim tão incondicional pelo próximo e uma capacidade de perdoar igualmente incondicional. Ainda hoje vemos como nações poderosas ameaçam desmoronar diante de exigências simples tais como paz, amor, comida para os pobres e anistia para os inimigos do Estado.
Você ainda deve estar lembrada de como Platão ficou furioso com o fato de o homem mais justo de Atenas ter tido de pagar sua conduta com a própria vida. Para o cristianismo, Jesus foi o único homem justo que viveu. Não obstante, foi condenado à morte. Para o cristianismo, portanto, ele morreu pelos homens. E “sofreu no lugar dos homens”, como se costuma dizer. Jesus foi o “servo que sofreu” e que tomou para si toda a culpa dos homens, a fim de nos reconciliar com Deus e nos salvar de Seu castigo.
PAULO
(Páginas 176-179.)
Alguns dias depois da crucificação e do enterro de Jesus surgiram boatos de que ele teria ressuscitado dos mortos. Com isto Jesus dava provas de que era mais do que apenas um homem. Ele mostrava que era realmente o “Filho de Deus”.
Podemos dizer que a igreja cristã começa nesta manhã de Páscoa com os boatos sobre a ressurreição de Jesus. O próprio Paulo deixa isto claro: “Pois se Cristo não ressuscitou, então todo nosso sermão é vão; é vã toda a vossa crença”.
A partir de então, todas as pessoas podiam ter esperança na “ressurreição da carne”. Para nos redimir, Jesus tinha sido crucificado. E agora, cara Sofia, é preciso que você atente bem para o fato de que em solo judeu não se falava em “imortalidade da alma”, nem em qualquer forma de “transmigração”. Estes eram conceitos gregos e, portanto, indo-europeus. Mas o cristianismo nos ensina que não há nada no homem – nenhuma “alma”, por exemplo – que seja imortal em si mesmo. A Igreja acredita na ressurreição da carne e na vida eterna, mas o fato de sermos salvos da morte e da condenação é um milagre de Deus. Isto não aconteceria, portanto, graças aos nossos próprios méritos, nem graças a uma característica natural que nos fosse inata.
Os primeiros cristãos começaram então a espalhar a “boa-nova” da redenção pela fé em Jesus Cristo. Através dessa redenção, o Reino de Deus estava próximo. (A palavra “Cristo” é uma tradução para o grego da palavra judaica “Messias” e também significa “aquele que foi ungido”.)
Poucos anos depois da morte de Jesus, o fariseu Paulo se converteu ao cristianismo. Em suas muitas viagens como missionário através de todo o mundo greco-romano, ele transformou o cristianismo numa religião universal. Sabemos disso por meio dos Atos dos Apóstolos. Os sermões de Paulo e seus ensinamentos aos cristãos espalharam-se também por meio das muitas epístolas que ele enviava às primeiras comunidades cristãs.
E então Paulo viajou para Atenas. Dizem que, passeando pelo mercado da capital da filosofia, ele ficou indignado “por encontrar uma cidade tão afeita à idolatria”. Visitou a sinagoga judaica em Atenas e conversou com os filósofos epicureus e estóicos, que o levaram até o Areópago. Ali chegando, disseram: “Podemos conhecer esta nova doutrina que o senhor prega? O senhor nos traz algo de novo aos ouvidos e por isso gostaríamos muito de saber do que se trata”.
Dá para imaginar, Sofia? Um judeu aparece na praça do mercado de Atenas e fala de um redentor que foi crucificado e que mais tarde ressuscitou dos mortos. Já na visita de Paulo a Atenas podemos pressentir o choque entre a filosofia grega e a doutrina da redenção cristã. Ao que tudo indica, porém, Paulo conseguiu dialogar com os atenienses. Do Areópago, em meio aos soberbos templos da Acrópole, ele fez o seguinte discurso: “Homens atenienses, em tudo vos vejo muito supersticiosos. Pois, indo eu passando e vendo os vossos monumentos sagrados, encontrei também um altar, sobre o qual estava escrito: ‘Ao Deus desconhecido’. Aquele, pois, que vós adorais sem o conhecer, esse eu vos anuncio. Deus, que fez o mundo e tudo o que nele há, sendo ele o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos pelos homens, nem é servido pelas mãos dos homens, como se necessitasse de alguma coisa, ele que dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas. E de um só fez todo o gênero humano, para que habitasse sobre toda a face da Terra, fixando aos povos a ordem dos tempos e os limites da sua habitação, para que busquem a Deus e o encontrem, embora ele não esteja longe de cada um de nós, porque nele vivemos, nos movemos e existimos, como até o disseram alguns dos vossos poetas: somos verdadeiramente da sua linhagem. Sendo vós, pois, linhagem de Deus, não devemos pensar que a Divindade é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra lavrada por arte e indústria do homem. Porém Deus, não levando em conta os tempos desta ignorância, anuncia agora aos homens que todos em todo o lugar se arrependam, porque fixou um dia em que há de julgar o mundo conforme a justiça, por meio de um homem que destinou para juiz, do que dá certeza a todos, ressuscitando-o dos mortos”.
Paulo em Atenas, Sofia! Estamos falando do cristianismo, que pouco a pouco começa a se infiltrar no mundo greco-romano como algo diferente, completamente diferente da filosofia dos epicureus, estóicos e neoplatônicos. Apesar de tudo, Paulo encontra nesta cultura um sólido apoio, ao chamar a atenção para o fato de que a busca de Deus está dentro de todos os homens. E para os gregos não havia nada de novo nisso. O que Paulo pregava de novo era o fato de o próprio Deus ter se revelado aos homens e realmente ter se encontrado com eles. Ele não é, portanto, apenas um “Deus filosófico”, ao qual as pessoas pudessem chegar pelo exercício da razão. Além disso, esse Deus não se assemelha a nenhuma imagem de “ouro, prata ou pedra” – na Acrópole e também lá embaixo, na praça do mercado, já havia imagens suficientes. Mas Deus “não habita em templos feitos pelos homens”. Ele é um Deus pessoal, que intervém na história e que morreu na cruz pelos homens.
Nos Atos dos Apóstolos, lemos que, depois de ter feito seu discurso no Areópago, Paulo foi vítima de zombaria por parte de algumas pessoas, quando estas ouviram-no dizer que Cristo havia ressuscitado dos mortos. Mas também ouve aqueles que disseram: “Queremos ouvir mais do senhor”. Outros, por fim, agregaram-se a ele e se tornaram cristãos. Entre estas pessoas estava uma mulher chamada Damaris, um nome que precisamos gravar. Naquela época, eram as mulheres que mais freqüentemente se convertiam ao cristianismo.
Depois Paulo prosseguiu em sua tarefa missionária. Apenas algumas décadas depois da morte de Cristo já havia comunidades cristãs em todas as cidades gregas e romanas mais importantes: Atenas, Roma, Alexandria, Éfeso, Corinto. Entre três e quatro séculos depois, todo o mundo greco-romano estava cristianizado.
O CREDO
(Páginas 179-180.)
Paulo não foi de fundamental importância para o cristianismo apenas por sua função como missionário. Dentro das comunidades cristãs, a sua influência era muito grande. É que as pessoas precisavam muito de uma orientação espiritual.
Uma questão importante dos primeiros anos depois da morte de Jesus era saber se os que não eram judeus precisavam passar pela doutrina judaica antes de se tornarem cristãos. Um grego, por exemplo, teria de observar as leis de Moisés? Para Paulo, isto não era necessário. O cristianismo era mais do que uma seita judaica. Ele se voltava para toda a humanidade através de uma mensagem universal de redenção. A “antiga aliança” entre Deus e Israel fora substituída pela “nova aliança” que Jesus estabelecera entre Deus e todos os homens.
Mas o cristianismo não era a única religião nova daquela época. Vimos que o helenismo era marcado por um sincretismo religioso. Por esta razão, a Igreja precisava definir claramente a doutrina cristã, a fim de estabelecer seus limites em relação às demais religiões e evitar uma cisão dentro da própria igreja cristã. Surgiram assim as primeiras profissões de fé, os primeiros credos. A profissão de fé, ou credo, resume os princípios ou os “dogmas” cristãos mais importantes.
Um desses importantes princípios era o de que Jesus havia sido Deus e homem ao mesmo tempo. Ele não era o “Filho de Deus” apenas por seus atos. Ele era o próprio Deus. Mas ele também era um “homem de verdade”, que compartilhava a vida com os outros homens e que realmente tinha padecido na cruz.
Isto pode parecer um paradoxo. Mas a mensagem da Igreja era precisamente a de que Deus se fez homem. Jesus não era um “semideus” (meio homem e meio deus, portanto). A crença em tais semideuses era bastante difundida nas religiões gregas e helenísticas. A Igreja ensinava que Jesus era “o Deus e o homem plenos”.
PÓS-ESCRITO
(Páginas 180-181.)
O que estou tentando mostrar, cara Sofia, é que tudo está inter-relacionado. A entrada do cristianismo no mundo greco-romano significou o encontro dramático de dois universos culturais. Mas significou também uma grande transformação histórico-cultural.
Estamos quase deixando para trás a Antigüidade. Quase mil anos são passados desde os primeiros filósofos gregos. À nossa frente se descortina agora a Idade Média. E ela também durou cerca de mil anos.
O poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe escreveu:
Quem, de três milênios,
Não é capaz de se dar conta
Vive na ignorância, na sombra,
À mercê dos dias, do tempo.
E eu não quero que você seja uma dessas pessoas. Estou me esforçando ao máximo para familiarizá-la com suas raízes históricas, pois só assim você se tornará uma pessoa de verdade. Só assim você será mais do que um macaco sem roupas. Só assim você não vai ficar flutuando no espaço vazio.
CAPÍTULO 15 (EXCERTO)
A IDADE MÉDIA
INTRODUÇÃO
(Páginas 186-192.)
(…)
E Sofia se pôs a caminho. A igreja de Santa Maria ficava a alguns quilômetros dali, mas, embora Sofia só tivesse dormido umas duas horas, sentia-se disposta e desperta. Sobre as colinas, a leste, começava a aparecer uma faixa de luz avermelhada.
Já eram quase quatro [horas] quando Sofia chegou à porta da igreja de pedra. Tentou empurrar a pesada porta de madeira. E não é que estava aberta?
Lá dentro, o vazio e o silêncio eram tão grandes quanto a própria idade da igreja. Uma luminosidade azulada atravessava os vitrais das janelas, revelando centenas de milhares de partículas de poeira suspensas no ar. O pó parecia reunir-se nas grossas vigas que cortavam a nave da igreja. Sofia sentou-se num banco bem no meio da igreja. Dali ficou olhando o altar, onde havia um antigo crucifixo pintado em cores suaves.
Passaram-se alguns minutos. De repente ela ouviu o som de um órgão. Sofia não ousou se virar. Parecia o som de um coral muito antigo. Na certa um coral medieval.
De novo tudo ficou silencioso. Então Sofia ouviu alguns passos se aproximando por trás. Será que ela deveria se voltar e olhar?
Preferiu continuar com os olhos cravados no Cristo da cruz.
Os passos estavam cada vez mais próximos. De repente, uma figura passou por ela e continuou andando pela igreja. A figura trajava um hábito de monge marrom. Sofia podia jurar que se tratava de um monge da Idade Média.
Sentiu medo, mas não entrou em pânico. Diante do altar, o monge deu meia-volta e subiu no púlpito. Ele se debruçou sobre o parapeito, olhou para Sofia e disse em latim:
— Gloria patri et filio et spirito sancto. Sicut erat in principio et nunct et semper in saecula saeculorum.
— Fale em norueguês, seu bobo! — gritou Sofia.
Suas palavras ecoaram na igreja de pedra.
Ela estava certa de que aquele monge era Alberto Knox. Apesar disso, ficou arrependida de ter se expressado de forma tão desrespeitosa dentro de uma igreja antiga. Mas estava com medo, e quando a gente tem medo às vezes é bom quebrar todos os tabus.
— Psiu!
Alberto ergueu uma mão, como se pedisse aos fiéis que se sentassem. Exatamente como fazem os padres.
— Que horas são, minha filha?
— Cinco para as quatro — respondeu Sofia, agora já sem o medo que sentia antes.
— Então está na hora. Vai começar a Idade Média.
— A Idade Média começo às quatro horas? — perguntou Sofia, confusa.
— Mais ou menos às quatro horas, sim. E depois o relógio bateu cinco e seis e sete horas. Mas o tempo parecia ter parado. Depois oito e nove e dez. E ainda era a Idade Média, compreende? Mais do que hora de se levantar para um novo dia, você poderá pensar. Sim, sim, entendo o que você quer dizer. Mas é um fim de semana, entende? Um único e longo fim de semana. Então o relógio bateu onze e doze e treze: um período que chamamos de Baixa Idade Média, quando se construíram as grandes catedrais da Europa. Só ali pelas catorze horas é que um galo começa a cantar. Um aqui, outro ali. E então… a longa Idade Média começa a caminhar rumo ao seu fim.
— Quer dizer que a Idade Média durou dez horas? — perguntou Sofia.
Alberto descobriu a cabeça, até então envolta pelo hábito de monge, e fitou sua audiência, que naquele momento se resumia a uma jovem de catorze anos.
— Se cada hora valer cem anos, então sua conta está certa. Podemos imaginar que Jesus nasceu à meia-noite, que Paulo saiu em peregrinação missionária pouco antes da meia-noite e meia e morreu quinze minutos depois, em Roma. Até as três da manhã a fé cristã foi mais ou menos proibida. E então, em 313, o Império Romano reconheceu o cristianismo como religião. Foi durante o governo do imperador Constantino. Só muitos anos depois, já no seu leito de morte, é que o devoto imperador se deixou batizar. Em 380, o cristianismo se tornou a religião oficial de todo o Império Romano.
— Mas depois o Império Romano não ruiu?
— Suas estruturas já estavam bastante abaladas, sim. Estamos diante de uma das transformações culturais mais importantes da história. No século IV, Roma foi ameaçada tanto por levas de povos que vinham do Norte quanto por um processo de desintegração interna. Em 330, o imperador Constantino, o Grande, transferiu a capital do Império Romano para Constantinopla, cidade que ele próprio tinha fundado às margens do mar Negro. A partir de então, Constantinopla passou a ser conhecida como “a segunda Roma”. No ano de 395, o Império Romano foi dividido: passou a haver, então, um Império Romano do Ocidente, tendo Roma como seu centro, e um Império Romano do Oriente, cuja capital era a nova cidade de Constantinopla. Em 410, Roma foi pilhada por povos bárbaros, e em 476 todo o Império Romano do Ocidente ruiu. O Império Romano do Oriente continuou a existir até 1453, ano em que os turcos tomaram Constantinopla.
— E desde então a cidade se chama Istambul?
— Isso mesmo. Outra data que precisamos gravar é o ano de 529. Neste ano, a Academia de Platão, em Atenas, foi fechada. E no mesmo ano foi fundada a Ordem dos Beneditinos, a primeira grande ordem religiosa. Assim, o ano de 529 simboliza o momento em que a Igreja cristã “coloca uma tampa” na filosofia grega. Dali em diante, os mosteiros passaram a deter o monopólio da educação, reflexão e meditação. E os ponteiros de nosso relógio caminham agora para as cinco e meia…
Sofia já tinha entendido o que Alberto queria dizer com todas aquelas referências às horas. Meia-noite era, portanto, o ano zero, uma hora o ano 100 d.C., seis horas o ano 600 d.C. e catorze horas o ano 1400 d.C. …
Alberto prosseguiu:
— Por “Idade Média” entende-se, na verdade, um período que se estende entre duas outras épocas. A expressão “Idade Média” surgiu no Renascimento. Para o homem renascentista, a Idade Média tinha sido uma única e longa “noite de mil anos”, que cobrira a Europa entre a Antigüidade e o Renascimento. Ainda hoje empregamos a expressão “medieval” em sentido pejorativo para nos referir a tudo que nos parece demasiado rígido e autoritário. Mas também houve os que considerassem a Idade Média um período de “mil anos de crescimento”. Foi na Idade Média, por exemplo, que se constituiu o sistema escolar. Já nos primórdios da Idade Média surgiram nos conventos as primeiras escolas. No século XII, as escolas das catedrais vieram se juntar às dos mosteiros. Por volta de 1200, aproximadamente, começaram a ser fundadas as primeiras universidades. Ainda hoje, os estudos das diferentes áreas do saber são divididos em diferentes “faculdades”, exatamente como na Idade Média.
— Mil anos é muito tempo…
— Sim, mas o cristianismo precisava de tempo para atingir todas as camadas da população. Durante a Idade Média surgiram também as diferentes nações, com suas cidades e fortalezas, sua música própria e suas narrativas populares. O que seria dos contos de fadas e das canções populares se não tivesse existido a Idade Média? Sim, o que seria a Europa sem a Idade Média, Sofia? Uma província romana, quem sabe? O fundo de ressonância de nomes como Noruega, Inglaterra e Alemanha está exatamente nas profundezas insondáveis do que chamamos de Idade Média. São profundezas habitadas por peixes enormes e luminosos, ainda que não possamos vê-los. Snorre foi um homem da Idade Média. E também Olavo, o Santo. E Carlos Magno. Isto para não mencionar Romeu e Julieta, os nibelungos, Branca de Neve ou os trolls das florestas norueguesas. E também para não falar de toda uma legião de príncipes imponentes, reis majestosos, cavaleiros valentes e lindas donzelas, vitralistas anônimos e geniais construtores de órgãos. E ainda nem mencionei os frades, os cruzados e as “bruxas”.
— Também não falou dos padres.
— Certo. O cristianismo só veio para a Noruega após a virada do milênio. Contudo, seria exagero afirmar que a Noruega se tornou um país cristão após a batalha de Stiklestad. Antigas crenças pagãs continuaram a viver sob a superfície do cristianismo, e muitos desses elementos pré-cristãos mesclaram-se às práticas cristãs. Nas festas natalinas norueguesas, por exemplo, práticas cristãs convivem em harmonia com hábitos dos antigos povos nórdicos. E aqui vale a regra segundo a qual, depois de muito tempo de convivência, as duas partes de um casal acabam se parecendo. Apesar disso, é preciso enfatizar que o cristianismo acabou se impondo como a visão de mundo predominante. Por isso falamos também de uma “unidade da cultura cristã”.
— Quer dizer que aquela época não foi só de trevas e de tristeza?
— Os primeiros cem anos depois de 400 d.C. foram realmente anos de declínio cultural. A era romana fora uma época de “cultura elevada”, com grandes cidades que dispunham de sistemas de esgotos, banhos e bibliotecas públicas. Isto para não falar da imponente arquitetura. Toda esta cultura entrou em declínio durante os primeiros cem anos da Idade Média. O mesmo vale para o comércio e o sistema financeiro. Na Idade Média foram reintroduzidos o comércio de trocas e a economia de bens in natura. A economia passou a ser marcada pelo chamado feudalismo. Feudalismo significa que grandes latifundiários possuíam as terras nas quais os camponeses tinham que trabalhar a fim de ganhar o seu sustento. Durante os primeiros séculos, o índice demográfico recuou sensivelmente. Na Antigüidade, Roma havia sido uma cidade de um milhão de habitantes. Já no século VII, a população da antiga capital mundial encolhera para quarenta mil habitantes, isto é, para apenas uma fração do que tinha sido. Uma população reduzida se movimentava agora por entre o que tinha restado das majestosas edificações do período áureo. E quando as pessoas precisavam de material de construção, nenhum problema: havia um número suficiente de velhas ruínas de onde elas podiam tirar o que precisavam. É claro que isto deixa irritados os arqueólogos de hoje, pois eles teriam preferido que as pessoas da Idade Média tivessem deixado em paz os antigos monumentos arquitetônicos.
— Depois que a gente faz as coisas é que percebe o que não deveria ter feito.
— Em fins do século IV, o período de Roma enquanto potência política já tinha passado. Não demorou, porém, para que o bispo de Roma se tornasse o chefe de toda a Igreja católica romana. Ele recebeu o nome de papa – ou “pai” – e passou a ser considerado o representante de Jesus na Terra. Por esta razão, durante quase toda a Idade Média Roma foi a capital da Igreja. E não havia muitos que ousavam “erguer a voz contra Roma”. Pouco a pouco, porém, os reis e príncipes dos novos Estados nacionais se tornaram tão poderosos que alguns deles reuniram coragem para se opor ao forte poder da Igreja. Um deles foi o nosso rei Sverre…
Sofia não tirava os olhos do sábio monge.
— Você disse que a Igreja havia fechado a Academia de Platão, em Atenas. Depois disso todos os filósofos gregos foram esquecidos?
— Só em parte. Algumas pessoas conheciam alguns escritos de Aristóteles, outras alguns de Platão. Mas o antigo Império Romano foi se dividindo pouco a pouco em três espaços culturais diferentes. Na Europa ocidental formou-se uma cultura cristã de língua latina, cuja capital era Roma. Na Europa oriental surgiu um núcleo cultural cristão de língua grega, cuja capital era Bizâncio. Mais tarde Constantinopla passou a se chamar Bizâncio. Por isso falamos de uma “Idade Média bizantina” em oposição a uma “Idade Média católico-romana”. Mas também o Norte da África e o Oriente Médio tinham pertencido ao Império Romano. Nestas regiões desenvolveu-se na Idade Média uma cultura muçulmana de língua árabe. Depois da morte de Maomé, em 632, o Oriente Médio e o Norte da África foram conquistados pelo Islã. Pouco tempo depois, a Espanha também foi incorporada ao círculo cultural muçulmano. Os locais sagrados do Islã, por exemplo, eram Meca, Medina, Jerusalém e Bagdá. Do ponto de vista histórico-cultural, é importante observar que os árabes também tomaram Alexandria, a antiga cidade helenística. Desta forma eles herdaram grande parte da ciência grega. Durante toda a Idade Média, os árabes foram os líderes em ciências tais como matemática, química, astronomia e medicina. Até hoje empregamos os “algarismos arábicos”, por exemplo. Em alguns campos, a cultura árabe era mesmo superior à cristã.
— Eu gostaria de saber o que aconteceu com a filosofia grega.
— Você consegue imaginar um rio que, ao chegar em determinado ponto, se divide em três outros, que depois se reencontram num grande volume de água?
— Consigo.
— Então você também consegue imaginar que a cultura greco-romana foi em parte transmitida pela cultura católico-romana no Ocidente, em parte pela cultura romano-oriental e em parte pela cultura árabe no sul. Se quisermos simplificar bastante as coisas, podemos dizer que o neoplatonismo sobreviveu no Ocidente, Platão no Oriente e Aristóteles no Sul, entre os árabes. O mais importante é que esses três “rios” voltam a se encontrar numa única corrente no Norte da Itália, no final da Idade Média. Os árabes na Espanha contribuíram com influências árabes; a Grécia e Bizâncio, com influências gregas. E começou, então, o Renascimento, isto é, o ressurgimento da antiga cultura. De certa forma, a cultura da Antigüidade conseguiu sobreviver a toda a Idade Média.
— Entendo…
— Mas não vamos antecipar os acontecimentos. Primeiro vamos falar um pouco sobre a filosofia da Idade Média. E não vou mais ficar conversando com você aqui do púlpito. Vou descer até aí.
AGOSTINHO
(Páginas 192-197.)
Sofia começou a sentir os olhos pesados. Afinal, ela não tinha dormido mais do que duas horas. Pareceu-lhe estar sonhando quando viu a figura daquele monge singular descendo do púlpito da igreja de Santa Maria.
Alberto dirigiu-se até o banco do altar. Primeiro olhou para o altar onde havia aquele crucifixo antigo. Depois virou-se para a direção de Sofia, foi a passos lentos até ela e sentou-se ao seu lado no banco.
Era estranho tê-lo assim tão perto. Sob o capuz do hábito, Sofia pôde ver dois olhos castanhos. Eram os olhos de um homem de meia-idade, que usava cavanhaque.
“Quem é você?”, pensou ela. “Por que você entrou assim na minha vida?”
— Ainda vamos nos conhecer melhor — disse ele, como se tivesse lido os pensamentos dela.
Enquanto permaneceram ali sentados e a luz que entrava pelos vitrais coloridos ia ficando cada vez mais clara, Alberto Knox começou a falar sobre a filosofia da Idade Média.
— Para os filósofos da Idade Média, o fato de o cristianismo significar a verdade era um dado praticamente irrefutável. A questão era saber se tínhamos que simplesmente acreditar na revelação cristã, ou se também podíamos nos aproximar das verdades cristãs com a ajuda de nossa razão. Qual era a relação entre os filósofos gregos e as doutrinas da Bíblia? Havia uma contradição entre a Bíblia e a razão, ou será que a fé e o conhecimento podiam conviver em harmonia? Quase toda a filosofia da Idade Média gira em torno dessas questões.
Sofia concordou com a cabeça, impaciente. É que ela já tinha estudado essa história de crença e conhecimento em suas aulas de religião.
— Veremos como esta problemática é tratada pelos dois maiores filósofos da Idade Média. Podemos começar com santo Agostinho, que viveu de 354 a 430. A vida deste homem resume sozinha a transição entre o final da Antigüidade e os primórdios da Idade Média. Santo Agostinho nasceu em Tagasta, no Norte da África, mas já aos dezesseis anos foi para Cartago para estudar. Mais tarde ele visitou Roma e Milão e passou os últimos anos de sua vida como bispo de Hipona, trinta ou quarenta quilômetros a oeste de Cartago. Mas ele não foi cristão durante toda a sua vida. Antes de se converter, santo Agostinho pesquisou várias tendências filosóficas e religiosas.
— Você pode me dar um exemplo?
— Durante algum tempo ele foi maniqueu. Os maniqueus formavam uma seita típica do final da Antigüidade. Eles professavam uma doutrina da salvação meio religiosa, meio filosófica. Dividiam o mundo em bem e mal, luzes e trevas, espírito e matéria. Graças a seu espírito, o homem podia transcender a matéria e criar com isto as bases para a redenção de sua alma. Mas a divisão estanque entre bem e mal não deixava Agostinho sossegado. O jovem Agostinho ocupou-se intensamente daquilo que costumamos chamar de “o problema do mal”. Referimo-nos com isto à questão de saber a origem do mal. Durante algum tempo ele foi influenciado pela filosofia estóica, e os estóicos contestavam uma divisão rígida entre bem e mal. Mas foi sobretudo a segunda importante corrente filosófica do final da Antigüidade – o neoplatonismo – que mais influenciou santo Agostinho. Aqui ele tomou contato com a idéia de que toda a existência humana é de natureza divina.
— E então ele se transformou num bispo neoplatônico?
— Sim, talvez possamos colocar a coisa dessa forma. Em primeiro lugar, ele se converteu ao cristianismo, mas o cristianismo de santo Agostinho é em grande parte influenciado pelo pensamento de Platão. E como você pode ver, Sofia, no momento em que entramos na Idade Média cristã vemos que não se tratou de uma ruptura assim tão dramática com a filosofia grega. Muito da filosofia grega foi levado para a nova era pelas mãos de padres da igreja, como santo Agostinho.
— Você está querendo dizer que santo Agostinho era cinqüenta por cento cristão e cinqüenta por cento neoplatônico?
— Bem, ele próprio se considerava cem por cento cristão. Mas ele não via muitas contradições entre o cristianismo e a filosofia de Platão. Para ele, os paralelos entre a filosofia de Platão e a doutrina cristã eram tão evidentes que ele se perguntava se Platão não teria conhecido pelo menos uma parte do Antigo Testamento. É claro que isto é muito pouco provável. Seria mais acertado dizer que santo Agostinho “cristianizou” Platão.
— Pelo menos ele não desprezou tudo o que tinha a ver com filosofia, embora acreditasse no cristianismo.
— Mas ele mostrou que há limites para a razão, quando se trata de questões religiosas. O cristianismo também é um mistério divino, a que só podemos chegar através da fé. Se acreditarmos no cristianismo, porém, Deus irá “iluminar” nossa alma e então receberemos d’Ele uma espécie de saber que está além do natural. Santo Agostinho experimentou nele próprio os limites até onde a filosofia podia chegar. Somente quando se converteu ao cristianismo é que sua alma conheceu a paz. “Inquieto é o nosso coração, até quando repousa em Ti”, escreveu ele.
— Não entendo muito bem como a teoria das idéias, de Platão, e o cristianismo podem ter alguma identificação — replicou Sofia. — O que acontece, por exemplo, com as idéias eternas?
— Santo Agostinho explicava que Deus havia criado o mundo a partir do nada, e este é um ensinamento da Bíblia. Os gregos, por sua vez, tendiam para a visão segundo a qual o mundo sempre tinha existido. Para Agostinho, antes de Deus ter criado o mundo, as “idéias” já existiam dentro da Sua cabeça. Ele atribuiu a Deus as idéias eternas e com isto salvou a concepção platônica das idéias eternas.
— Muito inteligente!
— Isto também nos mostra que Agostinho e muitos outros membros do clero se esforçavam ao máximo para conciliar o pensamento grego com o judeu. De certa forma, eles eram cidadãos de duas culturas. Também na sua visão sobre o mal Agostinho remonta ao neoplatonismo. Como Plotino, ele também achava que o mal era a “ausência” de Deus. Assim, o mal não teria uma existência autônoma, mas seria algo que não é. Isto porque Deus só criou o bem. Para Agostinho, o mal surge da desobediência do homem. Ou, para dizê-lo com suas próprias palavras: “a ‘boa vontade’ é ‘obra de Deus’, a ‘má vontade’ é a ‘ausência da obra de Deus’”.
— Ele também acreditava que o homem possui uma alma imortal?
— Sim e não. Agostinho explica que entre Deus e o mundo existe um abismo intransponível. Nesse sentido ele está firmemente enraizado em solo bíblico e refuta a doutrina de Plotino, para quem tudo é uma coisa só. Mas Agostinho também deixa claro que o homem é um ser espiritual. Ele possui um corpo material, que pertence ao mundo físico e que sofre a corrosão do tempo e de outros agentes, mas também possui uma alma, capaz de reconhecer Deus.
— O que acontece com a alma quando morremos?
— Para Agostinho, toda a raça humana fora amaldiçoada depois do pecado original. Não obstante, Deus havia decidido que alguns homens seriam salvos da maldição eterna.
— Bem, do mesmo jeito Ele poderia ter decidido que ninguém seria amaldiçoado — revidou Sofia.
— Mas neste ponto Agostinho nega que o homem tenha o direito de criticar Deus. E cita Paulo em sua Epístola aos Romanos: “Ó homem, quem és tu para replicares a Deus? Porventura o vaso de barro diz a quem o fez: ‘Por que me fizeste assim?’. Porventura não é o oleiro senhor do barro para poder fazer da mesma massa um vaso para uso honroso e outro para uso vil?”.
— Quer dizer que Deus fica lá no céu brincando com as pessoas? E quando alguma de suas criações fez alguma coisa que não Lhe convém, Ele simplesmente a lança em desgraça?
— Para Agostinho, nenhum homem merece a redenção divina. Não obstante, Deus teria escolhido alguns que seriam salvos da condenação eterna. Para Ele, portanto, não há qualquer mistério sobre quem deve e quem não deve ser salvo. Isto já está estabelecido a priori. Portanto, sim… somos barro nas mãos de Deus. E estamos totalmente à mercê de Sua graça.
— Isto significa que, de alguma forma, santo Agostinho retomou as antigas crenças no destino.
— Em parte você tem razão. Mas nem por isso santo Agostinho isenta o homem da responsabilidade por sua própria vida. Seu conselho é o de que devemos viver uma vida durante a qual possamos reconhecer que pertencemos aos escolhidos. Pois santo Agostinho não nega o livre-arbítrio. Só que Deus já “viu”, antes, como iremos viver.
— Isto não é um tanto injusto? — perguntou Sofia. — Sócrates acreditava que todas as pessoas tinham as mesmas possibilidades, pois todas possuíam a mesma razão. Mas santo Agostinho divide as pessoas em dois grupos: o primeiro será redimido, e o segundo continuará amaldiçoado.
— Sim, com a teologia de santo Agostinho nós nos afastamos um pouco do humanismo de Atenas. Mas não era Agostinho que dividia a humanidade em dois grupos. Ele se baseava na doutrina bíblica da redenção e da condenação. Em sua grande obra, A cidade de Deus, ele explica isto mais detalhadamente.
— Fale-me a respeito dela.
— A expressão “Cidade de Deus” ou “Reino de Deus” tem sua origem na Bíblia e nos ensinamentos de Jesus. Agostinho acreditava que a história do homem era a história da luta entre o “Reino de Deus” e o “Reino do Mundo”. Estes dois reinos não são dois reinos políticos nitidamente separados um do outro, mas reinos que, dentro de cada homem, aspiram ao poder. Não obstante, o Reino de Deus é mais ou menos evidente na Igreja, ao passo que o Reino do Mundo está mais ou menos presente nos fundamentos dos Estados políticos. Por exemplo, no Império Romano, que precisamente durante a época de Agostinho vivia o seu declínio. Esta noção se tornou cada vez mais clara à medida que Igreja e Estado travaram uma verdadeira batalha pelo poder durante toda a Idade Média. “Não há salvação fora da Igreja”: esta era a palavra de ordem. Aos poucos, a “Cidade de Deus” de santo Agostinho acabou se identificando com a Igreja enquanto organização. Somente durante a Reforma, no século XVI, é que se levantaram protestos contra o fato de o homem ter de percorrer o caminho da Igreja para obter a graça de Deus.
— Já não era sem tempo…
— Outra coisa a observar é o fato de Agostinho ter sido o primeiro de nossos filósofos a inserir a história em sua filosofia. A idéia de uma luta entre o bem e o mal não era absolutamente nova. O que é novo em santo Agostinho é o fato de esta luta acontecer dentro e através da história. Deste ponto de vista não há muito de Platão em santo Agostinho. Nesse aspecto ele retoma a visão linear da história, que encontramos no Antigo Testamento. Agostinho acreditava que Deus precisava de toda a história para erigir o seu “Reino”. A história é necessária para educar o homem e eliminar o mal. Nesse sentido, Agostinho diz que a Divina Providência conduz a história da humanidade de Adão até o final dos tempos, à semelhança da história de um homem que, passo a passo, caminha da infância até a velhice.
Sofia olhou para o relógio.
— Já são oito horas — disse. — Preciso ir embora.
— Antes de você ir, quero falar um pouco sobre o segundo grande filósofo da Idade Média. Vamos lá para fora da igreja?
Alberto levantou-se do banco. Uniu as palmas das mãos, como que em sinal de oração, e foi caminhando pela nave central. Ele parecia estar rezando ou então refletindo sobre verdades espirituais. Sofia o seguiu. Ela sentiu que não tinha outra escolha.
TOMÁS DE AQUINO
(Páginas 197-205.)
Lá fora ainda havia uma fina cortina de neblina sobre o chão. O sol já nascera havia algumas horas, mas ainda não tinha conseguido atravessar o véu de neblina da manhã. A igreja de Santa Maria ficava na divisa com a cidade velha. Alberto sentou-se num banco na frente da igreja. Sofia ficou imaginando o que aconteceria se algum conhecido passasse por ali. Já era uma coisa estranha ficar sentada num banco às oito horas da manhã; ainda mais ao lado de um monge da Idade Média!
— São oito horas — começou Alberto. — Desde Agostinho são passados quatrocentos anos, e agora começa o longo dia escolar. Até as dez horas as escolas dos mosteiros detiveram o monopólio da educação. Entre dez e onze horas são fundadas as primeiras universidades. E então começam a ser construídas as grandes catedrais. Esta igreja aqui também foi construída por volta do meio-dia, ou na chamada Baixa Idade Média. Esta cidade não tinha meios para bancar a construção de uma catedral maior.
— E para que uma igreja maior? — retrucou Sofia, interrompendo-o. — Acho simplesmente horríveis as igrejas vazias.
— Mas as grandes catedrais não foram construídas apenas para abrigar uma grande comunidade. Elas foram erigidas em honra a Deus e eram em si uma espécie de serviço religioso. Na Alta Idade Média, porém, aconteceu ainda uma outra coisa que é do interesse de filósofos como nós.
— Conte-me!
Alberto prosseguiu:
— A influência dos árabes na Espanha começou a se fazer sentir. Durante toda a Idade Média, os árabes haviam mantido viva a tradição aristotélica. A partir de 1200, aproximadamente, estudiosos árabes vieram para o Norte da Itália a convite dos príncipes locais. Desta forma, muitos dos escritos desses estudiosos se tornaram conhecidos e acabaram sendo traduzidos do grego e do árabe para o latim. E isto despertou novamente o interesse pelas questões relativas às ciências naturais. Além disso, reavivou-se a discussão sobre a relação entre a fé cristã e a filosofia grega. Nas questões relativas às ciências naturais, todos os caminhos passavam necessariamente por Aristóteles. Contudo, restava saber ainda quando é que os “filósofos” deviam ser ouvidos e quando é que se deveria ouvir exclusivamente a Bíblia. Você está me acompanhando?
Sofia concordou com a cabeça, e o monge prosseguiu:
— O maior e mais importante filósofo da Baixa Idade Média foi são Tomás de Aquino, que viveu entre 1225 e 1274. Ele era originário da pequena cidade de Aquino, entre Roma e Nápoles, mas também trabalhou como professor em Paris. Eu o chamo de “filósofo”, mas ele foi igualmente um teólogo. Naquela época não existia uma nítida divisão entre filosofia e teologia. De forma breve, podemos dizer que são Tomás de Aquino “cristianizou” Aristóteles do mesmo modo como Agostinho fizera com Platão no início da Idade Média.
— Não era um tanto esquisito cristianizar filósofos que tinham vivido tantos séculos antes do nascimento de Cristo?
— Em parte você tem razão. Mas o que entendemos por “cristianização” desses dois filósofos é o fato de eles terem sido interpretados e entendidos de modo a deixarem de significar uma ameaça para a doutrina cristã. Diz-se de são Tomás de Aquino que ele “conseguiu pegar o touro pelos chifres”.
— Não sabia que a filosofia tinha alguma coisa a ver com touradas…
— São Tomás de Aquino está entre os que tentaram conciliar a filosofia de Aristóteles com o cristianismo. E o que se atribui a ele é o mérito de ter conseguido a grande síntese entre a fé e o conhecimento. São Tomás de Aquino só conseguiu este feito porque mergulhou na filosofia de Aristóteles e a tomou ao pé da letra.
— Ou pelo chifre. Desculpe-me… é que eu quase não dormi esta noite e temo que você tenha que explicar isto mais detalhadamente.
— São Tomás de Aquino não acreditava num paradoxo irreconciliável entre aquilo que nos diz a filosofia ou a razão, de um lado, e a revelação ou a fé cristã, de outro. Muito freqüentemente, o cristianismo e a filosofia falam da mesma coisa. Isto quer dizer que podemos sondar com a razão as mesmas verdades que lemos na Bíblia.
— Como isto pode ser possível? Será que a razão é capaz de nos dizer que Deus criou o mundo em seis dias? Ou então que Jesus era filho de Deus?
— Não, não. Só pela fé e pela revelação cristã é que podemos chegar a essas puras “verdades de fé”. Para são Tomás de Aquino, porém, havia ainda uma série de “verdades naturais teológicas” ao lado dessas “verdades de fé”. Por “verdades naturais teológicas” ele se referia àquelas verdades a que podemos chegar tanto pela fé cristã quanto pela nossa própria razão “natural”, inata. Para ele, um exemplo desse tipo de verdade seria o fato de que existe um Deus. Tomás acreditava, portanto, em dois caminhos que levavam a Deus. O primeiro passava pela fé e pela revelação cristã, o segundo pela razão e os sentidos. É claro que dos dois caminhos o mais seguro era o dá fé e da revelação, pois o homem pode facilmente se enganar quando confia apenas na razão. Mas o que importa salientar nesse contexto é o fato de que, para são Tomás de Aquino, não precisava necessariamente existir um paradoxo entre a doutrina cristã e um filósofo como Aristóteles.
— Quer dizer que podemos nos ater tanto a Aristóteles quanto à Bíblia?
— Não, não. Aristóteles percorreu apenas um pedaço do caminho, porque ele não conheceu a revelação cristã. Mas percorrer um pedaço do caminho não é o mesmo que tomar o caminho errado. Não é errado dizer, por exemplo, que Atenas fica na Europa. Só que está também não é uma afirmação muito precisa. Se um livro diz que Atenas é uma cidade da Europa, você ainda vai precisar procurar no atlas a localização da cidade. E ali você encontra a verdade por inteiro: Atenas é a capital da Grécia, um pequeno país do Sudeste da Europa. Com um pouco de sorte você ainda fica sabendo alguma coisa sobre a Acrópole. Tudo isto para não falar de Sócrates, Platão e Aristóteles.
— Mas a primeira informação sobre Atenas também estava certa.
— Exatamente! São Tomás de Aquino quer mostrar que existe apenas uma verdade. Quando Aristóteles nos mostra alguma coisa que reconhecemos como certa com nossa razão, isto não contradiz a doutrina cristã. Uma parte da verdade nós podemos reconhecer, portanto, através da razão e da observação. Por exemplo, aquelas verdades a que Aristóteles se refere quando descreve o reino vegetal e o animal. Uma segunda parte da verdade nos foi revelada por Deus através da Bíblia. O problema é que as duas partes da verdade se sobrepõem em muitos pontos importantes. Existem algumas questões que são respondidas tanto pela Bíblia quanto pela razão.
— Por exemplo, a de que existe um Deus?
— Exatamente. A filosofia de Aristóteles também pressupunha a existência de um Deus, ou de uma causa primordial, que colocava em marcha todos os processos da natureza. Mas ela não descreve em detalhes este Deus. Neste particular, temos de nos ater ao que dizem a Bíblia e os ensinamentos de Jesus.
— Quer dizer que a existência de um Deus é um fato consumado?
— Isto é uma coisa discutível. Ainda hoje, porém, a maioria das pessoas teria de admitir que a nossa razão não é capaz de provar que não existe um Deus. São Tomás de Aquino foi mais adiante. Ele acreditava poder provar a existência de Deus com base na filosofia de Aristóteles.
— Nada mal!
— Ele dizia que, com a ajuda da razão, podemos reconhecer também que tudo precisa ter uma “primeira causa”. Para são Tomás de Aquino, Deus havia se revelado aos homens através da Bíblia e da razão. Existe, portanto, uma “teologia revelada” e uma “teologia natural”. O mesmo vale para o campo da moral. Podemos ler na Bíblia como devemos viver segundo a vontade de Deus. Mas Deus também nos dotou de uma consciência, que nos habilita a distinguir “naturalmente” o certo do errado. Assim, “dois caminhos” levam também à vida moral. Sabemos que não podemos ferir as outras pessoas, mesmo que não tenhamos lido na Bíblia que devemos tratar os outros da forma como gostaríamos de ser tratados. Mas também nesse particular os mandamentos da Bíblia são o guia mais seguro.
— Acho que estou entendendo — disse Sofia. — É mais ou menos como podemos saber que uma tempestade se aproxima quando vemos raios e ouvimos trovões.
— Correto. Mesmo se formos cegos, podemos ouvir o trovão. E mesmo se formos surdos, podemos ver a tempestade. É claro que o melhor seria poder ver e ouvir. Mas não há uma contradição entre o que vemos e o que ouvimos. Ao contrário: uma impressão reforça a outra.
— Entendo.
— Deixe-me evocar outra imagem. Quando você lê um romance, por exemplo Victoria, de Knut Hamsun…
— Por acaso já li este…
— …você não fica sabendo alguma coisa sobre o autor pelo simples fato de ter lido um de seus livros?
— Na pior das hipóteses, posso afirmar que há um autor que escreveu o livro.
— Dá para saber alguma outra coisa sobre ele?
— Dá… por exemplo, que ele tem uma visão bastante romântica do amor.
— Portanto, quando você lê este romance, que é uma criação de Hamsun, você fica sabendo ao mesmo tempo alguma coisa sobre o próprio Hamsun. Mas você não pode esperar obter uma informação realmente pessoal sobre o autor. Lendo Victoria, você consegue ficar sabendo, por exemplo, quantos anos o autor tinha quando escreveu o livro? Ou então onde morava, ou ainda quantos filhos tinha?
— É claro que não.
— A relação entre a criação de Deus e a Bíblia é mais ou menos assim. Quando observamos a natureza, podemos reconhecer que existe um Deus. Podemos ver, talvez, que ele gosta de flores e de animais, senão não os teria criado. Outras informações sobre Deus, porém, nós só as encontramos na Bíblia, quer dizer, na autobiografia de Deus.
— Este foi um bom exemplo!
— Mmmmm…
Pela primeira vez Alberto mergulhou em pensamentos e não deu qualquer resposta.
(…)
— Agora já é meio-dia. Preciso voltar para casa antes do final da Idade Média.
— Em poucas palavras, vou mostrar como Tomás de Aquino adotou a filosofia de Aristóteles em todas as áreas que não colidiam com a teologia da Igreja. Isto vale para a sua lógica, para a sua filosofia do conhecimento e também para a sua filosofia da natureza. Você ainda se lembra, por exemplo, de como Aristóteles descreve uma escala ascendente da vida, desde as plantas e os animais até o homem?
Sofia concordou.
— O próprio Aristóteles acreditava que esta escala apontava para um Deus que representava o ápice da existência. Este esquema era facilmente adaptável à teologia cristã. São Tomás de Aquino acredita num grau crescente de existência que vai das plantas e dos animais para o homem, do homem para os anjos e dos anjos para Deus. À semelhança dos animais, o homem também tem um corpo e órgãos de sentidos, mas o homem também possui uma razão “que examina as coisas a fundo”. Os anjos não têm nem corpo, nem órgãos de sentidos; em compensação, possuem uma inteligência direta e instantânea. Diferentemente dos homens, eles não precisam “refletir”, não precisam tirar conclusões. Eles conhecem tudo o que o homem pode conhecer, só que não precisam ir progredindo passo a passo como nós. E por não terem corpo, os anjos também nunca morrem. Eles não são eternos como Deus, pois também foram criados por Deus um dia. Mas não possuem um corpo do qual possam se separar. E é por isso que nunca morrem.
— Isto parece ser maravilhoso.
— Acima dos anjos, porém, está o trono de Deus, Sofia. Com um único olhar ele é capaz de ver, relacionar e saber tudo.
— Então ele está nos vendo agora.
— Sim, talvez ele esteja nos vendo. Mas não “agora”. Para Deus, o tempo não é a mesma coisa que é para nós. Nosso “agora” não é o “agora” de Deus. Algumas semanas para nós não significam necessariamente algumas semanas para Deus.
(…)
E Alberto prosseguiu:
— Infelizmente, são Tomás de Aquino adotou também a visão que Aristóteles tinha da mulher. Você talvez ainda lembre que, para Aristóteles, a mulher era uma espécie de homem inacabado. Além disso, ele acreditava que os filhos herdavam apenas as características do pai, pois para Aristóteles a mulher era passiva e receptora, ao passo que o homem era ativo e criativo. Para são Tomás de Aquino, a visão de Aristóteles estava de acordo com as palavras da Bíblia, segundo as quais a mulher teria sido feita a partir da costela de um homem.
— Que besteira!
— Talvez seja importante acrescentar que o óvulo da mulher só foi descoberto em 1827. Por isso talvez não fosse de estranhar que eles considerassem o homem a parte criativa e doadora de vida no processo de reprodução. Além disso, é bom observar que para são Tomás de Aquino a mulher só era inferior ao homem enquanto ser natural. Para ele, a alma da mulher tinha o mesmo valor que a do homem. No céu existe plena igualdade de direitos entre os sexos, pela simples razão de que, abandonado o corpo, deixam de existir quaisquer diferenças físicas entre os sexos.
— Este não é um consolo dos mais animadores. Quer dizer que não houve nenhuma filósofa na Idade Média?
— Na Idade Média, a Igreja era fortemente dominada pelos homens. Mas isto não significa que não tenha havido mulheres pensadoras. Uma delas foi Hildegard Bingen…
(…)
[Alberto prosseguiu:]
— Hildegard foi uma freira que viveu entre 1098 e 1179 na Renânia. Apesar de ser mulher, ela fazia sermões, foi escritora, médica, botânica e pesquisadora natural. Talvez ela seja o exemplo mais evidente de que, na Idade Média, as mulheres freqüentemente eram mais práticas, e talvez mais científicas, do que os homens.
(…)
[Alberto prosseguiu:]
— Havia uma antiga crença cristã e judaica segundo a qual Deus não era apenas homem. Ele teria também um lado feminino, ou uma “natureza materna”. Afinal, a mulher também tinha sido criada à Sua imagem e semelhança. Em grego, a palavra para este lado feminino de Deus é Sophia. “Sophia” ou “Sofia” significa “sabedoria”.
Confusa, Sofia sacudiu a cabeça. Por que ninguém nunca lhe havia dito aquilo? E por que também ela nunca perguntara?
Alberto prosseguiu:
— Entre os judeus, e também na Igreja ortodoxa grega, “Sophia”, ou seja, a natureza materna de Deus, teve certa importância durante a Idade Média. No Ocidente, ela caiu no esquecimento. Mas então apareceu Hildegard. E ela conta que Sophia lhe apareceu em visões usando uma túnica toda ornamentada de pedras preciosas…
(…)
[Alberto prosseguiu:]
— Mas agora já é quase uma hora. Você precisa ir para casa almoçar. À nossa frente começa a se descortinar um novo tempo. Vou marcar um encontro com você para falarmos sobre o Renascimento. Hermes [o cão labrador de Alberto] irá buscá-la no jardim.
CAPÍTULO 16 (EXCERTO)
O RENASCIMENTO
OS PRESSUPOSTOS DO RENASCIMENTO
(Páginas 212-218.)
(…)
Sofia ouviu passos que se aproximavam do outro lado. Então a porta se abriu. Era Alberto Knox. Ele havia trocado de roupa, mas também estava fantasiado. Alberto usava meias brancas até a altura dos joelhos, uma calça vermelha bem larga, também até a altura dos joelhos, e uma jaqueta amarela com gordos enchimentos nos ombros. Sua figura fez Sofia lembrar-se do curinga de um baralho. Se ela não estava enganada, aquele era um traje típico do Renascimento.
— Palhaço! — exclamou Sofia, ao mesmo tempo em que o empurrava para o lado e entrava no apartamento. Ela ainda estava totalmente fora de si por causa do cartão-postal que encontrara junto à escadaria.
— Acalme-se, minha filha — disse Alberto, fechando a porta.
(…)
Foram para a sala, a mais estranha que Sofia já tinha visto em toda a sua vida.
Alberto morava num sótão bem espaçoso, com uma parede inclinada e um teto baixo. No teto havia uma clarabóia que deixava entrar uma luz forte vinda diretamente do céu. A sala também tinha uma janela que dava para a cidade. Através dela, Sofia podia ver o telhado de muitos daqueles casarões antigos.
Mas era a decoração daquela sala enorme que mais deixava Sofia intrigada. A sala estava apinhada de móveis e objetos de diferentes épocas. O sofá devia ser dos anos 30, a velha escrivaninha era mais ou menos da virada do século e havia uma cadeira que devia ter pelo menos alguns séculos de idade. Mas os móveis não eram tudo! Nas prateleiras e estantes havia uma confusão de quinquilharias: relógios e vasos antigos, morteiros e retortas, facas e bonecas, canivetes e suportes para livros, octantes e sextantes, bússolas e barômetros. Uma parede inteira estava coberta de livros, mas não dos que a gente costuma encontrar em livrarias. A coleção de livros também parecia uma pequena amostra de toda a produção de livros de muitos séculos. Nas outras paredes havia gravuras e quadros. Alguns provavelmente datavam de algumas décadas, ao passo que outros pareciam ser muito antigos. E nas paredes havia também alguns mapas. Numa delas, o mapa da Noruega não estava muito certo: o fiorde de Sogne estava mais para o lado de Trøndelag, e o fiorde de Trondheim, muito ao norte.
Sofia ficou algum tempo parada, sem dizer nada. Virou-se algumas vezes e não sossegou enquanto não tinha examinado a sala por todos os ângulos.
— Você coleciona um monte de bugigangas — disse finalmente.
— Bugigangas, não. Imagine quantos séculos de história estão guardados nesta sala. Eu não chamaria isto de bugiganga.
— Por acaso você é dono de uma loja de antiguidades?
O rosto de Alberto assumiu uma expressão de desapontamento.
— Nem todos são capazes de simplesmente se deixar levar pelo fluxo da história, Sofia. Alguns precisam parar e recolher o que foi ficando pelas margens do rio.
— Que forma estranha de se expressar!
— Mas é a verdade, minha cara. Não vivemos apenas em nosso próprio tempo. Carregamos conosco também a nossa história. Não esqueça de que tudo o que você está vendo hoje aqui já foi novinho em folha um dia. Esta pequena boneca de madeira do século XVI, por exemplo, talvez tenha sido feita para a festa de quinze anos de uma garota. E talvez tenha sido feita por seu avô já bem velho… Depois a garota virou uma adolescente, cresceu e se casou. E talvez ela própria tenha tido uma filha, que herdou esta boneca. Depois ela foi ficando velha, até que deixou de existir. É possível que ela tenha vivido uma longa vida, mas agora não existe mais. E nunca mais vai voltar. No fundo, ela apenas fez uma breve visita à Terra. Sua boneca, porém… esta sim está bem sentadinha ali na estante.
— Colocando a coisa desse jeito, tudo ganha um ar triste e solene.
— Mas a vida é triste e solene. Somos deixados num mundo maravilhoso, encontramo-nos aqui com outras pessoas, somos apresentados uns aos outros e caminhamos juntos durante algum tempo. Depois nos separamos e desaparecemos tão rápida e inexplicavelmente quanto surgimos.
(…)
Alberto foi até o sofá e sentou-se. Sofia seguiu o seu exemplo e sentou-se numa poltrona muito confortável.
— (…) Hoje vou lhe contar um pouco sobre o Renascimento.
— Pode começar.
— Apenas alguns anos depois da morte de são Tomás de Aquino, a estrutura da unidade cristã começou a apresentar rachaduras. A filosofia e a ciência continuavam a se libertar da teologia cristã, possibilitando à religião um relacionamento mais livre com a razão. Cada vez mais pensadores enfatizavam que não seria possível chegar a Deus por meio de nossa razão, pois de qualquer forma Deus seria incompreensível para o nosso pensamento. O que importava para o homem não era entender o mistério cristão, mas sujeitar-se à vontade de Deus.
— Entendo…
— O fato de a religião e a ciência estabelecerem entre si um relacionamento mais livre levou a um método científico novo e a um novo fervor religioso. Estavam assim estabelecidas as bases para duas importantes transformações ocorridas nos séculos XV e XVI: o Renascimento e a Reforma.
— Vamos ver uma transformação de cada vez.
— Por renascimento entende-se um período abrangente de apogeu cultural que se iniciou em fins do século XIV. Ele começou no Norte da Itália e depois se expandiu rapidamente rumo ao norte ao longo dos séculos XV e XVI.
— Você não disse que “renascimento” significa “nascer de novo”?
— Disse. E o que viria a nascer de novo eram a arte e a cultura da Antigüidade. Por isso falamos também do humanismo do Renascimento: depois da longa Idade Média, que via todos os aspectos da vida a partir de um prisma divino, o homem volta a ocupar o centro de tudo. A égide deste movimento era a seguinte: “De volta às fontes!”, e a principal fonte era o humanismo da Antigüidade. “Desenterrar” esculturas antigas e manuscritos da Antigüidade tornou-se quase um esporte popular. Aprender grego também virou moda, o que levou a um reestudo da cultura grega. O estudo do humanismo grego também tinha um objetivo pedagógico: o estudo de temas humanistas levava a uma “formação clássica”, capaz de elevar o homem a um nível superior de existência. Costumava-se dizer que “os cavalos nascem, ao passo que os homens se formam”.
— Quer dizer que precisamos ser educados para nos tornarmos seres humanos?
— Sim, era assim que eles pensavam naquela época. Mas antes de examinarmos mais de perto as idéias do humanismo e do Renascimento, vamos falar um pouco sobre o pano de fundo cultural e político do Renascimento.
Alberto levantou-se e começou a andar pela sala. Depois parou e apontou para um instrumento muito antigo que estava na estante.
— Você sabe o que é isto? — perguntou.
— Parece uma antiga bússola.
— Correto.
Depois apontou para uma antiga arma de fogo, que estava pendurada na parede sobre o sofá.
— E isto?
— Uma espingarda antiga.
— Muito bem. E isto?
Alberto tirou um grosso livro da estante.
— Um livro antigo.
— Para ser mais exato, um incunábulo.
— Um incunábulo?
— Na verdade, a palavra “incunábulo” significa “berço” e é o nome que se dá aos livros que foram impressos nos primórdios da arte da impressão, ou seja, antes de 1500.
— E este livro é realmente tão antigo assim?
— É sim. E justamente estes três inventos que temos aqui diante de nós – a bússola, a pólvora e a impressão de livros – foram os pressupostos mais importantes para a nova era, que chamamos de Renascimento.
— Me explique um pouco melhor.
— A bússola facilitou a navegação. Em outras palavras, ela foi um pressuposto importante para os grandes descobrimentos. O mesmo vale para a pólvora. As novas armas trouxeram a supremacia européia sobre as culturas americana e asiática. Mas também na Europa a pólvora foi de grande importância. E a impressão de livros foi importante para difundir os novos pensamentos do Renascimento humanista. Ela também contribuiu para que a Igreja perdesse o seu antigo monopólio como transmissora de conhecimentos. Mais tarde, novos instrumentos e novas invenções começaram a se suceder em ritmo cada vez mais acelerado. Um instrumento importante foi, por exemplo, o telescópio, que criou condições absolutamente novas para a astronomia.
— E por fim vieram os foguetes e as viagens espaciais tripuladas, não é?
— Agora você foi longe e rápido demais! Certo é que durante o Renascimento teve início um processo que acabaria por levar o homem à Lua. Ou então para Hiroxima e Chernobyl. Mas primeiro vem uma série de modificações no âmbito cultural e econômico. Uma premissa importante foi a transição da economia à base de troca para a economia monetária. No final da Idade Média, havia cidades de comércio intenso e de comerciantes experientes, com economia de base monetária e sistema bancário. Desta forma surgiu uma burguesia que havia conquistado certa independência com referência às necessidades vitais básicas. O que se precisava para viver comprava-se agora com dinheiro. Esta evolução incentivava a diligência, a imaginação e a criatividade de cada um. E tarefas totalmente novas foram colocadas ao indivíduo.
— Isto me lembra um pouco o surgimento das cidades gregas, dois mil anos antes.
— Pode ser. Eu contei a você como os filósofos gregos haviam se libertado da visão mítica do mundo, própria da cultura camponesa. Do mesmo modo, os cidadãos da época do Renascimento começaram a se libertar dos senhores feudais e do poder da Igreja. Ao mesmo tempo, a cultura grega foi redescoberta, graças a um contato mais estreito com os árabes na Espanha e com a cultura bizantina.
— Os três rios da Antigüidade que se unem numa só corrente.
— Você é uma aluna atenciosa. Mas vamos parando por aqui com os pressupostos do Renascimento. Vou lhe contar agora sobre o novo pensamento.
— Vamos lá. Só que eu tenho que voltar para casa para o jantar.
A NOVA VISÃO DO HOMEM
(Páginas 218-220.)
Alberto sentou-se novamente no sofá.
— O mais importante produto do Renascimento foi uma nova visão do homem. Os humanistas do Renascimento desenvolveram uma crença totalmente nova no homem e em seu valor, o que se opunha frontalmente à Idade Média, período em que se enfatizava apenas a natureza pecadora do homem. O homem passa a ser visto agora como algo infinitamente grandioso e valioso. Uma figura central do Renascimento foi Marsilio Ficino. É dele a célebre frase: “Conhece-te a ti mesmo, ó linhagem divina vestida com trajes de mortais!”. Um outro, Giovanni Pico della Mirandola, escreveu um discurso laudatório intitulado Sobre a dignidade do homem. Uma coisa dessas seria inimaginável na Idade Média. Durante toda a Idade Média, o ponto de partida sempre fora Deus. Os humanistas do Renascimento, ao contrário, têm como ponto de partida o próprio homem.
— Mas os filósofos gregos também já tinham feito isso.
— Por isso é que falamos de um “re-nascimento” do humanismo da Antigüidade. Contudo, o humanismo do Renascimento foi muito mais marcado pelo individualismo do que o humanismo da Antigüidade. Não somos apenas pessoas; somos indivíduos singulares. Este pensamento podia levar a uma adoração irrestrita do gênio. O ideal passou a ser, então, aquilo que chamamos de o homem renascentista. Entendemos por isto um homem que se ocupa de todos os aspectos da vida, da arte e da ciência. Além disso, a nova visão do homem mostrava-se também no interesse pela anatomia do corpo humano. Como na Antigüidade, começou-se a dissecar os corpos, a fim de se descobrir como era constituído o corpo humano. E isto era importante tanto para a medicina quanto para a arte. Na arte voltaram a ser comuns as representações de nus humanos. Podemos dizer que isto passou a acontecer depois de mil anos de pudor e vergonha. O homem ousava novamente ser ele mesmo. Ele não precisava mais ter vergonha de nada.
— Isto parece uma coisa inebriante — disse Sofia, debruçando-se sobre a mesinha que havia entre ela e o seu professor de filosofia.
— Sem dúvida. A nova imagem do homem levou a uma concepção de vida absolutamente nova. O homem não existia apenas para servir a Deus, mas também para ser ele próprio. Por esta razão, o homem podia desfrutar aqui e agora de sua própria vida. E se o homem podia se desenvolver livremente, ele tinha possibilidades ilimitadas. Seu objetivo era ultrapassar todas as fronteiras. Aliás, este também era um ponto de diferença em relação ao humanismo da Antigüidade. Os humanistas da Antigüidade tinham enfatizado precisamente que o homem devia apresentar tranqüilidade, temperança e autodomínio.
— Quer dizer que os humanistas do Renascimento perderam o autodomínio?
— Pelo menos eles não eram particularmente moderados, para dizer o mínimo. Para eles, era como se o mundo acabasse de ter acordado. Os homens daquela época passaram a ser muito mais conscientes de seu próprio tempo. Foi então que criaram o termo “Idade Média” para designar todos os séculos compreendidos entre a Antigüidade e o seu próprio tempo. Todos os domínios do saber começaram a experimentar um período singular de apogeu: arte e arquitetura, literatura e música, filosofia e ciência. Vou citar um exemplo concreto. Falamos sobre a Roma da Antigüidade, que ostentava orgulhosa os títulos de “cidade das cidades” e “umbigo do mundo”. No decorrer da Idade Média, a cidade entrou em declínio e em 1417 a antiga metrópole tinha apenas dezessete mil habitantes.
— Não muito mais do que Lillesand.
— O humanismo do Renascimento coloca como objetivo político-cultural a tarefa de reconstruir Roma. A principal decorrência deste objetivo foi a construção da catedral de São Pedro sobre o túmulo do apóstolo Paulo. E observando a catedral de São Pedro não podemos realmente falar de moderação ou autodomínio. Muitos dos grandes nomes do Renascimento engajaram-se neste que seria o maior projeto arquitetônico do mundo. Os trabalhos começaram em 1506 e duraram cento e vinte anos. Depois foram necessários outros cinqüenta anos para que a grande praça de São Pedro fosse terminada.
— Deve ser uma igreja enorme.
— Ela tem mais de duzentos metros de comprimento e cento e trinta metros de altura. Bem, acho que este exemplo é suficiente para ilustrar o arrojo do homem renascentista. Outro dado muito importante é que o Renascimento levou a uma nova concepção de natureza. O fato de o homem “estar de bem” com sua própria existência e o fato de a vida na Terra não ser vista apenas como preparação para a vida no céu deram origem a uma postura completamente nova diante do mundo físico. A natureza era considerada agora algo positivo. Muitos acreditavam também que Deus estava presente na sua criação. Afinal, se Ele é infinito, também é onipresente. Chamamos tal concepção de panteísmo. Os filósofos da Idade Média sempre haviam chamado a atenção para o abismo intransponível que havia entre Deus e sua criação. Agora, a natureza podia ser vista como algo divino, ou mesmo como um “desdobramento de Deus”. Esses pensamentos novos nem sempre foram bem recebidos pela Igreja. O destino de Giordano Bruno é uma prova trágica do que estou dizendo. Ele não dizia apenas que Deus estava presente na natureza. Ele também considerava o universo infinito e por isso foi severamente punido.
— De que maneira?
— Em 1600, Giordano Bruno foi queimado no mercado de flores de Roma…
— Que coisa terrível… e estúpida! É isto que você chama de humanismo?
— Não, não. Bruno era o humanista, e não o seu carrasco. Mas durante o Renascimento floresceu também aquilo que chamamos de “anti-humanismo”. Refiro-me com isto a uma Igreja e a um poder estatal autoritários. Durante o Renascimento houve também processos contra bruxos e bruxas, execuções em fogueiras, magia, superstição, sangrentas guerras religiosas e ainda a brutal conquista da América. Nenhuma época é apenas boa ou apenas ruim. O bem e o mal perpassam toda a história da humanidade como dois fios de uma meada. E freqüentemente se entrelaçam um no outro. Aliás, isto vale para o próximo conceito que vamos estudar. Vou contar a você como o Renascimento desenvolveu também um novo método científico.
O NOVO MÉTODO CIENTÍFICO
(Páginas 220-222.)
— Foi a época em que surgiram as primeiras fábricas?
— Não, ainda não. Estamos falando aqui das premissas para toda uma evolução tecnológica, que começou depois do Renascimento. Refiro-me, portanto, a um novo posicionamento do homem em relação à essência da ciência. Os frutos tecnológicos desse novo método só começaram a surgir depois.
— Como era este novo método?
— Tratava-se sobretudo de investigar a natureza por meio dos próprios sentidos. Já em inícios do século XIV mais e mais vozes advertiam contra a crença cega nas antigas autoridades. Por “antigas autoridades” entendiam-se tanto os princípios cristãos quanto a filosofia natural aristotélica. Também se contestava a convicção de que um problema só podia ser resolvido pela mera reflexão. Uma confiança exagerada na importância da razão havia imperado durante toda a Idade Média. O princípio vigente agora era o de que a investigação da natureza devia se construir fundamentalmente na observação, na experiência e nos experimentos. Chamamos este método de método empírico.
— O que isto significa?
— Significa pura e simplesmente que nosso conhecimento das coisas tem sua origem em nossas próprias experiências, e não em pergaminhos empoeirados ou em quimeras. Também na Antigüidade se praticou a ciência empírica. Foi assim que Aristóteles, por exemplo, realizou muitas observações importantes da natureza. Contudo, a novidade trazida pelo Renascimento eram os experimentos sistemáticos.
— Suponho que eles não tivessem todos os aparelhos técnicos que temos hoje.
— É claro que eles não tinham calculadoras ou balanças eletrônicas. Mas tinham a matemática, e tinham também as balanças. Passou-se a enfatizar a importância de as observações científicas serem expressas numa linguagem matemática precisa. É necessário medir o que é mensurável e tornar mensurável aquilo que não o é, dizia Galileu Galilei, um dos mais importantes cientistas do século XVII. Ele também dizia que o livro da natureza estava escrito na linguagem da matemática.
— Foi assim que os experimentos e as medições abriram caminho para as novas descobertas, não foi?
— A primeira fase foi a do estabelecimento de um novo método científico. Este método possibilitou uma revolução tecnológica. Esta revolução tecnológica, por sua vez, possibilitou novas invenções, que continuam a ser feitas desde então. Podemos dizer sem exagero que no Renascimento a humanidade começou a se libertar das condições que lhe eram impostas pela natureza. O homem deixou de ser apenas uma parte da natureza. A natureza passou a ser algo que se podia usar e explorar. “Saber é poder”, dizia o filósofo inglês Francis Bacon, sublinhando com isto a aplicação prática do conhecimento. E isto era uma coisa nova. A humanidade passou a intervir na natureza e a querer controlá-la.
— Mas isto não foi uma coisa positiva?
— Sim e não. Vamos retomar aqui os fios do bem e do mal que se entrelaçam em tudo o que o homem faz. A ruptura tecnológica iniciada no Renascimento levou aos teares e ao desemprego, aos remédios e a novas doenças, à eficiência controlada da agricultura e à exploração da natureza, a novos utensílios como máquinas de lavar e geladeiras, e também à poluição ambiental e às montanhas de lixo. O fato de assistirmos hoje à terrível degradação de nosso meio ambiente levou muitos a ver a ruptura tecnológica como um perigoso desvio das condições de vida que nos são dadas pela natureza. Para estas pessoas, o homem colocou em marcha um processo que não pode mais controlar. Outros, mais otimistas, acreditam que ainda nos encontramos na “infância” da tecnologia. A civilização tecnológica, acreditam eles, também tem suas “doenças de infância”; mas no fim os homens vão aprender a controlar a natureza, sem com isto ameaçá-la em seus pontos vitais.
— E qual é a sua opinião a respeito disso?
— A de que talvez ambos os pontos de vista tenham um pouco de razão. Em alguns campos os homens não podem mais intervir na natureza. Em outros, podemos fazê-lo sem medo. De qualquer forma, uma coisa é certa: não há caminhos que nos levem de volta à Idade Média. Desde o Renascimento, o homem deixou de ser apenas uma parte da criação. O próprio homem intervém na natureza da forma como entende que deve. E isto nos mostra o quanto ele é uma criatura surpreendente.
A NOVA VISÃO DE MUNDO
(Páginas 222-231.)
— Já estivemos na Lua. Alguém da Idade Média teria considerado isto possível?
— Ninguém, com toda a certeza. E isto nos leva à nova visão de mundo vigente no Renascimento. Durante toda a Idade Média, as pessoas tinham o céu sobre suas cabeças e precisavam olhar para cima para ver o Sol, a Lua, as estrelas e os planetas. Mas ninguém duvidava de que a Terra fosse o centro do universo. Nenhuma das observações realizadas naquela época lançava qualquer dúvida sobre o fato de que a Terra estava parada e os “corpos celestes” se movimentavam em torno dela. Chamamos esta noção de visão geocêntrica do mundo. Ela era corroborada pela noção cristã de que Deus estava sentado em seu trono acima de todos os corpos celestes.
— Se fosse assim tão fácil…
— Em 1543, porém, surgiu uma obra intitulada Das revoluções dos mundos celestes. Ela tinha sido escrita pelo astrônomo polonês Copérnico, que morreu no mesmo dia em que sua obra pioneira foi publicada. Copérnico dizia que não era o Sol que girava em torno da Terra, mas a Terra que girava em torno do Sol. Pelo menos era isto o que, a seu ver, indicavam as observações sobre os corpos celestes feitas até então. E o fato de as pessoas terem acreditado que o Sol girava em torno da Terra se explicava, segundo ele, pelo fato de que a Terra também girava em torno do seu próprio eixo. Copérnico chamou a atenção, portanto, para o fato de podermos compreender com muito mais facilidade todas as observações dos corpos celestes se tomarmos como pressuposto o fato de que a Terra e os outros planetas descrevem órbitas circulares em torno do Sol. Chamamos isto de visão heliocêntrica do mundo, ou seja, tudo gira em torno do Sol.
— E isto não está certo?
— Não. Copérnico não tinha nenhuma prova dos movimentos circulares, a não ser a antiga concepção de que os corpos celestes eram esferas que descreviam trajetórias circulares, simplesmente porque eram “celestiais”. Desde os tempos de Platão, as esferas e os círculos eram considerados as figuras geométricas perfeitas. Em inícios do século XVII, o astrônomo alemão Johannes Kepler apresentou os resultados de exaustivas observações, que provavam que os planetas se moviam em trajetórias elípticas, ou ovais, em torno de um foco, o Sol. Ele também comprovou que os planetas se movimentam tanto mais rapidamente quanto maior é a sua proximidade do Sol. Por fim, provou ainda que um planeta se movimenta tanto mais lentamente quanto maior é a distância que o separa do Sol. Somente com os estudos de Kepler ficou claro que a Terra é um planeta como todos os outros. Kepler afirmou também que essas mesmas leis físicas valem para todo o universo.
— Como ele podia ter tanta certeza?
— Ele podia ter tanta certeza porque tinha pesquisado os movimentos dos planetas com os seus próprios sentidos, ao invés de se fiar cegamente em tradições que remontavam à Antigüidade. Mais ou menos na mesma época em que viveu Kepler, viveu também o famoso cientista italiano Galileu Galilei. Com a ajuda de um telescópio, Galileu Galilei observou os corpos celestes, estudou as crateras da Lua e constatou que, como na Terra, também lá havia montanhas e vales. Galileu também descobriu que o planeta Júpiter tem quatro luas. A Terra não era, portanto, o único planeta que tinha uma lua. O mais importante, porém, é que Galileu descobriu a chamada lei da inércia.
— E o que diz esta lei?
— “Todo corpo permanece no estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta enquanto não é obrigado a alterar este estado pela ação de forças que atuam de fora.” Esta formulação, porém, não foi feita por Galileu, mas por Isaac Newton, muitos anos mais tarde.
— Se é você que diz…
— Desde a Antigüidade, um dos mais importantes argumentos contra o fato de o mundo girar em torno de seu próprio eixo era o de que, se isto fosse verdade, a Terra teria de se movimentar tão rapidamente que uma pedra atirada para cima, em linha reta, cairia no chão a muitos metros do ponto em que tinha sido atirada.
— E por que isto não ocorre?
— Se você está sentada dentro de um trem e deixa cair sua maçã, ela não vai cair atrás de você só porque o trem está se movimentando. Ela cai bem perto de você, provavelmente a seus pés. E isto por causa da lei da inércia. A maçã mantém a mesma velocidade que tinha antes de você deixá-la cair.
— Acho que entendo.
— Só que na época de Galileu não havia trens. Contudo, se você vai rolando uma pequena esfera no chão e de repente a solta…
— …ela continua a rolar…
— …porque a velocidade é mantida, mesmo depois de você ter soltado a esfera.
— Só que no fim ela acaba parando, se o lugar em que você estiver for grande o suficiente.
— Isto se explica pela ação de outras forças, que freiam a velocidade. Primeiro o solo, sobretudo se ele for de madeira rústica. Mas também a força da gravidade acaba parando a esfera mais cedo ou mais tarde. Espere um pouco, vou lhe mostrar uma coisa.
Alberto Knox levantou-se e foi até a antiga escrivaninha. Tirou alguma coisa de uma gaveta e a colocou sobre a mesa de canto do sofá. Era uma espécie de prancha de madeira, com alguns milímetros de espessura numa ponta e bem fininha na outra. Ao lado da prancha de madeira, que cobriu quase toda a mesinha, Alberto colocou uma bola de gude.
— Isto aqui se chama “plano inclinado” — disse. — O que você acha que vai acontecer se eu largar a bolinha de gude deste lado mais grosso?
Sofia suspirou.
— Aposto dez coroas como ela vai rolar pela mesinha e depois vai cair no chão.
— Veremos.
Alberto soltou a bolinha e ela se comportou exatamente como Sofia havia previsto: rolou sobre a mesa, passou voando pela borda, fez um ruído ao encontrar o chão e foi parar na soleira da porta.
— Impressionante — disse Sofia.
— Não é mesmo? Era este o tipo de experimento que Galileu fazia, entende?
— Ele era assim tão tolo?
— Calma, calma. Ele queria analisar tudo com seus próprios sentidos, e nós estamos apenas no começo do experimento. Diga-me primeiro por que a bola de gude rola pelo plano inclinado.
— Ela começa a rolar porque é pesada.
— Certo, mas o que é o peso?
— Agora você está me fazendo umas perguntas realmente estúpidas.
— Não são perguntas estúpidas, se você não consegue responder. Por que a bolinha rola para o chão?
— Por causa da gravidade.
— Exatamente, ou por força da gravitação, conforme também costumamos dizer. O peso, portanto, tem algo a ver com a gravidade. E esta força colocou a bolinha em movimento.
Alberto já tinha apanhado a bolinha do chão. Segurando-a, debruçou-se sobre o plano inclinado.
— Agora vou tentar rolar a bolinha de modo a fazê-la atravessar o plano inclinado no sentido da largura. Veja bem como ela se comporta.
Ele se curvou e fez pontaria. Depois empurrou a bolinha como tinha explicado antes. Sofia observou que a bolinha fez uma curva e novamente desceu pelo plano inclinado.
— O que aconteceu agora? — perguntou Alberto?
— Ela rolou de viés porque estava sobre o plano inclinado.
— Agora vou passar um pouco de nanquim nela… e então talvez possamos ver melhor o que você quis dizer com este “rolou de viés”.
Ele pegou um tinteiro e pintou a bolinha de preto. Depois a soltou novamente sobre o plano inclinado. Sofia pôde ver exatamente a trajetória da bolinha sobre o plano inclinado, pois ela deixou um rastro de tinta.
— Como você descreveria o movimento desta bolinha de gude? — perguntou Alberto.
— Como um arco… aliás, o desenho se parece com a parte de um círculo.
— Exatamente!
Alberto olhou para ela e ergueu as sobrancelhas.
— Se bem que não se trata exatamente de um círculo. Esta curva se chama parábola.
— Por mim, tudo bem…
— Mas por que a bolinha de gude se movimenta exatamente assim?
Sofia pensou bem até responder:
— Ela é atraída para o chão pela gravidade, porque a prancha de madeira possui uma inclinação.
— Certo! Ora, ora, vejam só: convido uma garota para vir até o meu sótão e depois de apenas uma experiência ela já chega às mesmas conclusões de Galileu.
Alberto bateu palmas e, por um instante, Sofia teve medo de que ele tivesse perdido parte do juízo. Alberto, então, prosseguiu:
— Você viu o que acontece quando duas forças atuam simultaneamente sobre o mesmo objeto. Galileu descobriu que o mesmo vale, por exemplo, para uma bala de canhão. A bala é lançada ao ar, continua voando por algum tempo, mas acaba sendo atraída para o chão. E quando isto acontece, a bala descreve uma trajetória que corresponde àquela de nossa bolinha de gude no plano inclinado. Para a época de Galileu Galilei esta era uma descoberta realmente nova. Aristóteles acreditava que um projétil lançado ao ar descreveria a princípio um pequeno arco e depois cairia verticalmente no chão. Isto não estava certo, mas só ficou claro que Aristóteles tinha se enganado quando se conseguiu demonstrar que ele se enganara.
— Tudo bem. Mas será que tudo isto é realmente importante?
— Se é importante? Isto é de uma importância cósmica, minha cara. De todas as descobertas científicas da história da humanidade, esta é uma das mais importantes.
— Aposto como você vai me explicar por quê.
— Mais tarde apareceu o físico inglês Isaac Newton, que viveu de 1642 a 1727. Devemos a ele a descrição definitiva do sistema solar e dos movimentos dos planetas. Ele não apenas conseguiu descrever como os planetas se movimentam ao redor do Sol como também explicar exatamente por que o seu movimento é como é. E ele conseguiu isto por várias razões, inclusive pela referência a Galileu e à sua lei da inércia, à qual Newton deu uma formulação final.
— Os planetas são bolinhas de gude sobre um plano inclinado?
— Mais ou menos. Tenha um pouco mais de paciência, Sofia.
— Não tenho outra escolha mesmo…
— Kepler já havia chamado a atenção para o fato de que tinha de haver uma força que provocava a atração entre os planetas. Do Sol tinha que partir uma força que mantinha os planetas em suas órbitas. Tal força explicaria também por que os planetas se movimentam mais rapidamente nas proximidades do Sol e mais lentamente quanto é maior a distância que os separa dele. Além disso, Kepler também achava que as marés, quer dizer, a subida e a descida do nível do mar, estavam relacionadas a uma força exercida pela Lua.
— E isto está certo.
— Sim, está certo. Mas Galileu rejeitava essas idéias. Ele zombava de Kepler e de sua idéia fixa, como ele mesmo dizia, de que “a Lua governa as águas”. Galileu rejeitava a suposição de que tais forças pudessem agir a grande distância; ele duvidava que elas atuassem, portanto, entre os planetas.
— E neste ponto ele estava errado.
— Sim, neste ponto ele estava errado; o que é estranho, pois ele vinha estudando intensamente a força da gravidade da Terra e a queda dos corpos. Além disso, Galileu mostrou como várias forças podem controlar os movimentos de um corpo.
— Mas você não estava falando de Newton?
— Sim, depois veio Newton, que formulou a chamada lei da atração universal. Segundo esta lei, todo objeto atrai outro objeto com uma força que cresce proporcionalmente ao aumento do tamanho dos objetos e diminui proporcionalmente ao aumento da distância que separa os objetos.
— Acho que entendo. Entre dois elefantes, por exemplo, existe uma atração maior do que entre dois ratos. E entre dois elefantes no mesmo zoológico existe uma força de atração maior do que entre um elefante indiano que está na Índia e um elefante africano que está na África.
— Pronto. Você entendeu tudo. E agora vem o mais importante. Newton afirmou que esta atração, ou gravitação, é universal. Isto significa que ela vale para o universo inteiro, inclusive para o espaço entre os corpos celestes. Diz-se que ele chegou a esta conclusão certa vez quando estava sentado debaixo de uma macieira e viu uma maça cair da árvore. Newton se perguntou se a Lua também não seria atraída para a Terra pela mesma força, e se por isso a Lua não ficaria orbitando ao redor da Terra para sempre.
— Muito inteligente da parte dele. Se bem que nem tão inteligente assim.
— Por quê, Sofia?
— Se a Lua fosse atraída para a Terra pela mesma força que fez cair a maçã, então a Lua acabaria caindo na Terra em vez de ficar rodopiando em volta dela como um gato em torno de um prato de mingau quente.
— Bem, agora estamos próximos da lei dos movimentos dos planetas, de Newton. O que você disse acerca da atração da Terra sobre a Lua está certo e errado. Por que a Lua não cai na Terra, Sofia? A pergunta se justifica, pois a atração que a Terra exerce sobre a Lua de fato é enorme. Imagine como devem ser poderosas as forças capazes de elevar em um ou dois metros o nível do mar.
— Não… não estou entendendo.
— Pense no plano inclinado de Galileu. O que aconteceu quando empurrei a bolinha de gude no sentido da largura do plano inclinado?
— Quer dizer que são duas forças diferentes que atuam sobre a Lua?
— Exatamente. Quando o sistema solar surgiu, a Lua foi impelida com toda a força para fora de sua trajetória, o que também significa dizer para longe da Terra. Esta força continuará a atuar por toda a eternidade, pois a Lua se movimenta num vácuo em que não há qualquer resistência…
— Ao mesmo tempo, porém, ela é atraída pela gravidade da Terra.
— Exatamente. Ambas as forças são constantes e ambas atuam simultaneamente. Por isso a Lua continuará a girar em torno da Terra.
— É tudo tão simples assim?
— Sim, e esta “simplicidade” era exatamente o que Newton considerava o mais importante. Newton demonstrou também que algumas poucas leis físicas, como a lei da inércia, por exemplo, valiam para o universo inteiro. E para explicar o movimento dos planetas ele tinha usado apenas duas leis da natureza que já haviam sido mostradas por Galileu, a da inércia e aquela que vimos no plano inclinado: um corpo sobre o qual atuam simultaneamente duas forças descreve uma trajetória elíptica.
— E com isto Newton conseguiu explicar por que todos os planetas giram em torno do Sol.
— Isso mesmo. Todos os planetas descrevem órbitas elípticas ao redor do Sol e o fazem por causa de dois movimentos diferentes: em primeiro lugar, o movimento em linha reta que eles tomaram quando da criação do sistema solar e, em segundo, um movimento em direção ao Sol, devido à gravitação.
— Muito inteligente.
— Sim, muito inteligente. Newton mostrou que as mesmas leis válidas para os movimentos dos corpos também eram válidas para todo o universo. Com isto ele afastou do caminho antigas idéias medievais segundo as quais as leis “do céu” eram diferentes das da Terra. A visão heliocêntrica do mundo encontrou, assim, sua confirmação e uma explicação definitiva.
Alberto levantou-se e colocou o plano inclinado de volta na escrivaninha. Abaixou-se, pegou do chão a bolinha de gude e a colocou na mesinha de centro entre ele e Sofia. Sofia quase não conseguia acreditar o quanto tinha aprendido com uma simples bolinha de gude e um pedaço de madeira mais grosso de um lado. Quando viu a bolinha de vidro verde, que continuava um pouco manchada pelo nanquim, pensou no globo terrestre e disse:
— E as pessoas tiveram de se acostumar com a idéia de viver num planeta como outro qualquer no meio de um enorme universo?
— Sim, e em certo aspecto esta nova visão de mundo era um fardo duro de carregar. Podemos compará-lo à situação vivida pelas pessoas quando Darwin mostrou que o homem tinha evoluído a partir dos animais. Em ambos os casos, o homem perdeu um pouco da sua posição especial na criação. E em ambos os casos a Igreja opôs uma tremenda resistência.
— Dá para entender muito bem. Afinal, onde fica Deus nessa história toda? De alguma forma tudo era muito mais fácil quando a Terra estava no centro de tudo e Deus e todos os corpos celestes moravam no andar de cima.
— Mas este não foi o maior desafio. Quando Newton mostrou que as mesmas leis físicas valiam para o universo inteiro, qualquer um poderia interpretar isto como a perda da crença na onipotência de Deus. Mas a fé do próprio Newton não foi abalada. Ele considerava as leis da natureza provas da existência de um grande e poderoso Deus. Já o mesmo não se pode dizer da imagem que o homem fazia de si mesmo.
— Como assim?
— Desde o Renascimento as pessoas tiveram que se habituar à idéia de que viviam num planeta como outro qualquer, no meio de um universo enorme. Aliás, não estou bem certo se de lá para cá nós mesmos nos acostumamos com esta idéia. Mas, já na época do Renascimento, alguns diziam que o homem nunca estivera tão perto do centro como então.
— Não estou entendendo.
— Até então, a Terra tinha sido o centro do mundo. Mas quando os astrônomos explicaram que não existe um centro absoluto em todo o universo, surgiram tantos centros quantas são as pessoas.
— Entendo…
A NOVA VISÃO DE DEUS
(Páginas 231-232.)
— O Renascimento também trouxe consigo uma nova visão de Deus. Quando a filosofia e a ciência se separaram da teologia, começou a surgir paulatinamente uma nova forma de devoção, uma nova religiosidade cristã. Então veio o Renascimento com sua nova visão do homem. E isto também foi importante para a prática religiosa. Mais importante do que a relação da Igreja enquanto instituição era a relação pessoal de cada um para com Deus.
— Por exemplo, a oração pessoal feita à noite, antes de dormir?
— Sim, isto também. Na Igreja católica da Idade Média, a liturgia latina e suas orações rituais haviam sido a verdadeira espinha dorsal do serviço religioso. Somente padres e monges liam a Bíblia, pois ela só existia em latim. Contudo, durante o Renascimento, a Bíblia foi traduzida do aramaico e do grego para as línguas nacionais. E isto foi importante para a chamada Reforma…
— Martinho Lutero…
— Sim, Lutero foi muito importante, mas ele não foi o único reformador. Houve também reformadores da Igreja que, não obstante, queriam continuar atuando dentro da Igreja católica romana. Um deles foi Erasmo de Roterdã.
— Lutero rompeu com a Igreja porque não queria pagar indulgências?
— Isso também, mas se tratava de algo muito mais importante. Para Lutero, o homem não precisava tomar o atalho da Igreja ou de seus sacerdotes para conseguir o perdão de Deus. Muito menos o perdão de Deus dependia de uma soma paga à Igreja em troca de indulgência. O chamado “comércio da indulgência” foi proibido em meados do século XVI até mesmo dentro da Igreja católica.
— Uma coisa que, na certa, agradou muito a Deus.
— Lutero afastou-se dos muitos usos e princípios de fé religiosa que a Igreja desenvolvera durante a Idade Média. Ele queria voltar às origens do cristianismo, tal como lemos no Novo Testamento. “Somente as Escrituras”, dizia ele. Com esta palavra de ordem, Lutero pretendia “voltar às fontes” do cristianismo, assim como os humanistas do Renascimento queriam voltar às fontes da arte e da cultura da Antigüidade. Ele traduziu a Bíblia para o alemão, criando com isto as bases para a língua padrão alemã escrita. Cada um deveria ter acesso à leitura da Bíblia, a fim de poder ser o pastor de si mesmo, por assim dizer.
— Pastor de si mesmo? Isto não era ir longe demais?
— Lutero achava que os padres de forma alguma desfrutavam de uma relação mais privilegiada com Deus. Por motivos práticos, as comunidades luteranas empregavam padres que conduziam o serviço religioso e realizavam as tarefas cotidianas da Igreja. Mas Lutero dizia que o homem não obtinha o perdão de Deus e a libertação de seus pecados por meio dos rituais da Igreja. Para ele, a redenção era concedida ao homem de forma “inteiramente grátis”, através unicamente da fé. E ele chegara a isto com as leituras da Bíblia.
— Quer dizer que Lutero foi um típico homem do Renascimento?
— Sim e não. Um traço típico do Renascimento era a importância que ele dava ao indivíduo e à sua relação pessoal com Deus. Aos trinta e cinco anos, Lutero aprendeu grego e se lançou à exaustiva tarefa de traduzir a Bíblia para o alemão. O fato de a língua nacional substituir o latim também foi uma característica típica do Renascimento. Mas Lutero não foi um humanista como Ficino ou como Leonardo da Vinci. Alguns humanistas, como Erasmo de Roterdã, criticaram-no por sua visão demasiado negativa do homem. É que Lutero afirmava que, depois do pecado original, a humanidade estava totalmente aniquilada. Só por meio da graça de Deus é que o homem “se justificava”, dizia ele. Pois o pagamento pelos pecados é a morte.
— Isto soa um tanto triste mesmo.
— Alberto Knox levantou-se. Pegou da mesinha a bola de gude verde e preta e colocou-a no bolso da jaqueta.
— Já são mais de quatro horas! — exclamou Sofia.
— E a próxima grande época da história da humanidade é o Barroco. Mas isto nós vamos deixar para amanhã (…).
CAPÍTULO 17 (EXCERTO)
O BARROCO
(Páginas 243-251.)
(…)
Sofia olhou para Alberto. Só então percebeu que ele estava usando outra fantasia.
A primeira coisa que chamou sua atenção foi uma peruca longa, toda cacheada. Depois viu que ele usava uma roupa larga, de corte abaulado, e toda rendada. Em volta do pescoço havia um lenço de seda bem espalhafatoso e de trás do pescoço saía ainda uma capa vermelha. Nas pernas Alberto usava meias brancas e, nos pés, finos sapatos de verniz com laços. Todo aquele traje lembrava a Sofia os quadros que retratavam a corte de Luís XIV.
(…)
— Vamos nos sentar na sala, minha querida aluna. Que horas são?
— Quatro.
— Hoje vamos falar sobre o século XVII.
Os dois foram, então, até a sala que tinha o teto inclinado e a clarabóia. Sofia percebeu que Alberto trocara a posição de alguns objetos desde a última vez que ela estivera ali.
Sobre a mesa havia uma caixa antiga com uma verdadeira coleção de diferentes lentes de óculos. Ao lado da caixa havia um livro aberto. Um livro muito antigo.
— O que é isto? — perguntou ela.
— Esta é a primeira edição do Discurso do método, de René Descartes. O livro é de 1637 e é uma das minhas peças preferidas.
— E esta caixinha…
— …ela contém uma coleção exclusiva de lentes, ou vidros ópticos. Eles foram polidos em meados do século XVII pelo filósofo holandês Spinoza. Essas lentes me custaram uma pequena fortuna, mas também estão entre os meus objetos preferidos.
— Eu poderia entender melhor o valor do livro e da caixa de lentes se soubesse alguma coisa sobre Descartes e Spinoza.
— É claro. Primeiro, porém, vamos tentar entender um pouco melhor o tempo em que eles viveram. Sente-se.
— Os dois se sentaram como da última vez: Sofia numa poltrona muito confortável e Alberto Knox no sofá. Entre eles havia a mesinha, sobre a qual estavam o livro e a caixa com as lentes. Quando se sentaram, Alberto tirou a peruca e a colocou sobre a escrivaninha.
— Vamos falar sobre o século XVII, ou seja, sobre a época que costumamos chamar de período barroco.
— “Barroco” não é um nome esquisito?
— A designação “barroco” tem sua origem numa palavra que na verdade significa “pérola irregular”. Típicas para a arte do Barroco foram as formas opulentas, cheias de contrastes, bem ao contrário das formas mais despojadas e mais harmônicas da arte do Renascimento. O século XVII foi particularmente marcado pela tensão entre opostos irreconciliáveis. De um lado, continuava a existir a visão de mundo do Renascimento, otimista e de exaltação da vida; de outro, o extremo oposto desta visão também encontrava muitos adeptos, que preferiam abraçar uma vida de reclusão religiosa e negação do mundo. Tanto na arte quanto na própria vida, encontramos uma verdadeira opulência de formas expressivas. Ao mesmo tempo, observamos nos mosteiros o surgimento de movimentos cujo objetivo era o isolamento do mundo.
— Castelos imponentes e mosteiros escondidos, portanto.
— Sem dúvida você pode expressar a coisa dessa forma. Uma palavra de ordem do Barroco era o dito latino Carpe diem, que significa “Aproveita o dia de hoje!”. Outro dito latino bastante em voga foi Memento mori, que significa “Lembra-te, homem, que morrerás um dia!”. Na pintura, um mesmo quadro podia mostrar a opulência da vida levada à larga, enquanto num dos cantos inferiores aparecia retratada uma caveira. Em muitos aspectos, o Barroco foi marcado pela vaidade e pela irracionalidade. Mas também havia muitos que se preocupavam com o reverso da medalha, isto é, com a transitoriedade de todas as coisas, com o fato de que tudo o que hoje é belo ao nosso redor vai morrer e apodrecer um dia.
— E é verdade. Acho triste o pensamento de que nada dura para sempre.
— Então você pensa exatamente como o homem do século XVII. Também do ponto de vista político, o Barroco foi uma época de contrastes. De um lado, a Europa foi devastada por guerras. A pior delas foi a Guerra dos Trinta Anos, que devastou quase toda a Europa entre 1618 e 1648. Na verdade, esta guerra se constituiu de muitas guerras menores, sendo que a Alemanha foi o país que mais sofreu suas conseqüências danosas. Também em decorrência da Guerra dos Trinta Anos, a França foi se tornando pouco a pouco a potência dominante na Europa.
— E qual foi o motivo dessa guerra?
— Tratava-se basicamente de uma luta entre protestantes e católicos. Mas também havia a briga pelo poder político.
— Mais ou menos como no Líbano.
— Além disso, o século XVII foi marcado por enormes diferenças de classes. Você certamente já ouviu falar da aristocracia francesa e da corte de Versalhes. Não estou bem certo, porém, se você também já ouviu falar da miséria do povo daquela época. Sim, porque toda exibição de ostentação é também uma exibição de poder. Costuma-se dizer que a situação política do Barroco pode ser comparada com a arte e a arquitetura daquela época. As obras arquitetônicas do Barroco eram sobrecarregadas de ornamentos que ocultavam as linhas da estrutura. Um correlato disso na política seriam os assassinatos, as intrigas e as conspirações.
— Não teve um rei sueco que foi assassinado num teatro naquela época?
— Você está pensando em Gustavo III, e este é um bom exemplo para o que eu estou falando. O assassinato de Gustavo III aconteceu no ano de 1792, em condições verdadeiramente “barrocas”. Ele foi assassinado num grande baile de máscaras.
— E acho que foi num teatro.
— O baile de máscaras aconteceu na Ópera e podemos dizer que o assassinato de Gustavo III pôs um fim ao Barroco na Suécia. O reinado de Gustavo III foi marcado pelo que chamamos de despotismo esclarecido, mais ou menos como tinha sido o reinado de Luís XIV, quase um século antes. Além disso, Gustavo III era um homem extremamente vaidoso, que apreciava muito todas as cerimônias e cortesias francesas. E note que ele também adorava o teatro…
— E foi o teatro que selou o seu destino.
— Sim. Aliás, o teatro foi mais do que apenas uma forma de arte do Barroco. Ele também foi o símbolo por excelência de seu tempo.
— E o que ele simbolizava?
— A vida, Sofia. Não sei quantas vezes se disse no século XVII que “A vida é um teatro”. Foram muitas vezes. E foi precisamente durante o Barroco que surgiu o teatro moderno, com toda a sua parafernália de cenários e maquinaria. O teatro criava em cena uma ilusão, para depois desmascará-la na própria peça encenada. Assim, o teatro refletia a própria vida, mostrava que a altivez precede a decadência e representava a mesquinhez humana de forma impiedosa.
— William Shakespeare também viveu no Barroco?
— Sim. Shakespeare escreveu suas grandes peças por volta de 1600, o que o coloca com um pé no Renascimento e outro no Barroco. Mas já em Shakespeare encontramos muitas citações que reforçam esta idéia de que a vida é um teatro. Você quer ouvir algumas?
— Quero sim.
— Na peça Como gostais, ele diz:
O mundo é um palco, e homens e mulheres, não mais que meros atores. Entram e saem de cena e durante a sua vida não fazem mais do que desempenhar alguns papéis.
E em Macbeth lemos:
A vida é uma sombra errante;
Um pobre comediante, que se pavoneia
No breve instante que lhe reserva a cena,
Para depois não ser mais ouvido.
É um conto de fadas, que nada significa,
Narrado por um idiota, cheio de voz e fúria.
— Isto é muito pessimista.
— É que Shakespeare estava preocupado com a brevidade da vida. Talvez você já tenha ouvido a mais célebre citação de Shakespeare…
— Ser ou não ser, eis a questão.
— Sim, foi Hamlet quem disse isso. Hoje estamos por aqui e amanhã poderemos não estar.
— Obrigada pela explicação, mas a mensagem foi clara.
— E quando não comparavam a vida com um teatro, os poetas do Barroco a comparavam com um sonho. Assim, por exemplo, Shakespeare disse: “Somos feitos da mesma matéria que compõe os sonhos, e nossa breve vida está envolta em sono…”.
— Que poético…
— O poeta dramático espanhol Calderón de la Barca, que nasceu por volta de 1600, escreveu uma peça de teatro intitulada A vida é sonho. Nela ele diz: “O que é a vida? Fúria! O que é a vida? Espuma oca! Um poema, uma sombra quase! E a sorte não pode dar senão pouco: pois a vida é sonho e os sonhos, sonho…”.
— Talvez ele tenha razão. Na escola a gente leu a peça Jeppe vom Berge.
— De Ludvig Holberg. Sim, um autor da transição entre o Barroco e o Iluminismo muito importante aqui no Norte.
— Jeppe adormece na vala de uma estrada… e acorda na cama de um barão. Quando acorda, acha que sonhou que um dia foi um pobre e grosseiro camponês. Depois, é carregado de volta para a vala enquanto dorme. Desta vez, quando acorda, acha que sonhou que esteve deitado na cama de um barão.
— Holberg buscou inspiração em Calderón de la Barca, que, por sua vez, foi buscar inspiração para sua peça nos contos árabes das Mil e uma noites. Mas a comparação da vida com um sonho é um tema cujas raízes remontam a um passado longínquo e se estendem até a Índia e a China. O antigo sábio chinês Chuang-Tsu (350 a.C., aproximadamente) sonhou certa vez que era uma borboleta. Quando acordou, Chuang-Tsu se perguntou se era um homem que tinha sonhado que era uma borboleta ou era uma borboleta que agora estava sonhando que era um homem.
— Nesse caso fica difícil provar qual das opções está correta.
— Na Noruega tivemos um genuíno poeta barroco chamado Petter Dass, que viveu de 1647 a 1707. De um lado, ele queria retratar a vida aqui e agora; de outro, dizia que só Deus era eterno e constante.
— Deus é Deus, fosse erma toda a Terra, Deus é Deus, estivessem mortos todos os homens…
— No mesmo coral, porém, ele também fala da cultura do Norte da Noruega e faz referência ao salmão, ao badejo e ao bacalhau, entre outras coisas. Um recurso típico do Barroco. Num mesmo texto fala-se de coisas terrenas, quer dizer, “do lado de cá”, e de coisas celestiais, ou seja, “do lado de lá”. Tudo isto nos faz lembrar da divisão que Platão estabeleceu entre o mundo dos sentidos, concreto, e o mundo das idéias, imutável.
— E a filosofia?
— Também ela foi marcada por lutas acirradas entre modos de pensar contraditórios. Como já vimos, alguns filósofos consideravam a existência algo de natureza fundamentalmente anímica ou espiritual. Chamamos este ponto de vista de idealismo. O ponto de vista oposto se chama materialismo e designa uma filosofia que explica todos os fenômenos da existência a partir de grandezas concretas, materiais. No século XVII, o materialismo também teve muitos defensores. O de maior influência talvez tenha sido o filósofo inglês Thomas Hobbes. Ele dizia que todos os fenômenos – o que inclui homens e animais, portanto – se compunham exclusivamente de partículas materiais. Até mesmo a consciência, ou a alma, humana teria sua origem no movimento de minúsculas partículas cerebrais.
— Então ele achava a mesma coisa que Demócrito, que viveu dois mil anos antes dele.
— Idealismo e materialismo são duas constantes que atravessam toda a história da filosofia. Só que raríssimas vezes esses dois pontos de vista apareceram de forma tão flagrante num mesmo período quanto no Barroco. O materialismo foi amplamente nutrido pela nova ciência natural. Newton havia chamado a atenção para o fato de as mesmas leis do movimento valerem para todo o universo. Além disso, ele atribuiu à lei da gravidade e do movimento dos corpos todas as transformações da natureza, tanto na Terra quanto no espaço. Tudo seria determinado, portanto, pelas mesmas e imutáveis leis, ou seja, pela mesma mecânica. Em princípio, portanto, podemos calcular cada transformação da natureza com precisão matemática. Com isto, Newton colocou a última pedra no alicerce da chamada visão mecanicista do mundo.
— Ele imaginava o mundo como sendo uma grande máquina?
— Exatamente. A palavra “mecanismo” vem do grego méchané, que significa máquina. Contudo, é bom notar que nem Hobbes, nem Newton viam uma contradição entre a visão mecânica do mundo e a crença em Deus. O mesmo não se pode dizer de todos os materialistas dos séculos XVIII e XIX. Em meados do século XVII, aproximadamente, o médico e filósofo francês Lamettrie escreveu um livro intitulado L’homme plus que machine, que significa “O homem: máquina perfeita”. Ele escreveu que assim como as pernas possuem músculos para andar, também o cérebro possuiria “músculos” para pensar. Mais tarde, o matemático francês Laplace levou ao extremo a acepção mecânica com o seguinte pensamento: se uma inteligência pudesse saber a posição de todas as partículas de matéria em dado momento, todas as nossas dúvidas se dissipariam e o futuro e o passado se descortinariam diante de nossos olhos. A idéia por trás disso é a de que tudo o que vai acontecer “já está escrito”. Esta visão de mundo é chamada de determinista.
— Quer dizer que o homem não possui livre-arbítrio?
— Não. Tudo isto é produto de processos mecânicos, inclusive nossos pensamentos e sonhos. No século XIX, materialistas alemães afirmavam que os pensamentos estavam para o cérebro assim como a urina estava para os rins e a bílis para o fígado.
— Mas urina e bílis são duas coisas concretas. Os pensamentos não.
— Observação importante. Vou lhe contar uma história que expressa a mesma coisa. Certa vez, um cosmonauta e um neurologista russos discutiam sobre religião. O neurologista era cristão, e o cosmonauta não. “Já estive várias vezes no espaço”, gabou-se o cosmonauta, “e nunca vi nem Deus, nem anjos”. “E eu já operei muitos cérebros inteligentes”, respondeu o neurologista, “e também nunca achei um único pensamento”.
— O que não significa que os pensamentos não existam.
— Exatamente. A anedota apenas mostra que os pensamentos são algo completamente diferente de tudo o que se possa amputar ou dividir em partes menores. Por exemplo, não é nada fácil eliminar cirurgicamente uma delusão. De certa forma, ela é profunda demais para ser removida dessa forma. Um importante filósofo do século XVII, Leibniz, disse que a grande diferença entre tudo o que é feito de matéria e tudo o que é feito de espírito está no fato de que o material pode ser decomposto em unidades cada vez menores, ao passo que a alma não pode ser cortada em pedaços.
— É verdade… que tipo de faca a gente usaria para isto?
Alberto se limitou a fazer um gesto com a cabeça. Então apontou para a mesinha que estava entre eles e disse:
— Os dois filósofos mais importantes do século XVII foram Descartes e Spinoza. Também eles dedicaram sua reflexão a questões tais como a relação entre alma e corpo. Vamos ver um pouco mais em detalhe esses dois filósofos.
— Vamos lá. Mas se não terminarmos até as sete horas, preciso ligar para a minha mãe.
CAPÍTULO 18 (EXCERTO)
DESCARTES
(Páginas 252-262.)
Alberto levantou-se, tirou a capa vermelha, colocou-a sobre uma cadeira e acomodou-se novamente no sofá.
— René Descartes nasceu em 1596 e durante toda a sua vida viajou muito pela Europa. Ainda jovem, ele manifestou o desejo fervoroso de conhecer a natureza do homem e do universo. Mas, depois de estudar filosofia, conscientizou-se sobretudo de sua própria ignorância.
— Mais ou menos como Sócrates?
— Mais ou menos. Também como Sócrates, ele estava convencido de que a razão era o único meio de se chegar a um conhecimento seguro. Não devemos confiar no que lemos em livros antigos e não podemos confiar sequer no que os nossos sentidos nos dizem.
— Platão também achava a mesma coisa. Ele dizia que só por meio da razão podíamos chegar a um conhecimento seguro.
— Exatamente. De Sócrates e Platão parte uma linha direta até Descartes, passando por santo Agostinho. Todos eles eram racionalistas convictos. Para eles, a razão era a única fonte segura de conhecimento. Depois de muito estudar, Descartes chegou à conclusão de que não podia confiar muito no conhecimento herdado da Idade Média. Nesse sentido, talvez possamos compará-lo a Sócrates, que não confiava nas idéias amplamente difundidas em sua época pelas ruas de Atenas. O que fazer num caso desses, Sofia? Você pode me dizer?
— A gente tem de começar a criar a sua própria filosofia.
— Exatamente. Descartes decidiu percorrer toda a Europa, assim como Sócrates, em sua época, passou a vida conversando com as pessoas em Atenas. O próprio Descartes conta que seu objetivo passou a ser a procura por um conhecimento que ele podia encontrar dentro de si mesmo ou “no grande livro do mundo”. Por esta razão, entrou para o exército e, assim, pôde prestar seus serviços em diferentes pontos da Europa central. Mais tarde, passou alguns anos em Paris. Em maio de 1629, viajou para a Holanda, onde viveu por quase vinte anos enquanto trabalhava em seus escritos filosóficos. Em 1649, a rainha Cristina convidou-o para ir à Suécia. Mas a estadia em Estocolmo lhe trouxe uma pneumonia, que o acabou matando no inverno de 1650.
— Então ele só tinha cinqüenta e quatro anos quando morreu!
— Sim. Só que mesmo depois de sua morte ele continuou a ser uma figura de grande importância para a filosofia. Sem exagero, podemos dizer que Descartes foi o fundador da filosofia dos novos tempos. Após a inebriante redescoberta do homem e da natureza no Renascimento, a necessidade de se reunirem os pensamentos contemporâneos num único e coerente sistema filosófico voltou a se apresentar. O primeiro grande construtor desse sistema foi Descartes, e a ele seguiram-se Spinoza e Leibniz, Locke e Berkeley, Hume e Kant.
— O que você entende por “sistema filosófico”?
— Por sistema filosófico entendo uma filosofia de base, cujo objetivo é encontrar respostas para todas as questões filosóficas importantes. A Antigüidade teve grandes construtores de sistemas como Platão e Aristóteles. A Idade Média teve são Tomás de Aquino, que se dedicou à tarefa de construir uma ponte entre a filosofia de Aristóteles e a teologia cristã. Depois veio o Renascimento, com uma verdadeira confusão de pensamentos novos e velhos sobre a natureza e a ciência, sobre Deus e o homem. Somente no século XVII é que a filosofia tentou reacomodar os novos pensamentos num sistema filosófico. O primeiro a fazer esta tentativa foi Descartes. Ele deu o pontapé inicial naquilo que se tornaria o mais importante projeto filosófico para as gerações seguintes. A primeira coisa com a qual ele se preocupou foi com aquilo que já sabemos, isto é, com a questão de saber se nossos conhecimentos eram realmente seguros. A segunda questão que mais lhe ocupou a atenção foi a relação entre o corpo e a alma. Essas duas problemáticas viriam ocupar a discussão filosófica dos próximos cento e cinqüenta anos.
— Então ele foi um homem à frente de seu tempo.
— Sim, se bem que essas questões já pairavam no ar, por assim dizer, na época em que ele viveu. No que se refere à questão de como podemos obter um conhecimento seguro, muitos expressavam o seu total ceticismo filosófico. Para estes céticos, o homem simplesmente tinha de se habituar com a idéia de não saber nada. Mas Descartes não se conformava com isto. Aliás, se tivesse se conformado, não teria sido um filósofo de verdade. Novamente podemos traçar aqui um paralelo com Sócrates, que nunca se deu por satisfeito com o ceticismo dos sofistas. Precisamente na época em que Descartes viveu, a nova ciência natural tinha desenvolvido um método que, a seu ver, levava a uma descrição exata e muito confiável dos processos da natureza. Descartes perguntou-se, então, se não haveria um método igualmente exato e seguro para a reflexão filosófica.
— Entendo.
— Mas este era apenas um problema. A nova física também tinha colocado a questão da natureza da matéria, isto é, a questão de saber o que determina os processos físicos na natureza. Mais e mais pessoas defendiam uma compreensão materialista da natureza. E quanto mais mecanicista era a compreensão do mundo físico, mais urgente se tornava a questão da relação entre corpo e alma. Até o século XVII, a alma tinha sido descrita, de modo geral, como uma espécie de “espírito vital”, presente em todos os seres vivos. Aliás, o sentido original de “alma” e “espírito” também era o de um “sopro de vida”. Isto vale para quase todas as línguas indo-européias. Aristóteles considerava a alma algo que existe em todo o organismo como “princípio vital” desse organismo, sendo impossível, portanto, concebê-la fora do corpo. Assim, ele podia falar de uma “alma vegetal” e de uma “alma animal”. Somente no século XVII é que os filósofos introduziram uma separação radical entre corpo e alma. E isto porque todos os objetos físicos, inclusive o corpo do homem e do animal, eram explicados como um processo mecânico. Mas a alma humana não poderia fazer parte desta “maquinaria do corpo”, poderia? E o que era ela, então? Para completar, faltava explicar como algo “espiritual” era capaz de colocar em marcha um processo mecânico.
— De fato, este é um pensamento muito estranho.
— O que você quer dizer?
— Se decido erguer o meu braço, o meu braço se ergue. Se decido correr até o ônibus, no momento seguinte minhas pernas parecem ter se multiplicado por dez. Às vezes penso em algo triste, e logo me vêm as lágrimas. Tem de haver, portanto, alguma relação misteriosa entre o corpo e a consciência.
— Exatamente este problema é que levou Descartes a refletir. Como Platão, ele estava convencido de que havia uma divisão rígida entre espírito e matéria. Mas Platão não foi capaz de responder como o espírito, ou a alma, influenciava o corpo.
— Eu também não, e por isso estou curiosa para saber o que Descartes descobriu.
— Vamos acompanhar suas próprias reflexões.
Alberto apontou para o livro que estava entre eles sobre a mesinha e prosseguiu:
— Neste pequeno livro, Discurso do método, Descartes levanta a questão de saber que método filosófico um filósofo deve usar para resolver um problema filosófico. A ciência natural já tinha desenvolvido seu novo método…
— Você já disse isso.
— Primeiro, Descartes explica que não devemos considerar nada verdadeiro, enquanto nós mesmos não tivermos reconhecido claramente que se trata de algo verdadeiro. Para conseguirmos isto, temos de decompor um problema complicado em tantas partes isoladas quanto possível. E então podemos começar pelos pensamentos mais simples. Podemos dizer que cada pensamento deve ser “pesado e medido”, mais ou menos como Galileu queria medir tudo e transformar em mensurável o que fosse incomensurável. Descartes acreditava que o filósofo, para construir um novo conhecimento, devia partir dos aspectos mais simples para chegar aos mais complicados. Por fim, ele deveria testar através de cálculos e mais cálculos se nada tinha sido deixado de fora. Só assim, acreditava Descartes, se poderia chegar a conclusões filosóficas.
— Isto me soa como uma tarefa matemática.
— Sim. Descartes queria aplicar o “método matemático” à reflexão filosófica. Ele queria provar as verdades filosóficas mais ou menos como se prova um princípio da matemática, empregando para tanto a mesma ferramenta que usamos no trabalho com números: a razão. A razão é a única coisa capaz de nos levar a um conhecimento seguro, pois nada nos garante que nossos sentidos são confiáveis. Já mencionamos o parentesco entre Descartes e Platão. Pois bem: Platão também afirmara que a matemática e as relações numéricas nos levam a um conhecimento mais seguro do que aquilo que nos dizem os nossos sentidos.
— Mas é possível responder desse jeito a perguntas filosóficas?
— Vamos voltar ao raciocínio do próprio Descartes. Seu objetivo é, portanto, chegar a um conhecimento seguro sobre a natureza da vida e a primeira coisa que ele afirma é que nosso ponto de partida deve ser duvidar de tudo. Isto porque, como vimos, ele não queria construir seu sistema filosófico sobre solo arenoso.
— Sim, pois na areia o alicerce cede e toda a casa pode cair.
— Obrigado pela observação, Sofia. Bem, Descartes não achava certo duvidar de tudo, mas achava que em princípio podíamos duvidar de tudo. Afinal, o fato de lermos Aristóteles ou Platão não significa necessariamente um avanço em nossa busca filosófica. Talvez a leitura desses dois filósofos nos ajude a ampliar nosso conhecimento da história, mas não necessariamente do mundo. Com o perdão do trocadilho, Descartes achava importante descartar primeiro todo o conhecimento constituído antes dele, para só então começar a trabalhar em seu projeto filosófico.
— Ele queria limpar o terreno dos velhos materiais, antes de começar a construir a nova casa, não é?
— Sim, e para ter certeza de que o novo edifício de idéias se sustentaria, ele só queria empregar materiais novos e sólidos. Mas as dúvidas de Descartes iam mais fundo ainda. Ele achava que não podíamos confiar nem mesmo no que nos diziam os nossos sentidos. Afinal, podia muito bem ser que eles nos enganassem o tempo todo.
— Como isto pode ser possível?
— Mesmo quando sonhamos, acreditamos viver algo de real. E existe alguma coisa que marque a diferença entre as sensações que experimentamos no sonho das que vivemos quando estamos acordados? “Quando penso com cuidado no assunto, não encontro uma única característica capaz de marcar a diferença entre o estado acordado e o sonho”, escreve Descartes. E prossegue: “Tanto eles se parecem, que fico completamente perplexo e não sei se estou sonhando neste momento”.
— Jeppe vom Berge também acreditava ter sonhado que dormira na cama de um barão.
— E quando estava na cama do barão achava que sua vida como pobre camponês não passava de um sonho. É por isso que Descartes acaba duvidando de tudo. Antes dele, muitos outros filósofos tinham chegado ao fim de suas observações filosóficas exatamente neste ponto.
— O que significa que eles não foram muito longe.
— Descartes, porém, estabeleceu este ponto como o marco zero para a sua reflexão. Ele chegou à conclusão de que a única coisa sobre a qual podia ter certeza era a de que duvidava de tudo. E foi então que compreendeu o seguinte: se havia um fato de que ele podia ter certeza, este fato era o de que ele duvidava de tudo. Se ele duvidava, isto significava que ele pensava. E se ele pensava, isto significava que ele era um ser pensante. Ou, como ele mesmo dizia: “Cogito, ergo sum”.
— E o que significa isto?
— Penso, logo existo.
— Não me surpreende nada que ele tenha chegado a esta conclusão.
— Pode ser. Mas note bem com que certeza intuitiva ele de repente se percebe como um ser pensante. Talvez você ainda se lembre de que Platão considerava mais real a existência daquilo que percebemos com nossa razão do que daquilo que percebemos com nossos sentidos. Para Descartes era a mesma coisa. Ele não apenas entende que é um Eu pensante, mas entende, ao mesmo tempo, que este Eu pensante é mais real do que o mundo físico que percebemos através de nossos sentidos. E a partir daí ele vai mais adiante, Sofia. Descartes está longe de concluir sua pesquisa filosófica.
— Então vamos continuar…
— Descartes pergunta-se, então, se esta mesma certeza intuitiva pode levá-lo a saber mais do que o fato de que é um ser pensante. Ele reconhece que também possui uma clara e nítida idéia do que seja um ser perfeito. Trata-se de uma idéia que ele sempre teve e para Descartes é evidente que tal noção não poderia vir dele próprio. Descartes afirmava que a noção do que fosse um ser perfeito não poderia brotar espontaneamente de um ser imperfeito. Assim, a noção de um ser perfeito tinha de vir, naturalmente, de outro ser perfeito. Em outras palavras: tinha de vir de Deus. Para Descartes, portanto, a existência de Deus é algo tão evidente quanto o fato de que alguém que pensa é um ser, um Eu pensante.
— Acho que agora ele está sendo um pouco precipitado ao tirar suas conclusões. Ele que, no começo, tinha sido tão cuidadoso!
— É verdade. Muitos chegaram mesmo a apontar isto como sendo justamente o ponto mais fraco de Descartes. Mas você disse “conclusões”. Na verdade, não se trata aqui se provar coisa alguma. Descartes está dizendo apenas que todos nós temos uma idéia do que seja um ser perfeito e que nesta própria idéia está embutido o fato de que este ser perfeito deve existir. Pois um ser perfeito não seria perfeito se não existisse. Além disso, não teríamos uma idéia do que seja um ser perfeito se tal ser não existisse. Isto porque somos imperfeitos e, por isso, a idéia de perfeição não pode brotar de nós mesmos assim, espontaneamente. A idéia de um Deus é, segundo Descartes, uma idéia inata, que nos é “plantada”, por assim dizer, no momento em que nascemos, “como a marca que o artista coloca em sua obra”, conforme ele mesmo escreve.
— Mas mesmo que eu tenha uma idéia do que possa ser um crocofante, isto não significa que existam crocofantes.
— Descartes teria dito que a existência de um crocofante não é inerente ao conceito “crocofante”, ao passo que a existência de um ser “perfeito” é inerente ao conceito de “ser perfeito”. Para Descartes, isto é tão certo quanto é inerente à própria idéia de um círculo o fato de todos os pontos deste círculo estarem à mesma distância de seu centro. Você não pode estar falando de um círculo, portanto, se a figura sobre a qual você fala não atender a esta premissa. Da mesma forma, você não pode falar de um ser perfeito se a ele falta a mais importante de todas as características: a existência.
— Mas esta é uma forma muito especial de pensar.
— Esta é uma forma de pensar marcadamente “racionalista”. Como Sócrates e Platão, Descartes via uma relação entre o pensamento e a existência. Quanto mais evidente uma coisa é para o pensamento, tanto mais certo é o fato de ela existir.
— Bem, até agora ele reconheceu que é um ser pensante e que existe um ser perfeito.
— E a partir daí ele prossegue. Todas as noções que temos da realidade exterior, como o Sol e a Lua, por exemplo, poderiam não passar de imagens oníricas. Mas a realidade exterior também possui características que podemos conhecer por meio de nossa razão. Por exemplo, as relações matemáticas, ou seja, o que pode ser medido: comprimento, largura e profundidade. Essas propriedades quantitativas são tão evidentes para a razão quanto o fato de que sou um ser pensante. Já as propriedades qualitativas, tais como cor, odor e sabor, estão relacionadas aos nossos sentidos e não descrevem, na verdade, uma realidade exterior.
— Quer dizer que a natureza não passa de um sonho?
— Não, e neste ponto Descartes retoma nossa idéia de um ser perfeito. Quando nossa razão reconhece alguma coisa com clareza e nitidez, isto significa que a coisa reconhecida corresponde exatamente à forma como nossa razão a percebeu. Pois um Deus perfeito não iria querer nos pregar peças. Descartes invoca a “garantia de Deus” para o fato de que tudo aquilo que reconhecemos por meio de nossa razão corresponde a uma realidade.
— Muito bem. Então ele já chegou à conclusão de que é um ser pensante, de que Deus existe e de que também existe uma realidade exterior.
— Só que entre a realidade exterior e a realidade dos pensamentos existe uma diferença fundamental. Descartes pode, então, tomar como ponto de partida o fato de que existem duas formas distintas de realidade, ou duas substâncias. A primeira substância é o pensamento, ou a alma, a outra é a extensão, ou a matéria. A alma é consciência pura, não ocupa lugar no espaço e, portanto, não pode ser decomposta em unidades menores. A matéria, ao contrário, é só extensão, ocupa lugar no espaço e pode por isso ser decomposta em partes menores, mas não possui consciência. Descartes diz que ambas as substâncias provêm de Deus, pois só Deus existe independentemente de qualquer outra coisa. Mas ainda que pensamento e extensão provenham de Deus, trata-se de duas substâncias completamente independentes uma da outra. O pensamento é livre na sua relação com a matéria, e vice-versa: os processos materiais também operam de forma totalmente independente.
— E assim a criação de Deus foi dividida por dois.
— Exatamente. Chamamos Descartes de dualista, o que significa que ele estabelece uma nítida linha divisória entre a realidade material e a espiritual. Por exemplo, só o homem tem uma alma. Os animais pertencem completamente à realidade material. Sua vida e seus movimentos são absolutamente mecânicos. Descartes considerava os animais uma espécie de máquinas complicadas. Também no que se refere à realidade material, portanto, sua noção de realidade era absolutamente mecanicista. Exatamente como os materialistas.
— Duvido muito que Hermes não passe de uma máquina ou de uma espécie de robô. Certamente Descartes não gostou nunca de um animal. E nós? Também nós somos autômatos?
— Sim e não. Descartes chegou à conclusão de que o homem é um ser dual, que tanto pensa quanto ocupa lugar no espaço. O homem possui, portanto, uma alma e um corpo físico. Santo Agostinho e são Tomás de Aquino já haviam formulado algo parecido. Eles acreditavam que o homem possuía um corpo, como os animais, mas também um espírito, como os anjos. Descartes considerava o corpo humano o resultado de uma mecânica arrojada. Tecnologia de ponta, como diríamos hoje. Mas o homem possui também uma alma capaz de operar independentemente de seu corpo. Os processos do corpo não possuem tal liberdade, pois obedecem às suas próprias leis. Mas aquilo que percebemos com nossa razão não acontece no corpo, e sim na alma, na mente, independentemente da realidade material. Talvez eu deva acrescentar ainda que Descartes não excluía a idéia de que os animais pudessem pensar. Só que, se é verdade que eles possuem esta faculdade, então vale para eles a mesma divisão entre pensamento e extensão.
— Já conversamos sobre isso. Quando decido correr até o ônibus, toda a “máquina” se põe em movimento. E se apesar disso perco o ônibus, começo a chorar.
— Nem mesmo Descartes podia contestar o fato de que quase sempre ocorre uma interação entre alma e corpo. Para ele, enquanto a alma habita o corpo ela está ligada a ele por um órgão muito especial, uma glândula localizada no cérebro, dentro da qual ocorre esta constante interação entre espírito e matéria. Assim, para Descartes, a alma era constantemente perturbada por sentimentos e sensações que tinham a ver com as necessidades do corpo. Mas o objetivo deve ser entregar à alma o controle de tudo, pois, independentemente de serem fortes minhas dores de barriga, a soma dos ângulos de um triângulo será sempre de 180º. Desta forma, o pensamento pode se elevar para além das necessidades do corpo e se comportar “racionalmente”. Deste ponto de vista, a alma é totalmente independente do corpo. Nossas pernas podem envelhecer e se tornar fracas, nossas costas podem se curvar e nossos dentes começar a cair, mas a soma de dois mais dois será sempre quatro, enquanto em nós restar um lampejo de razão. Pois a razão não envelhece nem se debilita. Nosso corpo, ao contrário, sim. Para Descartes, a alma é a própria razão. Os afetos e sensações menos elevados, tais como desejo e ódio, estão intimamente ligados às funções do corpo e, portanto, a uma realidade material.
— Não consigo aceitar com facilidade o fato de Descartes comparar o corpo com uma máquina ou com um autômato.
— O motivo desta comparação é o fato de que na época de Descartes as pessoas estavam totalmente fascinadas pelas máquinas e pelas engrenagens dos relógios, que pareciam funcionar sozinhos. A palavra “autômato” designa exatamente alguma coisa que se movimenta por si mesma. Só que é claro que o fato de elas funcionarem por si mesmas não passava de uma ilusão. Um relógio astronômico, por exemplo, é construído e recebe corda das mãos do homem. Descartes dizia que tais aparelhos artificiais eram constituídos simplesmente por algumas poucas peças, se comparados com a quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias e veias de que se compõe o corpo de homens e animais. Por que, então, Deus não seria capaz de construir o corpo de homens e animais com base em leis mecânicas?
— Hoje em dias muitas pessoas falam da “inteligência artificial”.
— Sim, elas estão pensando nos autômatos de nossa época. Construímos máquinas que às vezes realmente nos convencem de sua inteligência. Tais máquinas certamente teriam colocado em pânico o nosso Descartes. Talvez ele tivesse se perguntado se a razão humana seria realmente tão livre e independente quanto ele pensava. Pois há filósofos que consideram a vida da alma humana tão pouco livre quanto os processos do corpo. É claro que a alma de uma pessoa é infinitamente mais complicada do que qualquer programa de computador, mas há os que acham que em princípio somos tão dependentes quanto tais programas.
CAPÍTULO 19 (EXCERTO)
SPINOZA
(Páginas 266-274.)
Ficaram um bom tempo sentados, sem dizer nada. Por fim, para desviar os pensamentos de Alberto para outro assunto, Sofia disse:
— Descartes deve ter sido um homem singular. Ele ficou famoso em sua época?
Alberto respirou fundo umas duas vezes antes de responder:
— Aos poucos ele foi se tornando uma pessoa de grande influência. Mas o mais importante talvez tenha sido a sua influência sobre outro grande filósofo. Estou me referindo ao filósofo holandês Baruch Spinoza, que viveu de 1632 a 1677.
— Você não quer me falar sobre ele?
— Era esta a minha intenção. (…)
— Sou toda ouvidos.
— Spinoza pertencia à comunidade judaica de Amsterdã, mas não levou muito tempo até que fosse excomungado por heresia. Poucos filósofos dos tempos modernos foram tão humilhados e perseguidos por suas idéias como este homem. Ele chegou até a sofrer uma tentativa de assassinato. E tudo porque Spinoza criticava a religião oficial. Ele achava que os dogmas rígidos e os rituais vazios eram as únicas coisas que ainda mantinham o cristianismo e o judaísmo vivos. Spinoza foi o primeiro a aplicar o que chamamos de interpretação “histórico-crítica” da Bíblia.
— Explique melhor.
— Spinoza contestava o fato de que cada palavra da Bíblia fosse inspirada por Deus. Ele dizia que quando lemos a Bíblia temos de ter em mente a época em que ela foi escrita. Esta leitura “crítica” nos permite reconhecer uma série de contradições entre os diferentes livros e evangelhos. Sob a superfície do texto do Novo Testamento encontramos Jesus, que poderíamos chamar de porta-voz de Deus. Pois bem, os próprios ensinamentos de Jesus já significavam uma libertação da rigidez do judaísmo. Jesus anunciou uma “religião da razão”, para a qual o amor era o princípio maior. Nesse sentido, Spinoza está pensando tanto no amor a Deus quanto no amor aos nossos semelhantes. Só que o cristianismo também acabou se enrijecendo, e rapidamente, em dogmas empedernidos e em rituais vazios.
— Posso muito bem imaginar o quanto era difícil para as igrejas e as sinagogas engolir essas críticas.
— À medida que a coisa foi piorando, Spinoza foi abandonado até por seus próprios familiares, que queriam deserdá-lo por causa de sua heresia. O paradoxo maior nisso tudo era o fato de que poucos haviam defendido a liberdade de opinião e a tolerância religiosa de forma tão enérgica quanto o próprio Spinoza. As muitas resistências que ele teve de vencer levaram-no finalmente a se recolher a uma vida discreta, modesta, totalmente dedicada à filosofia. Ele ganhava o seu pão polindo lentes ópticas. Algumas delas, como eu já disse, vieram parar em meu poder.
— Impressionante…
— O fato de ele viver de polir lentes ópticas tem um significado quase simbólico. É que a tarefa dos filósofos é justamente ajudar as pessoas a verem sua vida sob uma nova perspectiva. E fundamental para a filosofia de Spinoza é o desejo de enxergar as coisas da “perspectiva da eternidade”.
— Do ponto de vista da eternidade?
— Sim, Sofia. Você acha que conseguiria ver a sua própria vida inserida num contexto cósmico? Para tanto você precisaria enxergar-se a si mesma, e à sua própria vida, de olhos fechados…
— Hum… não é nada fácil.
— Pense que você é apenas uma minúscula parte de toda a vida da natureza. Pense que você está inserida num emaranhado de relações extremamente grande e complexo.
— Acho que entendo o que você quer dizer.
— Será que você também conseguiria sentir o que estou querendo dizer? Você é capaz de perceber a natureza toda de uma só vez, o universo inteiro, num só piscar de olhos?
— Depende. Talvez eu precise de algumas lentes ópticas.
— E eu não estou pensando aqui apenas no universo infinito. Estou pensando também num tempo infinito. Há três mil anos viveu um menino na Renânia. Ele era apenas uma ínfima parte de toda a natureza, uma pequenina onda num mar infinitamente grande. Muito bem, Sofia, você também é uma ínfima parte da natureza e entre você e este menino não há diferença alguma.
— Só que eu ainda estou viva.
— Sim, mas é exatamente por isso que você precisa saber enxergar de olhos fechados. O que será de você daqui a três mil anos?
— Dizer isto era considerado heresia?
— Bem… Spinoza não disse apenas que tudo o que existe é a natureza. Ele também via Deus em tudo o que existe e tudo o que existe em Deus.
— Quer dizer que ele era panteísta.
— Correto. Para Spinoza, Deus não é alguém que criou o mundo um dia e desde então é uma entidade à parte de sua criação. Não. Deus é o mundo. Às vezes Spinoza se expressa de uma forma um pouco diferente e diz que o mundo é em Deus. Aqui ele faz referência ao discurso do apóstolo Paulo no Areópago: “porque nele vivemos, nos movemos e existimos”, disse Paulo. Mas vamos acompanhar o raciocínio do próprio Spinoza. Sua obra mais importante se chama A ética fundamentada pelo método geométrico.
— Ética… e método geométrico?
— Isto talvez soe um pouco estranho aos nossos ouvidos. Os filósofos entendem por ética a doutrina de como devemos viver para vivermos uma boa vida. É neste sentido que falamos, por exemplo, da ética de Sócrates ou de Aristóteles. Só em nossa época é que a ética foi reduzida, de certo modo, a algumas regras, a partir das quais podemos viver sem pisar no pé de nossos semelhantes.
— Isto porque pensar na sua própria felicidade é visto como egoísmo?
— Mais ou menos. Quando Spinoza emprega a palavra ética, na verdade ele está se referindo tanto à arte de viver quanto à moral.
— Mesmo assim não é estranho falar da “arte de viver fundamentada pelo método geométrico”?
— O método geométrico refere-se à linguagem ou à forma de representação. Você já aprendeu que Descartes também quis empregar o método matemático à reflexão filosófica. E o que ele entendia por isto era uma reflexão filosófica construída sobre a base de conclusões rigorosamente lógicas. Spinoza está dentro da mesma tradição racionalista. Em sua ética ele pretendeu mostrar que a vida do homem é governada pelas leis da natureza. Para ele, o homem precisa se libertar de seus sentimentos e sensações, para só então poder encontrar a paz e ser feliz.
— Mas nós não somos governados apenas pelas leis da natureza, somos?
— Bem, não é muito fácil mesmo entender Spinoza. Você lembra que Descartes disse que a realidade era constituída de duas substâncias rigidamente separadas uma da outra: o pensamento e a extensão.
— Como eu poderia me esquecer disso?
— A palavra “substância” pode ser entendida como aquilo de que se compõe uma coisa, aquilo que esta coisa é em sua essência, ou então aquilo a que ela pode ser atribuída. Para ele, tudo era ou pensamento, ou extensão.
— Não precisa repetir.
— Mas Spinoza não aceitava esta divisão. Ele achava que havia uma única substância. Para ele, tudo o que é pode ser atribuído a uma mesma e única coisa. E esta “mesma e única coisa”, ele a chamava simplesmente de substância. Em outras passagens ele também a chama de “Deus” ou de “natureza”. Ao contrário de Descartes, portanto, Spinoza não tinha uma concepção dualística da realidade. Por isso ele é chamado de monista, e isto significa que ele atribuía toda a natureza e todas as relações de vida a uma mesma e única substância.
— Os dois não poderiam ter discordado mais…
— Só que a diferença entre Descartes e Spinoza não é tão grande quanto freqüentemente se costuma afirmar. Descartes também chama a atenção para o fato de somente Deus ter o poder de existir por si mesmo. Só quando Spinoza iguala Deus à natureza, ou Deus à Sua criação, é que ele se afasta consideravelmente de Descartes e também das concepções judaicas e cristãs.
— Pois neste caso a natureza é Deus. E ponto final.
— Mas quando Spinoza emprega a palavra “natureza”, ele não está pensando apenas na natureza material, física. Por substância, Deus ou natureza, ele entende tudo o que existe, inclusive o que se compõe de espírito.
— Ou seja, tanto pensamento quanto extensão.
— Exatamente. Segundo Spinoza, nós, homens, conhecemos duas das características, ou formas de manifestação, de Deus. Spinoza chama essas características de atributos de Deus e esses dois atributos são precisamente o pensamento e a extensão de Descartes. Deus, ou a natureza, manifesta-se, portanto, ou como pensamento, ou como alguma coisa que ocupa o espaço. Mas é possível que Deus possua um número infinitamente maior de outros atributos além do pensamento e da extensão. Só que de todos esses possíveis atributos o homem só conhece dois.
— Tudo bem… mas que forma complicada de se expressar!
— Sim, às vezes a gente precisa de um martelo e de um cinzel para conseguir abrir caminho pela linguagem de Spinoza. Talvez nos sirva de consolo o fato de que no fim encontramos um pensamento que é tão brilhante e transparente quanto um diamante.
— Estou ansiosa para saber qual é.
— Tudo o que existe na natureza ou é pensamento, ou então extensão. Cada um dos fenômenos com os quais nos deparamos em nossa vida cotidiana, como uma flor, por exemplo, ou um poema de Henrik Wergeland, são diferentes modi dos atributos pensamento e extensão. Por modus, plural modi, entendemos, portanto, determinada forma de manifestação da substância, ou de Deus, ou ainda da natureza. Uma flor é um modus do atributo extensão e um poema sobre esta flor é um modus do atributo pensamento. No fundo, porém, ambos são expressão para uma mesma e única coisa: substância, Deus ou natureza.
— Deus meu, que complicado!
— Ainda bem que só a linguagem é complicada em Spinoza. Sob suas formulações complicadas esconde-se um conhecimento maravilhoso, tão simples que não pode ser expresso pela linguagem coloquial.
— Apesar disso, acho que prefiro a linguagem coloquial.
— Está bem. Então vamos começar com você mesma. Quando você tem dor de estômago, o que é que tem dor de estômago?
— Você mesmo já disse: eu.
— Certo. E mais tarde, quando você pensa que um dia teve dor de estômago, o que é que pensa?
— Eu, também.
— Pois você é uma pessoa que hoje pode estar com dor de estômago e amanhã pode estar sob a influência de determinado estado de ânimo. Da mesma forma, Spinoza achava que todas as coisas físicas que nos cercam ou que acontecem à nossa volta são manifestações de Deus, ou natureza. O mesmo vale para todos os pensamentos que são pensados. Assim, todos os pensamentos que são pensados também são pensamentos de Deus, ou natureza. Pois tudo é uma coisa só. Tudo é um. Existe apenas um Deus, ou uma natureza, ou ainda uma substância.
— Mas quando penso alguma coisa, sou eu quem pensa. E quando me movimento, sou eu quem se movimenta. Por que você quer colocar Deus no meio disso?
— Sabe de uma coisa? Gosto do seu engajamento. Mas quem é você? Você é Sofia Amundsen, mas também é expressão de algo infinitamente maior. Você pode muito bem dizer que você pensa, ou que você se movimenta, mas será que você também não pode dizer que a natureza pensa os seus pensamentos e que a natureza se movimenta em você? É só uma questão de saber através de que lentes você observa tudo isto.
— Você está querendo dizer que não sou eu quem determina o que posso fazer?
— Bem, talvez você possua alguma liberdade para movimentar o polegar ao seu bel-prazer. Mas o polegar só pode se movimentar de acordo com sua própria natureza. Ele não pode saltar de sua mão e sair pulando pela sala. Da mesma forma, você também tem o seu lugar no todo, minha cara. Você é Sofia, mas também é um dedo no corpo de Deus.
— Então é Deus quem decide tudo o que eu faço?
— Ou a natureza, ou as leis da natureza. Spinoza considerava Deus, ou as leis da natureza, a causa interna de tudo o que acontece. Deus não é uma causa externa, pois Deus se manifesta através das leis da natureza e só através delas.
— Não sei se consigo ver a diferença.
— Deus não é um manipulador de fantoches, que fica puxando cordinhas e, com isto, determinando o que acontece. Um “mestre de marionetes” dirige as bonecas de fora de cena e por isso é uma “causa externa”. Mas não é assim que Deus governa o mundo. Deus governa o mundo através das leis da natureza. Desta forma, Deus – ou a natureza – é causa interna de tudo o que acontece. Isto significa que tudo na natureza acontece porque tem de ser assim. Spinoza tinha uma visão determinista da vida na natureza.
— Acho que em algum outro momento você já disse alguma coisa parecida.
— Talvez você esteja pensando nos estóicos. Também eles diziam que tudo acontece porque tem de acontecer. Por isso é que eles achavam muito importante aceitar todos os acontecimentos com uma “tranqüilidade estóica”. O homem não deve se deixar levar pelos seus sentimentos. O mesmo vale para a ética de Spinoza, que quisermos dizê-lo de forma resumida.
— Acho que entendo o que ele quer dizer. Mas não me agrada o pensamento de que não sou eu quem decide sobre mim mesma.
— Vamos dar outro salto de volta ao menino da Idade da Pedra, que viveu há três mil anos. O tempo passou e ele cresceu, atirou sua lança em animais, amou uma mulher, que se tornou a mãe de seus filhos e, pode estar certa, adorou os deuses de sua tribo. O que passa por sua cabeça quando você diz que ele mesmo decidiu todas essas coisas?
— Não sei.
— Então imagine um leão na África. Você acha que ele próprio optou por viver como animal predador? É por causa disso que ele ataca um antílope cansado? Será que em vez disso ele poderia ter optado por viver como vegetariano?
— Não, o leão vive de acordo com sua natureza.
— Ou de acordo com as leis da natureza. O mesmo acontece com você, Sofia, pois você também é natureza. Mas é claro que, amparada por Descartes, você pode argumentar que o leão é um animal e não um homem com faculdades mentais livres. Mas então pense num recém-nascido. Ele resmunga, chora, e se não lhe dão leite ele coloca o dedo na boca para mamar. Será que este bebê possui livre-arbítrio?
— Não.
— E quando esta criança, uma menina, digamos, passa a ter um livre-arbítrio? Aos dois anos esta garotinha corre por toda a parte e aponta entusiasmada para tudo o que vê. Aos três vive fazendo birra e aos quatro, de uma hora para outra, passa a ter medo de escuro. Onde está a liberdade, Sofia?
— Não sei.
— Aos quinze, diante do espelho, ela experimenta se maquiar. É este o momento em que ela passa a tomar suas próprias decisões e a fazer o que quer?
— Entendo o que você quer dizer.
— Ela é Sofia Amundsen, disto ela tem certeza. Mas ela também vive segundo as leis da natureza. O problema é que ela mesma não percebe isso, pois por trás de tudo o que faz existe um número muito grande de motivos extremamente complicados.
— Acho que não quero ouvir mais nada.
— Tudo bem, mas antes me responda a uma última pergunta: duas árvores de mesma idade crescem num enorme jardim. A primeira está num ponto do jardim em que recebe bastante sol e tem acesso abundante a um solo rico em nutrientes e água. A outra árvore cresce na sombra, sobre solo infértil. Qual das duas árvores dará mais frutos?
— Naturalmente aquela que tem as melhores condições de crescer.
— Para Spinoza esta árvore é livre. É livre no sentido de que possui plena liberdade para desenvolver todas as possibilidades que lhe são inerentes. Só que se esta árvore for uma macieira, ela não terá opção entre produzir maçãs ou ameixas. E o mesmo acontece conosco, seres humanos. As circunstâncias políticas, por exemplo, podem obstruir nossa evolução e o nosso crescimento pessoal. Uma pressão exterior é capaz de nos tolher. Só quando podemos desenvolver livremente as possibilidades que nos são inerentes é que podemos viver como pessoas livres. Apesar disso, somos governados pelo nosso potencial interno e pelas circunstâncias exteriores da mesma forma como o menino da Idade da Pedra na Renânia, o leão na África ou a macieira do jardim.
— Acho que não consigo ouvir mais nada.
— Spinoza dizia que só um único ser é “causa completa e absoluta de si mesmo” e pode agir em liberdade plena. Somente Deus ou a natureza é expressão deste processo livre e “não casual”. Um homem pode aspirar à liberdade de viver sem pressões exteriores, mas ele nunca chegará a ter “livre-arbítrio”. Nós não determinamos tudo o que acontece com o nosso próprio corpo, pois nosso corpo é um modus do atributo extensão. Tampouco “escolhemos” nossos pensamentos. Assim, o homem não possui uma mente livre, aprisionada num corpo mecânico.
— Isto é que é difícil de entender.
— Spinoza achava que as paixões humanas, a ambição e o prazer, por exemplo, nos impedem de chegar à felicidade e à harmonia verdadeiras. Mas quando reconhecemos que tudo acontece porque tem de acontecer, podemos chegar, então, a uma compreensão intuitiva da natureza como um todo. Podemos ser levados a experimentar, de forma pura e cristalina, o fato de que tudo está relacionado; o fato de que tudo é um. Nosso objetivo é abarcar, num único golpe de vista, tudo o que existe. Spinoza chamava isto de ver as coisas sub specie aeternitatis.
— E o que significa isto?
— Significa ver as coisas sob a perspectiva da eternidade. Não foi assim que começamos?
— E é assim que precisamos terminar. Preciso voltar agora mesmo para casa.
CAPÍTULO 20 (EXCERTO)
LOCKE
(Páginas 280-286.)
Alberto acomodou-se no sofá e disse:
— Da última vez em que estivemos sentados nesta sala, eu falei sobre Descartes e Spinoza. Chegamos a concordar que os dois têm um importante ponto em comum: ambos são racionalistas convictos.
— E um racionalista é alguém que acredita na importância da razão.
— Sim, o racionalista acredita na razão como fonte de conhecimento. E muitas vezes acredita também em certas idéias inatas ao homem, isto é, em idéias que já existem no homem independentemente de toda e qualquer experiência. E quanto mais clara for esta idéia, tanto mais certo é o fato de ela corresponder a um dado da realidade. Você ainda se lembra de que Descartes tinha uma clara e nítida noção do que fosse um “ser perfeito”. A partir dela ele chegou à conclusão de que Deus realmente existe.
— Não sou do tipo que se esquece facilmente das coisas.
— Este pensamento racionalista foi típico para a filosofia do século XVII. Na Idade Média ele também esteve bem representado e podemos encontrá-lo em Platão e Sócrates. No século XVIII, porém, ele passou a ser exposto a uma crítica cada vez mais severa e mais profunda. Muitos filósofos passaram a defender, então, a opinião de que nossa mente é totalmente vazia de conteúdo, enquanto não vivemos uma experiência sensorial. Esta visão é chamada de empirismo.
— E é desses empíricos que você vai falar hoje?
— Vou tentar. Os empíricos, ou filósofos da experiência, mais importantes foram Locke, Berkeley e Hume, todos ingleses. Os líderes entre os racionalistas do século XVII foram o francês Descartes, o holandês Spinoza e o alemão Leibniz. Por isso é que freqüentemente fazemos uma distinção entre o empirismo inglês e o racionalismo continental.
— Por mim, tudo bem. Só que este monte de nomes me confundiu um pouco. Será que dava para você repetir o que se entende por “empirismo”?
— Um empírico deriva todo o seu conhecimento do mundo daquilo que lhe dizem os seus sentidos. A formulação clássica de uma postura empírica vem de Aristóteles, para quem nada há na mente que já não tenha passado pelos sentidos. Esta idéia contém uma severa crítica a Platão, para quem o homem, ao vir ao mundo, trazia consigo idéias inatas do mundo das idéias. Locke repetiu as palavras de Aristóteles, mas o destinatário de sua crítica era Descartes.
— Não há nada na mente que já não tenha passado pelos sentidos?
— Nós não nascemos com idéias inatas, ou com uma visão de mundo já formada. E nada sabemos sobre o mundo em que somos colocados antes de o percebermos com nossos sentidos. Quando pensamos alguma coisa, portanto, que não somos capazes de relacionar com fatos vivenciados, este pensamento ou noção é falso. Por exemplo, quando empregamos palavras como “Deus”, “eternidade” ou “substância”, nossa razão está funcionando em ponto morto. Isto porque ninguém nunca vivenciou Deus, a eternidade ou aquilo que os filósofos chamam de “substância”. Por conseguinte, muitos estudiosos podem escrever tratados que, na verdade, não acrescentam nada de novo ao conhecimento. Uma filosofia baseada em tal reflexão, por mais refinada que seja, pode impressionar, mas no fundo não passa de mera fantasia. Os filósofos dos séculos XVII e XVIII tinham herdado muitos desses tratados. Era chegada a hora de examiná-los sob uma lupa, a fim de eliminar deles toda e qualquer noção ou idéia vazia. Talvez possamos comparar isto ao processo de lavagem do ouro. A maior parte dos resíduos não passa de areia e barro, mas de vez em quando há também uma pedrinha de ouro brilhando no meio de tudo.
— E essas pedrinhas de ouro seriam as verdadeiras experiências?
— Ou pelo menos os pensamentos que podem ser relacionados às experiências humanas. Para os empíricos britânicos, era importante examinar todas as noções humanas, a fim de verificar se elas podiam ser comprovadas com experiências reais. Mas vamos examinar um filósofo de cada vez.
— Sim, vamos lá.
— O primeiro foi o inglês John Locke, que viveu entre 1632 e 1704. Seu livro mais importante chama-se Um ensaio sobre o entendimento humano, de 1690. Nele, Locke tenta explicar duas questões. Em primeiro lugar, ele pergunta de onde os homens tiram os seus pensamentos e as suas noções. Em segundo, pergunta se podemos confiar no que nossos sentidos nos dizem.
— Um projeto e tanto…
— Vamos tomar um problema de cada vez. Locke está convencido de que todos os nossos pensamentos e todas as nossas noções nada mais são do que um reflexo daquilo que um dia já sentimos ou percebemos através de nossos sentidos. Antes de sentirmos qualquer coisa, nossa mente é como uma tábula rasa, uma “lousa vazia”.
— Isto parece evidente.
— Antes de experimentarmos qualquer coisa, portanto, nossa mente é tão vazia quanto uma lousa antes de o professor entrar na sala de aula. Locke também compara a mente com uma sala em que não há um móvel sequer. Mas então é a vez de os nossos sentidos entrarem em ação: podemos ver o mundo à nossa volta, sentir o cheiro das coisas, seu gosto, podemos tocá-las e ouvi-las. E ninguém faz isto de forma mais intensa do que as crianças. Surgem, assim, as idéias sensoriais simples. Só que a mente não recebe passivamente essas impressões exteriores. Dentro da nossa mente também acontece alguma coisa. As idéias sensoriais simples são retrabalhadas pela reflexão, pela crença e pela dúvida. E o resultado disso, segundo Locke, são as idéias da reflexão. Locke estabelece a distinção, portanto, entre “sensação” e “reflexão”. Isto porque a mente, a consciência, não é um mero receptor passivo. E é exatamente nesse ponto que precisamos ficar alertas.
— Ficar alertas?
— Locke afirma que, através dos sentidos, não conseguimos senão impressões simples. Quando como uma maçã, por exemplo, posso “sentir” a maçã inteira numa única e simples sensação. Na verdade, estou recebendo toda uma série de impressões simples: uma coisa verde, fresca, cheirosa, suculenta e de sabor levemente ácido. Só depois de já ter comido muitas maçãs é que posso pensar que estou comendo “uma maçã”. Locke diz que, neste momento, conseguimos formar a noção complexa de uma maçã. Quando éramos pequenos e comemos maçã pela primeira vez, não possuíamos essa noção complexa. Mas víamos uma coisa verde, sentíamos o gosto de uma coisa fresca e suculenta, nham, nham…, e também um pouco ácida. Aos poucos vamos “amarrando” muitas impressões sensoriais e formando conceitos como “maçã”, “pêra” e “laranja”. Mas é aos nossos órgãos de sentidos que devemos, em última análise, todo o material de que se serve o nosso conhecimento do mundo. E é por isso que é falso e precisa ser eliminado o conhecimento que não pode ser atribuído a impressões sensoriais simples.
— Seja como for, podemos ter certeza de que aquilo que vemos e ouvimos, de que sentimos o cheiro e o gosto, corresponde exatamente ao que sentimos.
— Sim e não. Esta é a segunda questão que Locke se propõe a discutir. Primeiro ele explica de onde retiramos nossas idéias e noções. Em seguida ele pergunta se o mundo é realmente do jeito que nós o percebemos. E isto não é uma coisa absolutamente evidente, Sofia. Não podemos colocar o carro na frente dos bois. Aliás, esta é a única coisa que um verdadeiro filósofo não deve fazer.
— Esqueça o que eu disse.
— Locke estabelece a diferença entre aquilo que chama de qualidades sensórias “primárias” e “secundárias”. E nesse ponto ele estende a mão aos filósofos que o precederam: por exemplo, a Descartes.
— Me explique isto!
— Por qualidades sensoriais primárias Locke entende a extensão, peso, forma, movimento e número das coisas. Com relação a essas propriedades, podemos estar certos de que nossos sentidos reproduzem as verdadeiras propriedades das coisas. Mas nós também percebemos outras características das coisas. Dizemos que uma coisa é doce ou azeda, verde ou vermelha, quente ou fria. Locke chama isto de qualidades sensoriais secundárias. Tais impressões sensoriais, como as cores, o cheiro, o gosto ou os sons, por exemplo, não reproduzem as características verdadeiras, presentes na coisa em si. Elas reproduzem apenas o efeito que essas características exteriores exercem sobre os nossos sentidos.
— Gosto não se discute.
— Exatamente. Podemos estar de acordo sobre as propriedades primárias, como tamanho e peso, por exemplo, pois elas são inerentes às coisas em si. Mas as propriedades secundárias, como cor e gosto, por exemplo, podem variar de animal para animal, de homem para homem, dependendo de como são constituídos os órgãos de sentidos de cada indivíduo.
— Quando Jorunn chupa uma laranja, ela faz a mesma cara que outras pessoas fazem quando chupam um limão. Geralmente, ela não consegue ir até o fim. “Está azeda”, costuma dizer. E na maioria das vezes eu acho a mesma laranja doce e gostosa.
— E nenhuma de vocês tem razão, porque também nenhuma de vocês está errada. Ao falar sobre suas impressões, vocês apenas estão descrevendo o efeito desta laranja sobre os seus sentidos. O mesmo ocorre com as cores. Pode ser que determinado tom de vermelho não agrade você. Se Jorunn compra um vestido exatamente desse tom, é melhor você guardar para si a sua opinião sobre ele. Não que o vestido seja feio ou bonito; é que vocês duas percebem de forma diferente este mesmo tom de vermelho.
— Mas todos concordam que uma laranja é redonda.
— Sim. Quando você segura uma laranja, não dá para dizer que ela tem a forma de um cubo, por exemplo. Você pode achá-la doce ou azeda, mas não pode “achar” que ela pesa oito quilos, se o peso dela não passa de duzentos gramas. Você pode talvez “acreditar” que ela pese muitos quilos, mas este é um caminho que não vai dar em nada. Se muitas pessoas tentam adivinhar quanto pesa um objeto, sempre haverá uma que estará mais certa que as outras. O mesmo vale para o número das coisas. Ou há 986 ervilhas numa tigela, ou não. E o mesmo vale também para o movimento: ou um carro está em movimento, ou então está parado.
— Entendo.
— No que se refere à “realidade estendida”, portanto, Locke compartilha da mesma opinião de Descartes, ou seja, que a realidade possui certas características que o homem pode captar com sua razão.
— Não é muito difícil concordar com isto.
— Também em outras áreas Locke admite o que chama de conhecimento “intuitivo” ou “demonstrativo”. Por exemplo, ele acha que certas diretrizes éticas valem para todos. Neste caso, podemos dizer que ele acredita no chamado pensamento do direito natural e que este é um traço racionalista que podemos identificar em seu pensamento. Outro traço claramente racionalista: Locke acredita que é inerente à razão humana saber que existe um Deus.
— Talvez ele tivesse razão.
— Razão em quê?
— Em que existe um Deus.
— É possível. Mas ele não deixa que esta problemática se reduza a uma questão de fé. Para ele, a idéia que o homem faz de Deus nasce da própria razão humana. E este é um traço racionalista do seu pensamento. Devo acrescentar que Locke defendia a liberdade de opinião e a tolerância. Além disso, defendia também a igualdade de direitos entre os sexos. Para ele, a posição de inferioridade das mulheres havia sido criada pelos homens. Assim sendo, ela podia ser corrigida.
— Concordo plenamente.
— Locke foi um dos primeiros filósofos dos tempos modernos a se ocupar com a questão dos papéis sexuais. Isto foi de grande importância mais tarde para John Stuart Mill, uma personalidade por sua vez muito importante para a luta pela igualdade de direitos entre os sexos. Locke expressou muito cedo pensamentos liberais que só floresceram em sua plenitude durante o Iluminismo francês do século XVIII. Por exemplo, ele foi o primeiro a propagar o princípio da divisão dos poderes…
— Isto significa que o poder do Estado é dividido em diferentes instituições.
— Você ainda se lembra que instituições são essas?
— O Legislativo, ou o Parlamento, o Judiciário, ou o Tribunal, e o Executivo, ou o próprio governo.
— Esta tripartição vem do filósofo iluminista francês Montesquieu. Locke chamou a atenção sobretudo para o fato de termos de separar o Poder Legislativo do Poder Executivo, se quisermos evitar a tirania. E ele foi contemporâneo de Luís XIV, que reunia em suas mãos todo o poder e costumava dizer “O Estado sou eu”. Dizemos que Luís XIV foi um governante “absoluto” e que “seu” Estado era mais arbitrário do que de direito. Contrariando esta idéia, Locke achava que para se assegurar um Estado de direito os representantes do povo tinham que promulgar leis que seriam depois executadas pelo rei e pelo governo.
CAPÍTULO 21 (EXCERTO)
HUME
(Páginas 287-301.)
Alberto tinha os olhos fixos na mesinha que havia entre os dois. Em dado momento, virou-se e olhou para o céu emoldurado pela janela.
— O tempo está carregado — disse Sofia.
— Sim, está muito abafado.
— Vamos falar agora sobre Berkeley?
— Ele foi o segundo dos empíricos britânicos. Mas como Berkeley é um capítulo à parte, vamos nos concentrar primeiramente em David Hume, que viveu de 1711 a 1776. Sua filosofia é considerada ainda hoje a mais importante filosofia empírica. Além disso, Hume é de fundamental importância, pois inspirou o grande filósofo Immanuel Kant na execução de seu próprio projeto filosófico.
— E o fato de eu estar muito mais interessada na filosofia de Berkeley não conta?
— Não, não conta. Hume cresceu nas proximidades de Edimburgo, na Escócia, e sua família queria muito que ele fosse um jurista. Ele próprio afirmava, porém, que sentia “uma insuperável aversão a tudo, menos à filosofia e à erudição”. Como os grandes pensadores franceses Voltaire e Rousseau, Hume viveu em pleno Iluminismo e viajou muito pela Europa, antes de voltar a se estabelecer em Edimburgo. Sua obra mais importante, Tratado sobre a natureza humana, foi publicada quando Hume tinha vinte e oito anos. Ele mesmo dizia, porém, que desde os quinze já tinhas as idéias para este livro.
— Estou vendo que preciso me apressar.
— Você já começou.
— Mas se um dia eu tiver minha própria filosofia, ela será completamente diferente de tudo o que tenho ouvido até agora.
— Você está sentindo falta de alguma coisa em especial?
— Em primeiro lugar, todos os filósofos de que ouvi falar até agora foram homens. E os homens parecem viver num mundo só deles. Eu estou mais interessada no mundo real: flores, animais e crianças, que nascem e crescem. Os seus filósofos falam sempre do homem enquanto ser humano e vira e mexe aparece um tratado sobre a natureza humana. Só que este homem, este ser humano, parece sempre ser um homem de meia-idade, e a vida começa com a gravidez e o nascimento. Acho que até agora vi poucas fraldas e ouvi muito pouco choro de nenê nesta história toda. Acho, também, que esta história tem muito pouco amor e amizade.
— Neste ponto você tem toda a razão. Mas talvez Hume seja exatamente um filósofo que pensa um pouco diferente. Mais do que qualquer outro, ele toma o mundo cotidiano como ponto de partida para a sua reflexão. Acredito até que Hume foi muito sensível ao modo como as crianças, esses novos cidadãos do mundo, experimentam a vida.
— Então vamos lá. Quero ouvir.
— Como empírico, Hume considerava sua tarefa eliminar todos os conceitos obscuros e os raciocínios intrincados criados até então por esses filósofos homens a que você se referiu. Naquela época, circulavam por escrito e oralmente toda a sorte de antigos resquícios de concepções medievais e conceitos das filosofias racionalistas do século XVII. Hume queria retornar à forma original pela qual o homem experimentava o mundo. Para ele, nenhuma filosofia que não aquela a que chegamos pela reflexão sobre o nosso cotidiano seria capaz de nos conduzir para além dessas mesmas experiências cotidianas.
— Até agora tudo isto soa muito promissor. Será que você poderia dar um exemplo?
— Na época de Hume, acreditava-se amplamente na existência dos anjos. Por anjo entendemos uma forma humana alada. Você já viu um anjo, Sofia?
— Não.
— Mas você já viu uma forma humana, não viu?
— Que pergunta boba…
— E você já viu asas?
— Claro, só que nunca numa pessoa.
— Pois bem, para Hume, o “anjo” é uma noção complexa. Ela se constitui de duas experiências diferentes, que ocorrem simultaneamente na imaginação humana, já que na realidade estão dissociadas. Em outras palavras, esta noção é falsa e como tal deve ser rejeitada. Do mesmo modo, temos de proceder a uma verdadeira limpeza em nossos pensamentos e idéias, pois, como Hume afirmou, “se tomamos um livro sobre a doutrina divina, ou sobre metafísica, devemos perguntar o seguinte: ele contém algum raciocínio abstrato sobre tamanho ou números? Não. Contém algum raciocínio sobre fatos e sobre a vida que seja baseado em experiências? Não. Atira-o, então, ao fogo, pois tudo o que ele contém não passa de fantasmagoria e ilusão”.
— Muito drástico.
— Sim, mas depois dessa limpeza toda sobra o mundo, Sofia, e muito mais vivo e de contornos mais nítidos do que antes. Hume queria retornar ao modo como a criança experimenta o mundo, antes de o espaço de sua mente ser tomado por pensamentos e reflexões. Você não disse que muitos dos filósofos sobre os quais falamos vivem num mundo só deles e que você se interessa mais pelo mundo real?
— Sim, foi mais ou menos isso.
— Pois bem, estas palavras poderiam ter sido de Hume. Mas vamos acompanhar mais de perto o seu raciocínio.
— Estou ouvindo.
— A primeira coisa que Hume constata é que o homem possui impressões, de um lado, e idéias, de outro. Por impressão ele entende a percepção imediata da realidade exterior. Por idéia ele entende a lembrança de tal impressão.
— Você pode me dar um exemplo?
— Se você queima a mão no fogão, o que você experimenta é uma impressão imediata. Mais tarde pode ser que você se lembre de que se queimou, e esta lembrança Hume a chama de idéia, noção. A diferença entre elas é que a impressão é mais forte e mais viva do que a lembrança que se tem dela mais tarde. Podemos chamar a impressão sensorial de original, e a idéia, ou a lembrança que se tem dela, de uma cópia pálida do original. Afinal, a impressão é a causa direta da idéia guardada na mente.
— Até aqui deu para acompanhar.
— Mas Hume também chama a atenção para o fato de tanto a impressão quanto a idéia poderem ser ou simples ou complexas. Você ainda se lembra do exemplo da maçã quando conversamos sobre Locke? Como tal, a experiência direta de uma maçã é uma impressão complexa. Da mesma forma, a idéia que a mente faz de uma maçã também é uma idéia complexa.
— Desculpe-me interrompê-lo, mas isto é mesmo importante?
— Se é importante? E como! Embora os filósofos tenham se ocupado de uma série de problemas aparentemente banais, você não pode recuar diante da oportunidade de participar da construção de um raciocínio. Na certa Hume teria concordado com Descartes quanto ao fato de um raciocínio ter de ser construído a começar pela sua base.
— Eu me rendo…
— Hume está preocupado com o fato de que às vezes formamos idéias e noções complexas, para as quais não há correspondentes complexos na realidade material. É dessa forma que surgem noções falsas sobre coisas que não existem na natureza. Já citamos o exemplo do anjo. E anteriormente falamos também do crocofante. Outro exemplo pode ser Pégaso, o cavalo alado. Em todos esses exemplos, temos de admitir que foi nossa mente, sozinha, que construiu essas coisas, juntando a impressão de um par de asas com a impressão de um cavalo, por exemplo. Esses dois componentes foram experimentados por nós um dia e entraram para o teatro da mente como impressões “verdadeiras”. No fundo, a mente não inventou nada. Ela só teve o trabalho de pegar tesoura e cola para construir essas noções falsas.
— Entendo. E entendo também que isto pode ser muito importante.
— Ótimo. Hume quer estudar cada noção, cada idéia, a fim de verificar se sua composição encontra um correlato na realidade. Nesse sentido, ele pergunta: de que impressões surgiu esta idéia? Em primeiríssimo lugar, ele precisa decompor uma noção complexa em suas noções simples constituintes. É assim que ele pretende chegar a um método crítico de análise das idéias do homem. E também é assim que ele pretende “fazer uma faxina” nos nossos pensamentos e idéias.
— Você teria um ou dois exemplos?
— Na época de Hume, as pessoas tinham uma noção muito clara do céu. Talvez você ainda se lembre das palavras de Descartes, segundo as quais as noções claras e distintas seriam, em si, garantia para a existência do correspondente desta idéia na realidade.
— Já disse que não sou do tipo que se esquece facilmente das coisas.
— Não é difícil ver que a noção de “céu” é uma noção extremamente complexa. Vamos citar apenas alguns elementos: no “céu” existem um “portão de pérolas”, “ruas de ouro”, “exércitos de anjos” etc. etc. E podemos ir mais além em nosso trabalho de decomposição dos elementos em seus fatores constituintes, pois também o “portão de pérolas”, as “ruas de ouro” e os “exércitos de anjos” são noções complexas. Somente quando nos damos conta de que nossa noção complexa de “céu” se compõe de noções simples tais como “portão”, “pérola”, “rua”, “ouro”, “figuras humanas vestidas de branco” e “asas” é que podemos nos perguntar se algum dia já experimentamos na realidade essas “impressões simples”.
— E na verdade já as experimentamos. Só que depois nós as combinamos para formar uma imagem onírica.
— Exatamente. Pois quando sonhamos, usamos tesoura e cola, por assim dizer. Para Hume, porém, todo o material que usamos para compor nossas imagens oníricas chegou um dia à nossa consciência por meio de impressões simples. Uma pessoa que nunca viu ouro não consegue imaginar o que seja uma rua de ouro.
— Muito inteligente da parte dele. E quanto à “noção clara de Deus”, de Descartes?
— Também para isto Hume tem uma resposta. Digamos que, para nós, Deus é uma criatura infinitamente inteligente, sábia e boa. Temos aí, portanto, uma noção complexa formada por algo infinitamente inteligente, infinitamente sábio e infinitamente bom. Se nunca tivéssemos experimentado a inteligência, a sabedoria e a bondade, não poderíamos ter tal conceito de Deus. E pode ser também que nossa imagem de Deus nos fale de um pai severo, mas justo. Quer dizer, outra noção complexa composta por “pai”, “severo” e “justo”. E assim por diante. Depois de Hume, muitos críticos da religião chamaram a atenção para o fato de tal noção de Deus ser atribuída ao modo como nós, quando crianças, “experimentamos” nosso próprio pai. Para esses críticos, a noção de um pai levou à noção de um Pai do Céu.
— Talvez isto seja verdade. Mas eu nunca aceitei que Deus fosse necessariamente um homem. E para compensar isto, minha mãe às vezes diz “pelo amor da Deusa”, ou coisa parecida.
— Portanto, Hume quer atacar todo e qualquer pensamento ou idéia que não possa ser atribuído a uma impressão sensorial correspondente. Ele costumava dizer que queria banir para bem longe esse absurdo que durante tanto tempo dominara o pensamento metafísico, acabando por condená-lo ao descrédito. Mas também na vida cotidiana empregamos conceitos complexos, sem nos perguntarmos se eles têm alguma validade. É o caso, por exemplo, da noção de um Eu, ou de um núcleo da personalidade. Foi esta a noção que serviu de base para a filosofia de Descartes. Ela foi a noção clara e nítida sobre a qual ele construiu toda a sua filosofia.
— Espero que Hume não tenha tentado negar que eu sou eu, pois nesse caso ele não passaria de um cabeça-oca.
— Sofia, se eu pudesse escolher uma única coisa para você aprender de todo este curso de filosofia, eu diria para você aprender a não tirar conclusões precipitadas.
— Continue.
— Não… você mesma pode aplicar o método de Hume para analisar o que entende por seu “eu”.
— Nesse caso preciso começar perguntando se a noção de “eu” é simples ou complexa.
— E você tem uma resposta para esta pergunta?
— Bem, tenho de admitir que me sinto extremamente complexa. Por exemplo, no que se refere ao humor, sou muito inconsistente. E também acho difícil decidir por alguma coisa. Além disso, posso gostar de uma pessoa hoje e detestá-la amanhã.
— Sua noção de “eu” é complexa, portanto.
— Certo. Em seguida tenho de perguntar se tenho uma impressão complexa correspondente a esta noção complexa de “eu”. E acho que tenho. Acho que sempre tive.
— Isso faz de você uma pessoa insegura?
— Não sei. É que estou mudando o tempo todo. Por exemplo, não sou hoje a mesma Sofia de quatro anos atrás. Meu humor e a forma como eu mesma me vejo modificam-se de um minuto para outro. É como se de repente eu passasse a ser outra pessoa, completamente diferente.
— Quer dizer que é falsa a sensação de que nossa personalidade possui um núcleo constante. Nossa noção de eu compõe-se, na verdade, de uma longa cadeia de impressões isoladas, que nunca conseguimos vivenciar simultaneamente. Hume fala de um “feixe de diferentes conteúdos de consciência, que se sucedem numa rapidez inimaginável e que estão em constante fluxo e movimento”. Nossa mente seria, então, “uma espécie de teatro”, no qual estes diferentes conteúdos “se sucedem em suas entradas e saídas de cena, e se misturam numa infinidade desordenada de posições e de tipos”. Para Hume, portanto, o homem não possui uma “base” de personalidade, atrás ou abaixo da qual se desenrola a cena de que são atores as percepções e as sensações. É como as imagens numa tela de cinema: elas se alternam tão rapidamente que não vemos que o filme de compõe de imagens isoladas. Na verdade, essas imagens não estão conectadas. O filme é uma soma de instantes.
— Acho que desisto.
— Isto significa que você desiste da idéia de que sua personalidade tem um núcleo constante, imutável?
— Acho que sim.
— E um minuto atrás você tinha uma opinião completamente diferente! Bem, resta acrescentar que a análise de Hume da consciência humana e a sua recusa em aceitar um núcleo constante e imutável para a personalidade já tinham sido defendidas dois mil e quinhentos anos antes, do outro lado do mundo.
— Por quem?
— Por Buda. É muito intrigante como os dois se expressam de forma parecida. Buda considerava a vida humana uma sucessão ininterrupta de processos físicos e mentais, que modificavam as pessoas a cada momento. O bebê de colo não é a mesma pessoa em idade adulta; hoje não sou o mesmo de ontem. Buda pregava que não posso dizer que alguma coisa me pertença, assim como não posso dizer que este sou eu. Não há, portanto, um eu, e a personalidade não possui um núcleo rígido, imutável.
— Sim, a semelhança com Hume é surpreendente.
— Como conseqüência direta da noção de um eu imutável, muitos racionalistas consideravam evidente o fato de o homem possuir uma alma imortal.
— Mas isto também é uma noção falsa?
— Pelo menos é o que dizem Hume e Buda. Você sabe o que dizem que Buda teria dito a seus seguidores pouco antes de morrer?
— Não. Como posso saber?
— “Todas as coisas complexas estão condenadas à decadência.” Hume poderia ter dito a mesma coisa. Ou mesmo Demócrito. Seja como for, sabemos que Hume rejeitou toda e qualquer tentativa de provar a imortalidade da alma ou a existência de Deus. Isto não significa que ele considerava impossíveis ambas as coisas; significa apenas que considerava um absurdo racionalista achar que seria possível provar a fé religiosa com a razão humana. Hume não era cristão; também não era um ateu convicto. Ele era o que chamamos de agnóstico.
— E o que significa isto?
— Um agnóstico é uma pessoa que não sabe se Deus existe. Em seu leito de morte, Hume recebeu a visita de um amigo que lhe perguntou se ele acreditava numa vida após a morte. Contam que Hume respondeu que também era possível um pedaço de carvão ser atirado ao fogo e não se queimar.
— Entendo…
— Foi a resposta típica de um homem que não abria mão da sua imparcialidade. Ele só aceitava como verdade aquilo que podia experimentar pelos sentidos, mas todas as demais possibilidades continuavam em aberto. Hume não rejeitava nem a fé em Jesus Cristo, nem a crença em milagres. Só que em ambos os casos trata-se de crença e não de razão. Podemos dizer que os últimos elos que ligavam a crença ao conhecimento foram quebrados pela filosofia de Hume.
— Você disse que ele não rejeitou categoricamente a idéia do milagre.
— O que também não significa que ele acreditava em milagres. Em muitas passagens, Hume afirma que os homens têm evidentemente uma forte necessidade de acreditar em acontecimentos que hoje chamaríamos de “sobrenaturais”. Só que todos os milagres de que ouvimos falar aconteceram em algum lugar distante de onde estamos, ou então há muitos, muitos anos. Hume só se recusa a acreditar em milagres porque nunca experimentou um milagre. Da mesma forma, e inversamente, ele também nunca experimentou o fato de que milagres não acontecem.
— Explique melhor.
— Hume chama de milagre a um evento que pressupõe a ruptura das leis da natureza. Mas também não podemos afirmar que experimentamos as leis da natureza. Podemos experimentar, isto sim, que uma pedra cai no chão quando a soltamos. Da mesma forma, se ela não caísse, poderíamos experimentar o fato de ela não cair.
— Eu chamaria isto de milagre, ou então de algo sobrenatural.
— Quer dizer que você acredita em duas naturezas: uma natureza e uma “sobrenatureza”. Será que com isto você não está tomando o caminho de volta ao discurso racionalista?
— Pode ser, mas acho que a pedra cai no chão toda a vez que a soltamos.
— E por quê?
— Agora você está sendo impiedoso.
— Não estou não, Sofia. Para um filósofo nunca é errado fazer perguntas. Pode ser que este seja justamente o ponto mais importante da filosofia de Hume. Responda-me: como você pode ter tanta certeza de que a pedra sempre cai no chão?
— É que eu já vi isto tantas vezes que tenho certeza absoluta.
— Hume diria que você já experimentou muitas vezes que uma pedra cai no chão quando a soltamos. Só que você não experimentou o fato de que ela irá sempre cair. Em geral dizemos que a pedra cai ao solo por força da gravidade. Só que nós nunca experimentamos esta lei. Tudo o que experimentamos é que as coisas caem.
— E não é a mesma coisa?
— Não exatamente. Você disse que acredita que a pedra irá sempre cair porque já viu isto muitas vezes. E é exatamente isto que preocupa Hume. Você está tão acostumada com um evento se seguindo ao outro que acha que ele vai acontecer todas as vezes que você soltar uma pedra. É assim que surgem as noções do que chamamos de “leis imutáveis da natureza”.
— Será que ele realmente acha possível que uma pedra não caia no chão quando a soltarmos?
— Na certa ele estava tão convencido quanto você de que a pedra cairia no chão a cada nova tentativa. Mas ele apenas chama a atenção para o fato de não termos experimentado o porquê de as coisas serem assim.
— Não estamos de novo nos afastando um pouco dos bebês e das flores?
— Não, ao contrário. Você pode muito bem tomar as crianças como testemunhas para as afirmações de Hume. Quem você acha que ficaria mais surpreso se a pedra flutuasse no ar por um ou dois segundos, você ou um bebê de um ano?
— Eu ficaria mais surpresa.
— E por que, Sofia?
— Talvez porque eu entenda melhor do que a criança que isto contraria a natureza.
— E por que a criança não entende isto?
— Porque ela ainda não aprendeu o que é a natureza.
— Ou porque a natureza ainda não se tornou um hábito para ela.
— Entendo o que você quer dizer. Hume queria levar as pessoas a observar melhor as coisas.
— Vou lhe dar uma tarefa: se você e um bebê assistirem juntos a um grande número de mágica, um número de levitação, por exemplo, quem você acha que se divertiria mais com o número?
— Acho que… eu.
— E por quê?
— Porque eu saberia que o que vejo é impossível.
— Muito bem. A criança não acha graça no fato de a levitação contrariar as leis da natureza, simplesmente porque ela ainda não as conhece.
— Sim, acho que é por isso mesmo.
— E ainda estamos no ponto crucial da filosofia da experiência de Hume. Ele teria acrescentado que a criança ainda não se tornou escrava de suas expectativas. A criança tem, portanto, menos preconceitos do que você. Podemos perguntar até mesmo se a criança não seria o maior filósofo. É que uma criança não possui opiniões preconcebidas. E isto, minha querida Sofia, é a maior virtude da filosofia. A criança experimenta o mundo tal como ele é, sem acrescentar coisas ao que experimenta.
— Sempre me sinto muito mal quando reconheço que tenho algum preconceito.
— Quando Hume aborda a questão da força do hábito, ele se concentra na chamada lei da causa. Segundo esta lei, tudo o que acontece precisa ter uma causa. Hume cita o exemplo de duas bolas de bilhar. Quando você empurra com o taco uma bola preta para cima de uma bola branca que estava em repouso, o que acontece com a bola branca?
— Quando a preta atinge a branca, a branca começa a se mover.
— E por que ela começa a se mover?
— Porque foi atingida pela bola preta.
— Neste caso, dizemos que o impacto da bola preta é a causa do início do movimento da bola branca. Mas não devemos nos esquecer de que só podemos falar com certeza sobre coisas que experimentamos.
— Eu mesma já experimentei isto várias vezes. É que a Jorunn tem uma mesa de bilhar no porão.
— Hume diz que você só experimentou o fato de que a bola preta bate na branca e que a branca começa a rolar sobre a mesa, e não a causa em si do movimento da bola branca. Você experimentou o fato de um acontecimento se suceder temporalmente ao outro, mas não experimentou que o segundo evento ocorre por causa do primeiro.
— Esta não é uma diferença sutil demais?
— Não, é uma coisa muito importante. Hume insiste em que a expectativa de que um evento se suceda ao outro não está nas coisas em si, mas em nossa mente. Novamente, a criança não arregalaria os olhos de espanto se uma bola atingisse a outra e ambas ficassem paradas sobre a mesa. Quando falamos de “leis da natureza” ou de “causa e efeito” estamos falando na verdade de hábitos humanos e não de algo racional. As leis da natureza não são racionais nem irracionais. Elas simplesmente são. A expectativa de que a bola branca de bilhar entre em movimento quando atingida pela preta não é, portanto, uma coisa inata. Não nascemos com expectativas já prontas acerca de como o mundo é, ou de como as coisas se comportam no mundo. O mundo é como é, e nós vamos experimentando isto pouco a pouco.
— Começo a ter novamente a sensação de que isto tudo não é assim tão importante.
— Mas isto pode ser importante quando, movidos por nossas expectativas, somos tentados a tirar conclusões precipitadas. Hume não rejeita o fato de existirem leis naturais imutáveis. Só que como não somos capazes de experimentar tais leis em si, podemos facilmente tirar conclusões erradas.
— Você poderia citar alguns exemplos?
— O fato de eu ver uma manada de cavalos pretos não significa que todos os cavalos sejam pretos.
— Nesse ponto você tem razão.
— E mesmo o fato de durante toda a minha vida eu só ter visto corvos pretos não significa que não haja corvos brancos. Para um filósofo e para um cientista pode ser importante provar que não existem corvos brancos. Se quiser, você pode até dizer que a procura por um corvo branco é a tarefa mais importante de toda a ciência.
— Entendo.
— Quando se trata da relação entre causa e efeito, é provável que muitos considerem o raio a causa do trovão, pois o trovão sempre se segue ao raio. Este exemplo não é muito diferente do exemplo das bolas de bilhar. Mas será que o raio é mesmo a causa do trovão?
— Não exatamente. De fato, o raio e o trovão acontecem ao mesmo tempo.
— Pois tanto o raio quanto o trovão são conseqüências de uma descarga elétrica. Mesmo tendo sempre experimentado que o trovão se segue ao raio, isto não significa que o raio é a causa do trovão. Na verdade, ambos são provocados por um terceiro fator.
— Entendo.
— Um empírico de nosso século [XX], Bertrand Russell, deu um exemplo um pouco mais grotesco: um pintinho, que todos os dias vive a experiência de ganhar comida quando o avicultor vem ao galinheiro, vai acabar tirando a conclusão de que existe uma relação entre os passos do avicultor no galinheiro e a comida na tigela.
— Mas um dia ele não aprende a achar seu próprio alimento?
— Um dia o avicultor entra no galinheiro e torce o pescoço do frango.
— Ui, que horror!
— O fato de as coisas se sucederem temporalmente às outras não significa, portanto, que exista uma relação de causa e efeito entre elas. Uma das mais importantes tarefas da filosofia é advertir as pessoas quanto ao perigo das conclusões precipitadas. Além disso, as conclusões precipitadas podem levar a várias formas de superstição.
— Como?
— Você vê um gato preto atravessando a rua. Neste mesmo dia, um pouco mais tarde, você tropeça, cai e quebra o braço. Isto não significa que exista uma relação de causa e efeito entre os dois eventos. Também na ciência é muito importante não tirar conclusões precipitadas. Embora muitas pessoas fiquem curadas depois de tomar determinado medicamento, isto não significa que foi o medicamento que as curou. Por isso precisamos ter um grupo de controle formado por indivíduos que acreditam estar tomando o mesmo medicamento, quando na verdade estão tomando bolinhas de farinha e água. Se estas pessoas também se curarem, então deve haver um terceiro fator que as curou: por exemplo, a fé no poder de cura do medicamento.
— Acho que aos poucos estou entendendo o que significa empirismo.
— Também no âmbito da ética e da moral Hume se opôs ao pensamento racionalista. Os racionalistas consideravam uma qualidade inata da razão humana o fato de ela poder distinguir entre certo e errado. Esta idéia do chamado direito natural nós já a encontramos em muitos filósofos, de Sócrates a Locke. Mas Hume não acredita que a razão determina o que dizemos e fazemos.
— Se não é ela, o que seria?
— Nossos sentimentos. Quando você decide ajudar um necessitado, foram os sentimentos que levaram você a isto, e não a razão.
— E se eu não tiver vontade de ajudar?
— Também nesse caso os sentimentos são decisivos. Não ajudar um necessitado não é uma coisa nem racional, nem irracional, mas pode ser uma coisa impiedosa.
— Contudo, certamente deve haver um limite em algum lugar. Todos nós sabemos que não é certo matar uma pessoa.
— Segundo Hume, todos nós temos um sentimento acerca do bem-estar e do mal-estar dos outros. Temos, portanto, a capacidade de sentir compaixão pelos outros. Mas nada disso tem a ver com a razão.
— Não sei se estou bem certa sobre isto.
— Nem sempre é um ato de irracionalidade tirar alguém de nosso caminho, Sofia. Quando se quer conseguir alguma coisa, esta pode ser uma boa forma de se atingir este objetivo.
— Francamente! Protesto!
— Então me explique por que não podemos eliminar alguém que nos estorva.
— O outro também ama a vida. Por isso não podemos eliminá-lo.
— Isto é uma explicação lógica?
— Não faço a menor idéia.
— O que você fez foi derivar de uma oração descritiva, como “O outro também ama a vida”, uma oração normativa: “Por isso não podemos eliminá-lo.” Do ponto de vista estritamente racional, isto é um absurdo. Do mesmo modo, do fato de que muitas pessoas sonegam impostos você poderia concluir que também pode e deve sonegar. Hume deixou claro que as conclusões não devem ser tiradas saltando-se de sentenças do ser para sentenças do dever ser. Não obstante, isto acontece com muita freqüência, inclusive em artigos de jornal, programas de partidos e discursos de parlamentares. Você gostaria de ouvir alguns exemplos?
— Sim.
— “Cada vez mais pessoas viajam de avião. Por esta razão, é preciso construir mais aeroportos.” Você acha a conclusão convincente?
— Não. É uma conclusão idiota, pois temos de pensar também no meio ambiente. Pessoalmente, acho que seria preferível ampliar a rede de trilhos das ferroviárias.
— Veja outro exemplo: “A ampliação dos poços de petróleo vai aumentar em 10% o padrão de vida da população. Por esta razão, é preciso abrir o quanto antes novos poços de petróleo”.
— Absurdo. Também neste caso é preciso pensar no meio ambiente. Além disso, nosso padrão de vida já é elevado o suficiente.
— Outro exemplo muito comum: “Esta lei foi promulgada pelo Parlamento e por isso todos os cidadãos têm de respeitá-la”. Acontece que não são raros os casos em que a observância de leis que são “baixadas” contraria as convicções mais profundas das pessoas.
— Entendo.
— Vimos, portanto, que não podemos demonstrar por meio da razão como devemos nos comportar. Quando agimos cientes de nossa responsabilidade, isto não significa que estamos aguçando nossa razão, mas que estamos aguçando nossos sentimentos pelo bem-estar dos outros. Hume costumava dizer que, do ponto de vista da razão, preferir a destruição do mundo a um arranhão no dedo era algo que se justificava.
— Que afirmação mais terrível!
— E pode ser mais terrível ainda. Você sabe que os nazistas eliminaram milhões de judeus. O que você diria que não estava certo com os nazistas: sua razão ou o seu sentimento?
— Acho que não havia alguma coisa certa era com o sentimento deles.
— Pois é. Em muitos casos, tratava-se de pessoas mentalmente sãs. Aliás, não são raras as vezes em que encontramos um frio calculismo por trás de decisões as mais insensíveis. Depois da guerra, muitos nazistas foram condenados, mas não por terem sido irracionais. Foram condenados por sua crueldade. E o oposto também é possível: acontece de pessoas mentalmente perturbadas serem absolvidas por seus crimes. Chamamos isto de “inimputabilidade no momento da ação”. Por outro lado, nunca ninguém foi absolvido por “falta de sentimento” no momento do crime.
— Só faltava essa!
— Mas não precisamos recorrer aos exemplos mais grotescos. Depois de uma grande enchente, por exemplo, quando há milhares de desabrigados precisando de ajuda, são os nossos sentimentos que decidem se vamos ajudar ou não. Se fôssemos pessoas insensíveis e deixássemos esta decisão à “frieza da razão”, poderíamos pensar que num mundo que sofre com a superpopulação até que seria bom se alguns milhares de pessoas morressem.
— Fico furiosa quando me passa pela cabeça que alguém possa pensar assim.
— E neste caso não é a sua razão que fica furiosa.
— Acho que podemos parar por aqui.
CAPÍTULO 22 (EXCERTO)
BERKELEY
(Páginas 302-305.)
(…)
Alberto não respondeu. Atravessou a sala e sentou-se na poltrona, ao lado da mesinha.
— Ainda precisamos conversar um pouco sobre Berkeley — disse ele.
Sofia já tinha se sentado. Sem querer, flagrou-se roendo as unhas.
— George Berkeley foi um bispo irlandês, que viveu entre 1685 e 1753 — começou Alberto, e depois ficou um bom tempo sem dizer mais nada.
— Berkeley foi um bispo irlandês… — repetiu Sofia para retomar o fio da meada.
— Mas ele foi também um filósofo…
— Sim?
— …para quem a filosofia e a ciência de seu tempo constituíam uma ameaça para a visão cristã do mundo. Além disso, Berkeley achava que o materialismo, cada vez mais consistente e difundido, colocava em risco a crença cristã de que Deus criou e mantém vivo tudo o que existe na natureza…
— Sim?
— Ao mesmo tempo, porém, Berkeley foi um dos mais coerentes representantes do empirismo.
— Ele também era da opinião de que não podemos saber do mundo mais do que percebemos pelos nossos sentidos?
— E não apenas isto. Berkeley dizia que as coisas do mundo são, de fato, exatamente da forma como nós as percebemos, mas que não são “coisas”.
— Explique um pouco melhor.
— Você ainda se lembra de que Locke chamara a atenção para o fato de não podermos afirmar nada sobre as “qualidades secundárias” das coisas. Nesse caso, não podemos afirmar que uma maçã é verde ou azeda. Tudo o que podemos dizer é que nós a percebemos assim. Mas Locke disse também que as “qualidades primárias”, tais como a densidade, o peso, a gravidade, realmente pertencem à realidade que nos cerca. Esta realidade exterior teria, portanto, uma “substância” física.
— Lembro-me muito bem disso. Aliás, acho que Locke conseguiu mostrar uma diferença muito importante.
— Ah, Sofia, se fosse só isso…
— Continue!
— Locke, assim como Descartes e Spinoza, considerava o mundo físico, portanto, uma realidade.
— Sim?
— É justamente isto que Berkeley coloca em dúvida. E ele o faz baseado num empirismo muito coerente. Berkeley diz que tudo o que existe é só o que percebemos, mas que aquilo que percebemos não é “matéria” ou “substância”. Não percebemos as coisas como “coisas” tangíveis. Para ele, pressupor que aquilo que percebemos possui uma “substância” que lhe é inerente não passa de uma conclusão precipitada. Nesse caso, faltam-nos meios para provar o que afirmamos com base na experiência.
— Besteira! Dê uma olhada nisso.
E, dizendo isto, Sofia bateu com a mão fechada na mesa.
— Ai! — deixou escapar, pois não previu a intensidade da batida. — Isto aqui não é a prova de que a mesa é uma mesa de verdade e de que ela é sim matéria ou substância?
— O que você sentiu quando bateu com o punho fechado na mesa?
— O impacto da mão contra uma coisa dura.
— Você experimentou nitidamente a sensação de bater em alguma coisa dura, mas não sentiu a verdadeira matéria da mesa. Da mesma forma, você pode sonhar que está batendo em alguma coisa dura, embora no sonho esta coisa não exista, não é mesmo?
— É… no sonho não existe.
— Você deve saber que é perfeitamente possível induzir alguém a achar que ele ou ela é capaz de “sentir” qualquer tipo de coisa. Uma pessoa pode ser hipnotizada e achar que sente calor e frio, ou então que está sendo acariciada ou levando um soco na cara.
— Mas se não foi a solidez da mesa em si, o que me levou a sentir o que eu senti?
— Berkeley acreditava que foi a vontade ou o espírito. Ele acreditava também que todas as nossas idéias tinham uma causa fora de nossa consciência, mas que esta causa não era de natureza material. Para Berkeley, esta causa era de natureza espiritual.
Sofia recomeçara a roer as unhas. Alberto continuou:
— Segundo Berkeley, portanto, minha alma pode ser a causa das minhas próprias idéias, assim como acontece quando sonho, mas só outra vontade, só outro espírito pode ser a causa das idéias que formam nosso mundo material. Berkeley dizia que tudo vinha do espírito “onipresente, por meio do qual tudo existe”.
— E que espírito seria este?
— É claro que Berkeley está pensando em Deus. Ele chegou mesmo a afirmar que percebemos com mais nitidez a existência de Deus do que a de qualquer outra pessoa.
— Quer dizer que não podemos ter certeza de que existimos?
— Bem… para Berkeley, tudo o que vemos e sentimos é um efeito da força de Deus, pois Deus está presente no fundo de nossa consciência e é a causa de toda a multiplicidade de idéias e sensações a que estamos constantemente sujeitos. Toda a natureza que nos cerca, e também toda a nossa existência, estariam portanto em Deus. Ele seria a causa única de tudo o que existe.
— Estou totalmente confusa, para dizer o mínimo.
— “Ser ou não ser” não seria, portanto, a questão central. Importante seria perguntar também o quê somos. Será que somos pessoas de verdade, feitas de carne e osso? Será que o nosso mundo consiste em coisas reais, ou será que tudo o que nos cerca não passa de consciência?
De novo Sofia começou a roer as unhas. Alberto continuou:
— Pois Berkeley não duvida apenas da realidade material. Ele duvida também que o tempo e o espaço possuam uma existência absoluta ou autônoma. Nossa percepção de tempo e espaço pode estar apenas em nossa consciência. Uma ou duas semanas para nós não precisam ser necessariamente uma ou duas semanas para Deus…
CAPÍTULO 24 (EXCERTO)
O ILUMINISMO
(Páginas 336-342.)
(…)
Sofia fechou a porta e colocou o boletim cheio de boas notas sobre a mesa da cozinha. Depois atravessou de gatinhas a sebe do jardim e se embrenhou na floresta.
Mais uma vez teve de atravessar o lago a remo. Alberto estava sentado à porta da cabana quando ela chegou. Ele acenou para que ela viesse se sentar a seu lado.
O tempo estava bom, se bem que do lago vinha uma corrente de ar frio, penetrante. O lago parecia não ter se recuperado ainda da tormenta do dia anterior.
— Vamos direto ao assunto — disse Alberto. — Depois de Hume, o alemão Kant foi o próximo grande construtor de um sistema filosófico. Mas também a França teve muitos pensadores importantes no século XVIII. Podemos dizer que na primeira metade do século XVIII o centro filosófico da Europa esteve na Inglaterra, em meados do século se deslocou para a França e em fins do século para a Alemanha.
— Para resumir, um deslocamento da parte ocidental para a oriental.
— Exatamente. Vou resumir de forma extremamente breve alguns pensamentos que eram comuns a todos os filósofos do Iluminismo francês. Trata-se aqui de nomes importantes como Montesquieu, Voltaire, Rousseau e muitos, muitos outros. Vou me concentrar em sete pontos.
(…)
— (…) Muito bem, o primeiro conceito-chave é, portanto, a revolta contra as autoridades. Muitos dos filósofos do Iluminismo francês tinham visitado a Inglaterra, que em certo sentido era mais liberal do que a própria França. A ciência natural inglesa, sobretudo Newton e sua física universal, fascinou esses filósofos franceses. Mas também os filósofos ingleses foram fonte de inspiração para eles, principalmente Locke e sua filosofia política. De volta à sua pátria, a França, eles começaram pouco a pouco a se rebelar contra o velho autoritarismo. Eles achavam que era muito importante permanecerem céticos a todas as verdades herdadas e acreditavam que o próprio indivíduo deveria encontrar respostas às suas perguntas. Nesse ponto, a fonte de inspiração era a tradição de Descartes.
— Pois ele propunha a reconstrução de tudo de baixo para cima.
— Exatamente. A revolta contra o velho autoritarismo não tardou a se voltar também contra o poder da Igreja, do rei e da aristocracia. No século XVIII, essas instituições eram muito mais poderosas na França do que na Inglaterra.
— E então veio a Revolução.
— Sim, no ano de 1789. As novas idéias, porém, vieram mais cedo. Nosso próximo conceito chave é o racionalismo.
— Eu pensei que o racionalismo tivesse sido enterrado junto com Hume.
— Hume só morreu em 1776, vinte anos depois de Montesquieu e só dois anos antes de Voltaire e de Rousseau, que morreram em 1778. Talvez você se lembre de que Locke não foi um empírico muito coerente. Ele achava, por exemplo, que a crença em Deus e em certas normas morais era parte integrante da consciência humana. Esta idéia também foi o núcleo da filosofia do Iluminismo francês.
— Você também disse que os franceses sempre foram mais racionalistas do que os ingleses.
— E esta diferença remonta à Idade Média. Quando os ingleses falam de common sense, os franceses gostam de falar de évidence. A expressão inglesa pode ser traduzida por “o que é do conhecimento de todos” e a expressão francesa por “evidência”. O common sense apelava à razão, e o fato de ela existir era évident.
— Entendo.
— À semelhança dos humanistas da Antigüidade, como Sócrates e os estóicos, a maioria dos filósofos do Iluminismo tinha uma crença inabalável na razão humana. Isto era algo tão evidente que muitos chamam o período do Iluminismo francês simplesmente de “racionalismo”. A nova ciência natural deixara claro que tudo na natureza era racional. Assim, os filósofos iluministas consideravam sua tarefa criar um alicerce para a moral, a ética e a religião que estivesse em sintonia com a razão imutável do homem. E isto levou ao pensamento do Iluminismo propriamente dito.
— Nosso terceiro ponto.
— Dizia-se, então, que era chegado o momento de “iluminar” as amplas camadas da população, ou seja, de esclarecê-las. Esta seria a condição sine qua non de uma sociedade melhor. Entre o povo, porém, imperavam a incerteza e a superstição. Por isso, dedicou-se especial atenção à educação. Não é por acaso que a pedagogia, como ciência, foi fundada na época do Iluminismo.
— Quer dizer que o sistema educacional vem da Idade Média e a pedagogia do Iluminismo.
— Podemos dizer que sim. O grande monumento do Iluminismo é, paradigmaticamente, uma enciclopédia. Refiro-me à chamada Enciclopédia surgida entre 1751 e 1772 em vinte e oito volumes, com contribuições de todos os grandes filósofos iluministas. Dizia-se que ali “havia de tudo, da produção de agulhas à fundição de canhões”.
— O próximo ponto é o otimismo cultural.
— Você poderia deixar este cartão de lado enquanto estou falando?
— Desculpe.
— Os filósofos iluministas diziam que somente quando a razão e o conhecimento se tivessem difundido entre todos é que a humanidade faria grandes progressos. Era apenas uma questão de tempo para que desaparecessem a irracionalidade e a ignorância e surgisse uma humanidade iluminada, esclarecida. Este pensamento dominou a Europa ocidental até há poucos décadas. Hoje não estamos assim tão convencidos de que o progresso do conhecimento leva necessariamente a melhores condições de vida. Mas esta crítica da “civilização” já tinha sido feita pelos próprios filósofos do Iluminismo.
— Então deveríamos ter ouvido o que eles disseram.
— “De volta à natureza!”: esta era a palavra de ordem da crítica à civilização. Só que para os filósofos do Iluminismo a natureza era quase a mesma coisa que a razão. Isto porque, para eles, a razão era uma dádiva da natureza ao homem, em oposição, por exemplo, à Igreja ou à civilização. Enfatizava-se que os “povos naturais” eram freqüentemente mais sadios e mais felizes do que os europeus, exatamente porque não possuíam uma civilização. A palavra de ordem “De volta à natureza” é de Jean-Jacques Rousseau. Ele dizia que a natureza era boa e que o homem, portanto, era “naturalmente bom”. Todo o mal estaria na sociedade civilizada, que afasta o homem de sua natureza. Por isso Rousseau também queria que as crianças vivessem por mais tempo possível em seu estado “natural” de inocência. Podemos dizer que a noção de um valor próprio da infância vem do Iluminismo. Até então, a infância tinha sido vista como uma preparação para a vida adulta. Mas somos todos seres humanos, e vivemos nossa vida na Terra também como crianças.
— Concordo plenamente.
— Por fim, os filósofos do Iluminismo se preocuparam também com uma “religião natural”.
— E o que eles queriam dizer com isto?
— Queriam dizer que a religião também devia estar em consonância com a “razão natural” do homem. Muitos lutaram por aquilo que podemos chamar de cristianismo humanista, nosso sexto ponto da lista. É claro que também houve os materialistas convictos, que não acreditavam em Deus e professavam o ateísmo. Mas a maioria dos filósofos iluministas achava irracional imaginar um mundo sem Deus. Para eles, o mundo era racional demais para ser encarado de outra forma. Newton, por exemplo, defendera o mesmo ponto de vista. Da mesma forma, a crença na imortalidade da alma era vista como algo racional. À semelhança de Descartes, para os filósofos do Iluminismo a questão de saber se o homem possuía uma alma imortal também era mais uma questão da razão do que da fé.
— É exatamente isto que me incomoda um pouco. Para mim, este é um exemplo típico de algo em que só se pode acreditar, mas que não se pode saber.
— Mas você não vive no século XVIII. Os filósofos iluministas queriam libertar o cristianismo dos muitos dogmas e princípios religiosos irracionais que, ao longo da história da Igreja, tinham sido amalgamados à simplicidade dos ensinamentos de Jesus Cristo.
— Ah, bom. Nesse caso acho que entendo o que eles queriam dizer.
— Muitos também professavam o chamado deísmo.
— Explicação, por favor.
— Por deísmo entende-se uma concepção segundo a qual Deus criou o mundo em tempos há muito passados, mas nunca se revelou a ele desde então. Desse modo, Deus é visto como um ser superior, que só se revela ao homem através da natureza e de suas leis, mas nunca através de uma forma “sobrenatural”. Tal “Deus filosófico”, nós o encontramos já em Aristóteles. Para ele, Deus era a causa primeira, o impulsor do universo.
— Só nos resta agora um ponto: os direitos humanos.
— Em compensação, talvez ele seja o mais importante. Podemos dizer com segurança que a filosofia do Iluminismo francês era mais prática do que a inglesa.
— Você quer dizer que as conclusões que eles tiravam de sua filosofia eram aplicadas diretamente na prática?
— Sim. Os filósofos iluministas franceses não se contentaram apenas com concepções teóricas sobre o lugar do homem na sociedade. Eles lutaram ativamente por aquilo que chamaram de “direitos naturais” dos cidadãos. Tratava-se sobretudo de uma luta contra a censura, ou seja, pela liberdade de imprensa. No que respeita à religião, à moral e à política, o indivíduo precisava ter assegurado o seu direito à liberdade de pensamento e de expressão de seus pontos de vista. Além disso, lutou-se contra a escravidão e por um tratamento mais humano dos infratores das leis.
— Acho que concordo com tudo isto.
— O princípio da “inviolabilidade do indivíduo” acabou resultando na “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, promulgada pela Assembléia Nacional Francesa em 1789. Esta declaração dos direitos humanos foi uma base importante para a Constituição da Noruega, de 1814.
— Mas muitas pessoas ainda precisam continuar lutando por esses direitos.
— Sim, infelizmente. Os filósofos do Iluminismo queriam estabelecer determinados direitos de que todas as pessoas seriam titulares, simplesmente por terem nascido como seres humanos. É isto que eles chamam de “direito natural”. Até hoje falamos do “direito natural” que em certos casos pode se opor frontalmente às leis oficiais de um país. E até hoje vemos indivíduos – ou mesmo populações inteiras – que evocam esses “direitos naturais” para se defender da falta de liberdade, da falta de direitos e da repressão.
— Como eram os direitos da mulher naquela época?
— A Revolução Francesa de 1789 declarou uma série de direitos que deveriam valer para todos os cidadãos. Só que cidadãos eram basicamente os homens. Apesar disso, é exatamente durante a Revolução Francesa que surge o primeiro exemplo de um movimento de mulheres.
— Já não era sem tempo!
— Já em 1787, o filósofo iluminista Condorcet publica um artigo sobre os direitos da mulher. Nele, o filósofo garante às mulheres os mesmos direitos naturais dos homens. Durante a Revolução Francesa de 1789, muitas mulheres participaram ativamente da luta contra a aristocracia. Por exemplo, foram elas que lideraram as passeatas que acabaram levando o rei a abandonar o seu castelo em Versalhes. Em Paris, formaram-se diferentes grupos de mulheres. Paralelamente à igualdade de direitos políticos em relação aos homens, elas reivindicavam também mudanças na legislação conjugal e melhores condições de vida.
— E elas conseguiram esses direitos?
— Não. Conforme aconteceu outras vezes mais tarde, a questão dos direitos da mulher foi colocada no bojo de uma revolução. Contudo, logo que as coisas se acalmaram numa nova ordem, a antiga predominância dos homens foi restabelecida.
— Típico…
— Uma das que mais lutaram pelos direitos da mulher durante a Revolução Francesa foi Olympe de Gouges. Em 1791, dois anos depois da Revolução, portanto, ela publicou uma declaração dos direitos da mulher. É que a “Declaração dos direitos do homem e do cidadão” não tinha dedicado muito espaço aos direitos naturais das mulheres. Olympe de Gouges reivindicava para as mulheres exatamente os mesmos direitos dos homens.
— E qual foi o resultado disso?
— Ela foi decapitada em 1793 e as mulheres proibidas de toda e qualquer atividade política.
— Que loucura!
— Somente no século XIX é que o movimento de mulheres começa efetivamente a ganhar terreno, tanto na França quanto em toda a Europa. E foi muito lentamente que essa luta começou a dar os seus primeiros frutos. Na Noruega, por exemplo, as mulheres só passaram a ter direito ao voto em 1913. E em muitos países elas continuam a lutar pela igualdade de direitos.
— Pois elas podem contar com a minha ajuda.
CAPÍTULO 25 (EXCERTO)
KANT
(Páginas 346-360.)
(…)
— (…) Vamos nos sentar perto da lareira. Vou lhe contar alguma coisa sobre Kant.
Nesse momento, Sofia encontrou uns óculos sobre uma mesinha colocada entre duas poltronas. Ela percebeu que as duas lentes eram vermelhas. Talvez fosse um par de óculos de sol bem fortes…
— São quase duas horas — disse ela. — Preciso estar em casa o mais tardar às cinco. Minha mãe na certa deve ter planejado alguma coisa para o meu aniversário.
— Então temos três horas.
— Vamos começar.
— Immanuel Kant nasceu em Königsberg, uma cidade da Prússia oriental, em 1724. Ele era filho de um seleiro e passou quase toda a sua vida em sua cidade natal, até falecer aos oitenta anos. Sua família era muito fervorosa em sua fé cristã, razão pela qual a convicção religiosa do próprio Kant foi um elemento muito importante para a sua filosofia. Como Berkeley, Kant também queria salvar o fundamento da fé cristã.
— Já ouvi o bastante sobre Berkeley, obrigada.
— Dos filósofos de que falamos, Kant foi o primeiro a trabalhar como professor numa universidade. Ele foi o que freqüentemente chamamos de “especialista em filosofia”.
— Especialista em filosofia?
— A palavra “filósofo” é empregada hoje em dia em dois sentidos levemente diferentes. Por filósofo entendemos, sobretudo, aquele que tenta encontrar suas próprias respostas para questões filosóficas. Mas um filósofo também pode ser um especialista em história da filosofia, sem necessariamente querer desenvolver sua própria filosofia.
— E Kant foi um especialista em filosofia?
— Ele foi ambas as coisas. Se tivesse sido apenas um professor brilhante, um especialista, portanto, no pensamento de outros, ele não ocuparia um lugar tão importante na história da filosofia. Igualmente importante, porém, é o fato de Kant realmente conhecer como poucos a tradição filosófica. Ele conhecia muito bem tanto os racionalistas como Descartes e Spinoza, quanto empíricos como Locke, Berkeley e Hume.
— Já pedi para você não tocar mais no nome de Berkeley.
— Sabemos que, para os racionalistas, a base de todo o conhecimento humano estava na consciência do homem. E sabemos também que os empíricos queriam derivar das impressões dos sentidos todo o conhecimento do mundo. Além disso, Hume chamara a atenção para o fato de haver limites definidos para as conclusões que podemos tirar com a ajuda dos nossos sentidos.
— E com qual deles Kant concordava?
— Ele achava que todos tinham um pouco de razão, mas que também tinham se enganado em alguns pontos. De qualquer forma, todos eles tinham se dedicado à tarefa de investigar o que podemos saber do mundo. Este era o projeto filosófico comum a todos os filósofos depois de Descartes. Havia duas possibilidades em discussão: o mundo seria exatamente como nós o percebemos, ou como se mostra à nossa razão?
— E o que Kant achava?
— Kant achava que tanto os sentidos quanto a razão eram muito importantes para a nossa experiência do mundo. Contudo, ele achava que os racionalistas atribuíam uma importância exagerada à razão, enquanto os empíricos eram parciais demais ao defender a experiência centrada nos sentidos.
— Se você não citar logo um exemplo, tudo isto não vai passar de palavras.
— Como ponto de partida, Kant concorda com Hume e com os empíricos quanto ao fato de que devemos todos os nossos conhecimentos às impressões dos sentidos. Mas, e nesse ponto ele concorda com os racionalistas, nossa razão também contém pressupostos importantes para o modo como percebemos o mundo à nossa volta. Em nós mesmos, portanto, existem certas condições que determinam nossa concepção do mundo.
— É este o exemplo?
— Acho melhor fazermos um experimento. Você poderia pegar os óculos que estão sobre a mesinha? Isso, obrigado. Agora coloque-os.
Sofia colocou os óculos. Tudo à sua volta ficou vermelho. As cores claras ficaram vermelho-claras e as escuras vermelho-escuras.
— O que você está vendo?
— O mesmo de antes, só que tudo vermelho.
— A explicação para isto é que as lentes dos óculos determinam o modo como você percebe a realidade. Tudo o que você vê é parte do mundo que está fora de você mesma; mas o modo como você enxerga tudo isto também é determinado pelas lentes dos óculos. Você não pode dizer que o mundo é vermelho, ainda que neste momento ele pareça vermelho.
— Não, é claro que não…
— Se você caminhar com eles pela floresta, ou usá-los em casa, na curva do capitão, você verá tudo o que sempre viu. Contudo, não importa o que você visse, tudo seria vermelho.
— Até que eu tirasse os óculos, certo?
— Os óculos são a premissa para o modo como você enxerga o mundo. Da mesma maneira, para Kant, também possuímos certas premissas em nossa razão, que deixam suas marcas em todas as nossas experiências.
— A que premissas ele está se referindo?
— Não importa o que possamos ver, sempre perceberemos o que vemos sobretudo como fenômenos no tempo e no espaço. Kant chamava o tempo e o espaço de “formas da sensibilidade”. E ele sublinhava que essas duas formas já existem em nossa consciência antes de qualquer experiência. Isto significa que podemos saber, antes de experimentar alguma coisa, que vamos experimentá-la como fenômeno no tempo e no espaço. Somos incapazes, por assim dizer, de tirar os óculos da razão.
— Ele achava, portanto, que o fato de percebermos as coisas no tempo e no espaço era uma característica inata aos seres humanos?
— De certa forma, sim. O que vemos depende de termos crescido na Índia ou na Groenlândia. Em toda a parte, porém, percebemos o mundo como algo no tempo e no espaço. E isto é uma coisa que podemos afirmar de antemão.
— Quer dizer que o tempo e o espaço não existem fora de nós mesmos?
— Não. Ou pelo menos isto não é o mais importante. Kant explica que o espaço e o tempo pertencem à condição humana. Tempo e espaço são sobretudo propriedades da nossa consciência, e não atributos do mundo físico.
— Esta é uma visão totalmente nova.
— A consciência humana não é, portanto, uma “placa” que só registra passivamente as impressões sensoriais vindas de fora. Ela também é criativa; é uma instância formadora. A própria consciência coloca sua marca no modo como percebemos o mundo. Talvez possamos comparar isto com o que acontece quando colocamos água num jarro de vidro. A água toma a forma do jarro. Do mesmo modo, as impressões dos sentidos se adaptam às nossas “formas da sensibilidade”.
— Acho que entendo o que você quer dizer.
— Kant afirma que não é apenas a consciência que se adapta às coisas. As coisas também se adaptam à consciência. O próprio Kant chama isto de “a virada de Copérnico” na questão do conhecimento humano. Com isto ele quer dizer que esta reflexão é tão nova e tão radical em relação à tradição quanto a afirmação de Copérnico de que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário.
— Agora entendo o que ele queria dizer quando afirmou que tanto os racionalistas quanto os empíricos estavam certos em parte. De certa forma, os racionalistas tinham esquecido a importância da experiência dos sentidos, enquanto os empíricos não quiseram ver que a razão co-determina nossa concepção de mundo.
— Para Kant, até a lei da causalidade, que, segundo Hume, o homem era incapaz de experimentar, é elemento componente da razão humana.
— Explique um pouco melhor.
— Você ainda se lembra de que, para Hume, era a força do hábito que nos fazia ver uma relação de causa entre os processos da natureza. Isto porque Hume achava que não podemos sentir que a bola preta de bilhar é a causa do início do movimento da bola branca. Por esta razão, segundo ele, não podemos provar que a bola preta sempre colocará em movimento a branca.
— Ainda me lembro disso.
— Mas Kant considera uma propriedade da razão humana exatamente isto que, para Hume, não pode ser provado. A lei da causalidade é eterna e absoluta, simplesmente porque a razão humana considera tudo o que acontece dentro de uma relação de causa e efeito.
— E novamente eu diria que a lei da causalidade está na natureza e não em nós mesmos.
— Kant diz que ela está dentro de nós. Ele concorda com Hume em que não podemos saber com certeza como o mundo é “em si”. Só podemos saber como o mundo é “para mim” e, portanto, para todos os homens. A diferença que Kant estabelece entre as “coisas em si” e as “coisas para nós” é a sua mais importante contribuição para a filosofia. Nunca seremos capazes de saber com toda a certeza como as coisas são “em si”. Só podemos saber como elas “se mostram” a nós. Em compensação, podemos dizer com certeza como as coisas serão percebidas pela razão humana.
— E isto está certo?
— De manhã, antes de sair de casa, você não pode saber o que vai ver e vivenciar no dia que está começando. Entretanto, você pode saber que o que verá e viverá será percebido como um evento no tempo e no espaço. Além disso, você pode estar certa de que a lei da causa e efeito terá validade, simplesmente porque você a carrega consigo enquanto parte da sua consciência.
— E poderia ser de outro jeito?
— Sim. Nossos sentidos poderiam ser outros, completamente diferentes, e também poderíamos perceber o tempo e o espaço de uma maneira completamente diferente. Além disso, poderíamos ser feitos de modo a não buscar a causa para os acontecimentos à nossa volta.
— Você tem um exemplo?
— Imagine um gato deitado no chão do quarto. Imagine, então, uma bola rolando pelo chão. O que o gato faz neste caso?
— Já fiz esta experiência. O gato corre atrás da bola.
— Certo. Agora imagine que, em vez do gato, você esteja no quarto. Se de repente você vê uma bola rolando, você sai correndo atrás dela?
— Primeiro eu me viro para ver de onde a bola veio.
— Sim, isto porque você é uma pessoa e quer necessariamente saber a causa daquele acontecimento. A lei da causalidade faz parte, portanto, da sua constituição.
— Mas isso é verdade mesmo?
— Hume tinha explicado que não podemos nem sentir, nem provar as leis da natureza. Kant se sentia muito pouco à vontade em relação a esta afirmação. Ele acreditava poder provar a validade absoluta das leis da natureza, à medida que mostrasse que quando falamos em leis da natureza estamos falando, na verdade, de leis do conhecimento humano.
— Será que um bebê também se viraria para tentar descobrir quem tinha empurrado a bola?
— Provavelmente não. Mas Kant diz que, numa criança, a razão ainda não está plenamente desenvolvida, porque ela ainda não dispõe de material sensitivo para trabalhar. De um lado, temos as condições exteriores, sobre as quais nada podemos saber antes de as termos percebido. Podemos chamá-las de material do conhecimento. De outro, temos as condições intrínsecas ao próprio homem: por exemplo, o fato de que percebemos tudo como eventos no tempo e no espaço e como processos sujeitos a uma imutável lei da causalidade. A isto podemos chamar de forma do conhecimento.
(…)
[Alberto continuou:]
— Kant também chamou a atenção para o fato de haver limites bem claros para o que o homem pode saber. Podemos dizer que são os óculos da razão que nos impõem esses limites.
— Como assim?
— Você ainda deve se lembrar de quais tinham sido as “grandes” questões filosóficas dos filósofos anteriores a Kant: se o homem possui uma alma imortal, se Deus existe, se a natureza é composta por unidades mínimas indivisíveis, se o universo é infinito ou não.
— Sim.
— Kant achava que o homem jamais seria capaz de chegar a um conhecimento seguro acerca dessas coisas. Isto não significa que ele não queria se ocupar dessas questões. Ao contrário. Se ele simplesmente tivesse se recusado a abordar essas questões, dificilmente poderíamos chamá-lo de filósofo.
— E o que ele fez?
— Sim, agora você vai precisar de um pouco de paciência. Kant achava que precisamente nessas grandes questões filosóficas a razão operava fora dos limites daquilo que nós, seres humanos, podemos compreender. Por outro lado, uma característica intrínseca à nossa natureza, à nossa razão, seria justamente um impulso básico no sentido de colocar estas perguntas. Só que quando perguntamos, por exemplo, se o universo é finito ou infinito, na verdade estamos querendo saber algo sobre um todo do qual nós mesmos somos apenas uma (ínfima) parte. Assim, nunca poderemos conhecer inteiramente este todo.
— Por que não?
— Quando você colocou os óculos de lentes vermelhas, ficamos sabendo que, para Kant, existem dois elementos que contribuem para o nosso conhecimento do mundo.
— Sim, a experiência dos sentidos e a razão.
— Isso mesmo. O material para o nosso conhecimento nos é dado através dos sentidos, mas este material se adapta, por assim dizer, às características de nossa razão. Uma dessas características, por exemplo, é a de perguntar pela causa dos acontecimentos.
— Por exemplo, querer saber quem atirou a bola que vem rolando pelo quarto.
— Ou qualquer outra coisa. Mas quando nos perguntamos de onde vem o mundo, e discutimos algumas respostas possíveis, a consciência fica como que parada, pois não possui qualquer material sensorial para “processar”; não possui o registro de qualquer experiência que possa retrabalhar. Isto porque, como dissemos, nunca iremos experimentar toda a enorme realidade de que somos apenas uma ínfima parte.
— De certa forma, somos uma pequena parte da bola que rola no chão. E por isso não podemos saber de onde ela vem.
— Só que sempre continuará sendo uma característica da razão humana perguntar de onde a bola vem. Por esta razão é que perguntamos e perguntamos a nos esforçamos a mais não poder para encontrar respostas a estas graves perguntas. O problema é que não temos nada de sólido a que nos apegar. Nunca conseguimos chegar a respostas seguras, pois nossa razão está em ponto morto, por assim dizer.
— Conheço muito bem esse sentimento.
— Nas grandes questões que concernem à realidade como um todo, dois pontos de vista exatamente opostos parecerão sempre igualmente prováveis e igualmente improváveis.
— Exemplos, por favor.
— Faz tanto sentido dizer que o mundo teve um começo no tempo, quanto dizer que não houve começo algum. A razão não é capaz de decidir sobre as duas possibilidades, pois não é capaz de “abarcar” nenhuma delas. Podemos afirmar que o mundo sempre existiu, mas será que alguma coisa pode ter sempre existido sem nunca ter tido um começo? E se adotamos o ponto de vista oposto e dizemos que o mundo teve de começar em algum momento, isto significa que ele teve de surgir do nada, senão estaríamos falando apenas da passagem de um estado para outro. E, nesse caso, pode alguma coisa surgir do nada, Sofia?
— Não, as duas possibilidades são igualmente inconcebíveis. E, apesar disso, uma deve estar certa e a outra errada.
— Você ainda se lembra de que Demócrito e os materialistas disseram que a natureza consiste em minúsculas unidades, a partir das quais tudo se compõe. Outros, como Descartes por exemplo, acreditavam que a realidade estendida podia ser dividida em partes cada vez menores. Qual dos dois tinha razão?
— Ambos… e também nenhum dos dois.
— Continuando, muitos filósofos disseram que a liberdade do homem era uma de suas principais características. Ao mesmo tempo, encontramos filósofos, como os estóicos e Spinoza, por exemplo, para quem tudo no mundo acontece necessariamente por força das leis da natureza. Também nesse ponto Kant acha que a razão do homem não pode emitir um julgamento seguro.
— Ambos os pontos de vista são igualmente sensatos e insensatos.
— E, por fim, também não podemos provar a existência de Deus com nossa razão. Aqui, racionalistas como Descartes, por exemplo, tentaram provar que deve haver um Deus, simplesmente porque temos em nós a idéia de um ser perfeito. Outros, dentre eles Aristóteles e são Tomás de Aquino, defendiam a opinião de que deveria haver um Deus, porque tudo precisa ter uma causa impulsora.
— E o que achava Kant?
— Ele rejeitava ambas as provas da existência de Deus. Nem a razão, nem a experiência são capazes de embasar com segurança a afirmação de que Deus existe. Para a razão, é tanto provável quanto improvável que Deus exista.
— Mas no começo você disse que Kant queria salvar os fundamentos da fé cristã.
— Sim, e de fato ele garante espaço para a religião em seu pensamento justamente naquela zona à qual não conseguem chegar nem a nossa experiência, nem a nossa razão. E justamente este vácuo pode ser preenchido pela fé religiosa.
— E foi assim que ele salvou o cristianismo?
— Podemos dizer que sim. É preciso observar que Kant era protestante. Desde a Reforma, um traço do cristianismo protestante era justamente a fé. Desde o início da Idade Média, a Igreja católica acreditava mais na razão como um pilar da fé.
— Entendo.
— Mas Kant foi mais além do que simplesmente constatar que estas questões mais abrangentes deveriam ser deixadas à fé do homem. Ele achava que as premissas de que a alma é imortal, de que existe um Deus e de que o homem possui livre-arbítrio eram pressupostos de certa forma imprescindíveis para a moral do homem.
— Isso se parece com Descartes. Primeiro ele reflete de forma bastante crítica sobre o que podemos ou não compreender. Depois coloca Deus e tudo o mais para dentro de casa pela porta dos fundos.
— Em contraposição a Descartes, porém, Kant afirma expressamente que não foi a razão, e sim a fé, que o levou até a este ponto. Ele mesmo chama de postulado prático a fé numa alma imortal, em Deus e no livre-arbítrio do homem.
— O que significa isto?
— Postular alguma coisa significa afirmar alguma coisa que não se pode provar. Por postulado prático Kant entende algo que precisa ser afirmado para a “prática” do homem; para o seu agir e, portanto, para a sua moral. “É moralmente necessário supor a existência de Deus”, dizia ele.
(…)
[Alberto continuou:]
— (…) Antes de terminarmos nossa conversa de hoje, ainda preciso falar um pouco sobre a ética de Kant.
— Então se apresse, pois tenho de ir para casa.
— O ceticismo de Hume quanto ao que a razão e os sentidos realmente são capazes de nos dizer levou Kant a repensar muitas das questões mais importantes da vida. E isto também vale para o campo da moral.
— Hume disse que não podemos provar o que é certo e o que é errado, pois não podemos tirar nossas conclusões saltando de uma “oração do ser” para uma do “dever ser”.
— Hume achava que nem a nossa razão, nem as nossas experiências podiam estabelecer a diferença entre certo e errado. Para ele, isto era tarefa exclusiva dos nossos sentimentos. Aos olhos de Kant, este era um fundamento frágil demais.
— Dá para entender muito bem.
— Desde o início, Kant tinha a forte impressão de que a diferença entre certo e errado tinha de ser mais do que uma questão de sentimento. Nesse ponto ele concordava com os racionalistas, para quem a diferenciação entre certo e errado era algo inerente à razão humana. Todas as pessoas sabem o que é certo e o que é errado; e não o sabem porque aprenderam, e sim porque isto é algo inerente à nossa razão. Kant acreditava que todos os homens possuem uma razão prática, que nos diz a cada um o que é certo e o que é errado no campo da moral.
— Ela é uma coisa inata, portanto.
— A capacidade de distinguir entre certo e errado é tão inata quanto todas as outras propriedades da razão. Todas as pessoas entendem os acontecimentos do mundo como causados por alguma coisa e todos têm também acesso à mesma lei moral universal. Esta lei moral tem a mesma e absoluta validade das leis do mundo físico. Ela é tão basilar para a nossa vida moral quanto é fundamental para a nossa razão o fato de que tudo possui uma causa, ou de que sete mais cinco são doze.
— E o que diz esta lei moral?
— Uma vez que ela é anterior a toda e qualquer experiência, ela é “formal”. Isto significa que ela não está ligada a um grupo específico de opções na esfera da moral. Ela vale para todas as pessoas, em todas as sociedades, em todos os tempos. Ela não diz, portanto, o que você deve fazer nesta ou naquela situação. Ela diz como você deve se comportar em todas as situações.
— Mas que sentido tem uma lei moral que não nos diz como nos devemos comportar em determinada situação?
— Kant formula sua lei moral como um imperativo categórico. Por imperativo categórico Kant entende que a lei moral é “categórica”, ou seja, vale para todas as situações. Além disso, ela é também um “imperativo”, uma “ordem”, portanto, e também é absolutamente inevitável.
— Hmm…
— Entretanto, Kant formula o seu imperativo categórico de várias maneiras. Primeiro ele diz que devemos sempre agir de modo a podermos desejar que a regra a partir da qual agimos se transforme numa lei geral. Literalmente, Kant diz: “Age apenas segundo aquelas máximas através das quais possas, ao mesmo tempo, querer que elas se transformem numa lei geral”.
— Quando faço alguma coisa, preciso estar certa de que posso desejar que todos os outros façam a mesma coisa na mesma situação.
— Exatamente. Só assim você estará agindo em consonância com a lei moral interna. Kant formulou o imperativo categórico de modo a que nós tratemos as outras pessoas sempre como um fim em si mesmo, e não como um simples meio para se chegar a outra coisa.
— Não devemos, portanto, “usar” as outras pessoas em proveito próprio.
— Não, pois todas as pessoas são um fim em si mesmas. Mas isto não vale apenas para os outros; vale também para nós. Da mesma forma, não devemos usar nós mesmos como meios para se chegar a outra coisa.
— Isso me lembra um pouco a “regra de ouro”: “não faças para os outros aquilo que não desejas para ti”.
— Sim, e esta é uma diretriz formal que compreende basicamente todas as possibilidades de escolhas éticas. Podemos dizer que esta regra de ouro expressa, de certa maneira, o que Kant chamou de lei moral.
— Mas tudo isto não passa de afirmações. Hume na certa tinha razão quando disse que não podemos provar com nossa razão o que é certo e o que é errado.
— Kant considerava a lei moral tão absoluta e universal quanto a lei da causalidade, por exemplo. Esta também não pode ser provada pela razão, e nem por isso deixa de ser inevitável. Ninguém contestaria isto.
— Começo a sentir que estamos falando mesmo é sobre a consciência. Todo mundo tem uma consciência, não tem?
— Sim, quando Kant descreve a lei moral, o que ele descreve é a consciência humana. Não podemos provar o que a consciência diz, mas sabemos o que ela diz.
— Às vezes sou muito simpática e dócil para com outras pessoas, simplesmente porque sei que aquilo será bom para mim. Dessa forma, posso ser querida dos outros, por exemplo.
— Mas se você é simpática e dócil para com os outros apenas para se tornar querida das pessoas, então você não está agindo de acordo com a lei moral. Talvez você esteja agindo apenas superficialmente de acordo com ela, o que já é alguma coisa, mas aquilo que se pode chamar de ação moral tem de ser o resultado do esforço em superar-se a si mesmo. Só quando você faz alguma coisa por considerar seu dever seguir a lei moral é que você pode falar de uma ação moral. Por isso é que a ética de Kant também é freqüentemente chamada de ética do dever.
— Posso considerar meu dever conseguir dinheiro para os que não têm o que comer ou onde morar.
— Sim, e o importante é que você o faça porque considera isto certo. Mesmo que o dinheiro que você conseguiu ajuntar se perca a caminho e jamais chegue a saciar a fome daqueles a quem se destinava, ainda assim você seguiu a lei moral. A sua atitude estava correta e a atitude correta é para Kant decisiva para que possamos chamar algo de moralmente correto, não as conseqüências da ação. Por isso é que também chamamos a ética de Kant de ética da atitude.
— Por que era tão importante para ele saber quando exatamente estamos agindo segundo a lei moral? Não é muito mais importante que o que fazemos sirva às outras pessoas?
— Sim, Kant certamente concordaria com você. Mas só quando nós mesmos sabemos que estamos agindo segundo a lei moral é que agimos em liberdade.
— Só porque obedecemos a uma lei estamos agindo em liberdade? Isto não é um pouco estranho?
— Kant acha que não. Você ainda se lembra de que ele teve de “afirmar” ou “postular” que o homem possui livre-arbítrio. Este é um ponto importante, pois Kant também acredita que tudo segue a lei da causalidade. Nesse caso, como poderíamos ter livre-arbítrio?
— Boa pergunta.
— Aqui Kant divide a humanidade em duas partes, e nesse sentido ele lembra Descartes, para quem o homem era um ser dual composto de um corpo e de uma razão. Para Kant, enquanto seres sensíveis, estamos absolutamente entregues às imutáveis leis da causalidade. Não decidimos o que sentimos: os sentimentos e sensações aparecem forçosamente e nos marcam, queiramos ou não. Mas o homem não é apenas um ser dotado de sentidos. Ele é também um ser dotado de razão.
— Explique.
— Enquanto seres dotados de sentidos pertencemos inteiramente à ordem da natureza; por conseqüência, também estamos sujeitos à lei da causalidade. Desse ponto de vista, não possuímos livre-arbítrio. Como seres dotados de razão, porém, também temos em nós uma parte do mundo “em si”, ou seja, do mundo que existe independentemente de nossos sentidos. Somente quando seguimos nossa “razão prática”, que nos habilita a fazer uma escolha moral, é que possuímos livre-arbítrio. Isto porque ao nos curvarmos à lei moral somos nós mesmos que estamos determinando a lei que vai nos governar.
— Sim, de certa forma isto está certo. Afinal, sou eu, ou alguma coisa em mim, quem diz que não devo maltratar os outros.
— Quando você mesma decide não maltratar mais os outros, ainda que isto venha a ferir os seus próprios interesses, nesse momento você está agindo em liberdade.
— De qualquer forma, ninguém é particularmente livre e independente quando segue apenas os seus desejos.
— A gente pode se escravizar a toda a sorte de coisas. Podemos nos tornar escravos do nosso próprio egoísmo, por exemplo. Ir além de seus próprios desejos e vícios é uma coisa que requer exatamente autonomia e liberdade.
— E quanto aos animais? Eles só seguem a sua vontade e a sua necessidade. Isto significa que eles não têm a liberdade de seguir uma lei moral?
— Isso mesmo. E é exatamente esta liberdade que faz de nós seres humanos.
— Agora entendi.
— Para concluir, podemos dizer que Kant conseguiu encontrar uma saída para o impasse a que a filosofia tinha chegado através da briga entre racionalistas e empíricos. Com Kant termina, assim, toda uma épica da história da filosofia. Ele morreu em 1804, no início da época que chamamos de Romantismo. A lápide de seu túmulo em Königsberg traz inscrita uma de suas citações mais conhecidas: “Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e freqüentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”. Aí estão os grandes enigmas que o moveram e à sua filosofia.
CAPÍTULO 26 (EXCERTO)
O ROMANTISMO
(Páginas 368-378.)
(…)
Também desta vez Alberto Knox estava sentado à soleira da porta quando Sofia chegou.
— Sente-se aqui — disse ele, e foi logo entrando no assunto. — Até agora falamos do Renascimento, do Barroco e do Iluminismo. Hoje vamos conversar sobre o Romantismo, que podemos chamar de a última grande época cultural da Europa. Estamos chegando ao fim de uma longa história, Sofia.
— O Romantismo durou tanto tempo assim?
— Ele começou em fins do século XVIII e durou até meados do século passado [XIX]. Depois de 1850, não faz muito sentido falarmos de épocas inteiras que compreendam igualmente a poesia, a filosofia, a arte, a ciência e a música.
— O Romantismo foi uma dessas épocas?
— Sim, e, como dissemos, a última na Europa. Ele começou na Alemanha como reação à parcialidade do culto à razão apregoado pelo Iluminismo. Depois de Kant e de sua fria filosofia da razão, os jovens alemães finalmente podiam respirar aliviados.
— E o que eles colocaram no lugar da razão?
— As novas palavras de ordem eram “sentimento”, “imaginação”, “experiência” e “anseio”. Alguns pensadores do Iluminismo também tinham alertado para a importância dos sentimentos, como Rousseau, por exemplo, e criticado o fato de os iluministas enfatizarem apenas a razão. Agora, no Romantismo, esta corrente secundária se transformou no veio principal da vida cultural alemã.
— Quer dizer que a popularidade de Kant não durou muito tempo?
— Sim e não. Muitos românticos chegaram a se considerar sucessores de Kant, pois Kant havia dito que há limites para o que podemos saber. Além disso, ele também havia mostrado o quanto é importante a contribuição do nosso eu para o processo de aquisição de conhecimento. E agora, no Romantismo, o indivíduo encontrava o caminho livre, por assim dizer, para fazer a sua interpretação pessoal da vida. Os românticos professavam uma glorificação quase irrestrita do eu. A essência da personalidade romântica é, por isso mesmo, o gênio do artista.
— E houve muitos gênios durante esta época?
— Alguns. Beethoven, por exemplo. Sua música nos mostra uma pessoa que consegue exprimir seus próprios sentimentos e anseios. Nesse sentido, Beethoven foi um artista “livre”, ao contrário de mestres do Barroco como Bach e Handel, que compunham suas obras em louvor a Deus e freqüentemente segundo rígidas normas de composição.
— De Beethoven eu só conheço a Sonata ao luar e a Quinta sinfonia.
— Ouvindo essas peças dá para perceber como Beethoven conseguiu dar vazão a todo o seu romantismo na Sonata ao luar e a toda a sua dramaticidade na Quinta sinfonia.
— Em algum momento você disse que os humanistas do Renascimento também eram individualistas.
— Sim. Há muitos paralelos entre o Renascimento e o Romantismo. Um deles é a importância que se dá ao papel da arte no processo de conhecimento humano. Nesse ponto, a contribuição de Kant foi muito importante. Em sua estética, Kant investigou o que acontece quando somos arrebatados por algo de belo. Uma obra de arte, por exemplo. Quando nos voltamos para uma obra de arte sem qualquer outro interesse senão o de “vivenciá-la” o mais intensamente possível, nós ultrapassamos as fronteiras do que podemos “saber”. Ultrapassamos, portanto, as fronteiras de nossa razão.
— Quer dizer que o artista pode nos dizer coisas que o filósofo não é capaz de nos dizer?
— Era isto o que achavam Kant e os românticos. Para Kant, o artista brinca livremente com sua capacidade de cognição. O poeta Friedrich Schiller desenvolveu um pouco mais os pensamentos de Kant. Schiller disse que o processo de criação do artista é uma atividade lúdica e que só nela o homem é verdadeiramente livre, pois ele próprio determina suas regras. Os românticos acreditavam, portanto, que só a arte era capaz de nos aproximar do “indizível”. Alguns levaram esta reflexão às últimas conseqüências e chegaram a comparar o artista com Deus.
— Provavelmente porque o artista cria a sua própria realidade, exatamente como Deus criou o mundo.
— Costumava-se dizer que o artista possuía uma espécie de imaginação criadora do mundo. Em seu êxtase artístico, ele seria capaz de experimentar um estado em que as fronteiras entre sonho e realidade desaparecem. O poeta Novalis, um dos jovens gênios do Romantismo, disse: “O mundo se transforma em sonho e o sonho em mundo”. Novalis escreveu um romance ambientado na Idade Média e intitulado Heinrich von Ofterdingen, que ficou inacabado quando o autor faleceu no ano de 1801, mas que foi de grande importância para o Romantismo. Nele encontramos o jovem Heinrich, que procura incansavelmente a “flor azul” que um dia viu em sonho e por quem se apaixonou desde então. O romântico inglês Coleridge expressou assim o mesmo pensamento:
E se você dormisse? E se você sonhasse? E se, em seu sonho, você fosse ao Paraíso e lá colhesse uma flor bela e estranha? E se, ao despertar, você tivesse a flor entre as mãos? Ah, e então?
— Lindo.
— Este anseio por algo longínquo e inatingível foi um traço típico dos românticos. Vem daí o seu forte interesse por tempos passados, como a Idade Média, por exemplo, que no Iluminismo ainda era tida como uma época de trevas, mas que agora voltava a ser energicamente revalorizada; ou então por culturas distantes, por exemplo a “terra do sol nascente” e toda a sua mística. Os românticos sentiam-se atraídos pela noite, pelo “crepúsculo”, por antigas ruínas e pelo sobrenatural. Interessava-lhes muito aquilo que costumamos chamar de o lado oculto da vida: o obscuro, o misterioso, o místico.
— Acho que deve ter sido uma época muito interessante. Mas quem eram esses românticos?
— O Romantismo foi sobretudo um fenômeno urbano. Precisamente na primeira metade do século passado [XIX], a cultura urbana vivia um período de apogeu em muitas regiões da Europa, e também na Alemanha. Os “românticos” típicos eram jovens, muitas vezes estudantes, embora nem sempre fossem alunos exemplares. Eles tinham uma postura marcadamente antiburguesa e chamavam os “simples mortais”, a polícia ou a locatária dos quartos em que moravam, de “filisteus”, ou simplesmente de “inimigos”.
— Pois eu não alugaria um quarto para um romântico.
— Por volta de 1800, os românticos da primeira geração eram muito jovens. Desse ponto de vista, podemos chamar o movimento romântico de a primeira revolta de jovens da Europa. Podemos até mesmo traçar paralelos claros entre eles e a cultura hippie que viria cento e cinqüenta anos mais tarde.
— Você está se referindo a flores, cabelos compridos, sons de guitarra e ociosidade?
— Sim. Dizia-se que a ociosidade era o ideal do gênio e a indolência a primeira virtude do romântico. Era dever do romântico viver a vida, ou imaginar-se distante dela. As obrigações e tarefas cotidianas eram preocupações dos filisteus.
— Houve românticos na Noruega?
— Wergeland e Welhaven são dois exemplos. Wergeland defendia também muitos ideais iluministas, mas sua vida foi a de um típico romântico. Ele era um galanteador e vivia apaixonado, só que a Stella a quem dedicava seus poemas, e agora temos um traço tipicamente romântico, era tão distante e inatingível quanto a “flor azul” de Novalis. O próprio Novalis apaixonou-se por uma jovem de apenas catorze anos. Ela morreu quatro dias após completar quinze anos, mas Novalis a amou por toda a vida.
— Ela morreu mesmo só quatro dias depois de completar quinze anos?
— Sim…
— Estou fazendo quinze anos e quatro dias hoje…
— É verdade.
— Como ela se chamava?
— Sophie.
— O quê?
— Sim, era este…
— Você está me assustando! Será que isto é uma coincidência?
— Não faço a menor idéia. Mas que ela se chamava Sophie, isto se chamava.
— Continue contando.
— Novalis só viveu até os vinte e nove anos. Ele foi mais um dos chamados “mortos jovens”, pois os românticos morriam muito cedo, freqüentemente de tuberculose. Alguns cometiam suicídio…
— Deus meu!
— E os que chegavam a envelhecer geralmente deixavam de ser românticos. Assim, aos trinta anos mais ou menos, muitos abandonavam a vida de romântico e passavam a ser totalmente burgueses e conservadores.
— Quer dizer, passavam para o lado do inimigo.
— Sim, pode ser. Mas nós estávamos falando do amor na época do Romantismo: a grande obra sobre o amor inatingível é o romance de Goethe Os sofrimentos do jovem Werther, de 1774. O romance termina quando o jovem Werther se suicida porque não pode ter aquela que ama…
— Mas isto não era ir longe demais?
— Bem, os contemporâneos de Goethe identificaram-se com os motivos que tinham levado Werther ao suicídio. Por toda a parte em que o romance circulou, os índices de suicídio aumentaram rapidamente. Na Dinamarca e na Noruega, Werther chegou mesmo a ser proibido por um bom tempo. Ser um romântico autêntico não era coisa das mais seguras. Havia sentimentos e emoções fortes em jogo.
— Quando você diz “romântico”, penso naqueles quadros que retratam grandes paisagens, com florestas misteriosas e uma natureza exuberante… geralmente envolta em neblina.
— De fato, uma das características mais importantes do Romantismo era o amor pela natureza e por sua mística. Este traço também era um fenômeno urbano, como dissemos, pois dificilmente ele apareceria em zonas rurais. Você certamente ainda se lembra de que a expressão “De volta à natureza!” é de Rousseau. Só agora, no Romantismo, é que esta palavra de ordem ganha impulso. O Romantismo também foi uma reação à visão de mundo mecanicista do Iluminismo. Não é sem razão que se diz que o Romantismo trouxe consigo um renascimento do antigo pensamento holístico.
— Me explique isto, por favor.
— Isto significa, sobretudo, que a natureza voltou a ser vista como um todo, como uma unidade. Nesse sentido, os românticos se reportavam não apenas a Spinoza, mas também a Plotino e aos filósofos do Renascimento tais como Jakob Böhme e Giordano Bruno. Todos eles tinham experimentado um “eu” divino na natureza.
— Eles foram panteístas…
— Descartes e Hume tinham estabelecido uma nítida divisão entre o eu e a realidade “estendida”. Kant também colocara uma divisão estanque entre o eu cognitivo e a natureza “em si”. Agora a natureza era vista como um único e grande “eu”. Os românticos usavam também expressões como a “alma do mundo” ou o “espírito do mundo”.
— Entendo.
— O filósofo mais importante do Romantismo foi Friedrich Wilhelm Schelling, que viveu de 1775 a 1854. Ele tentou suprimir a divisão entre “espírito” e “matéria”. Schelling dizia que a natureza inteira, tanto a alma humana quanto a realidade física, era expressão de um único Deus ou do “espírito do mundo”.
— Sim, isto me lembra Spinoza.
— Para Schelling, a natureza era o espírito visível, e o espírito a natureza invisível, pois por toda a parte podemos perceber e sentir a ação de um espírito ordenador, estruturador. Para ele, a matéria era uma espécie de inteligência adormecida.
— Isto você precisa explicar um pouco melhor.
— Schelling via o espírito do mundo na natureza, mas também via este espírito na consciência humana. Nesse sentido, tanto a natureza física quanto a consciência humana seriam expressão de uma única e mesma coisa.
— Sim, por que não?
— O espírito do mundo deve ser procurado, portanto, tanto na natureza quanto dentro de cada um. Por isso Novalis pôde dizer que “o caminho do mistério aponta para dentro”. Com isto ele queria dizer que o homem traz o universo inteiro dentro de si e que a melhor forma de se vivenciar o mistério do mundo seria mergulhar em si mesmo.
— É um belo pensamento.
— Para muitos românticos, a filosofia, a pesquisa natural e a poesia formavam uma unidade superior. Se alguém estivesse sentado em seu quarto escrevendo inspirados poemas, ou se estudasse a vida das flores e a composição das pedras, estas coisas seriam apenas duas faces da mesma moeda, pois a natureza não era um mecanismo morto, mas o espírito vivo do mundo.
— Se você continuar falando, vou acabar me tornando uma romântica.
— O pesquisador natural norueguês Henrik Steffens, que Wergeland chamava de “a folha de louro que o vento soprou da Noruega”, porque Steffens se mudou para a Alemanha, foi a Copenhague em 1801 para fazer palestras sobre o Romantismo alemão. Ele caracterizou o movimento romântico com as seguintes palavras: “Cansados da eterna luta por abrir um caminho pela matéria bruta, escolhemos outro caminho e nos lançamos, apressados, aos braços do infinito. Mergulhamos em nós mesmos e criamos um novo mundo”.
— Como você conseguiu aprender tudo isto de cor?
— Isto é só um detalhe sem importância, Sofia.
— Continue!
— Schelling também via na natureza uma evolução que ia das pedras até a consciência humana. Nesse sentido, ele chamava a atenção para estágios de evolução que iam da natureza inanimada até às formas de vida mais complexas. A visão romântica da natureza era absolutamente marcada pela concepção de natureza como um organismo, como uma unidade, portanto, capaz de desenvolver ao longo do tempo as potencialidades que lhe são inerentes. A natureza é como uma planta que desenvolve folhas e florescências. Ou como um poeta que cria seus poemas.
— Isto não lembra um pouco Aristóteles?
— Claro que lembra. A filosofia romântica apresenta traços tanto aristotélicos, quanto neoplatônicos. Aristóteles tinha uma concepção mais orgânica dos processos naturais do que os materialistas mecanicistas.
— Entendo.
— Podemos encontrar pensamentos análogos também numa nova visão de história. Para os românticos, foram de grande importância as reflexões do filósofo da história Gottfried Herder, que viveu de 1744 até 1803. Para ele, o curso da história era o resultado de um processo voltado para um objetivo específico. Justamente por isto chamamos de “dinâmica” sua visão da história. Os filósofos do Renascimento tinham freqüentemente uma visão estática da história. Para eles, só o que havia era uma única razão universal, que se concretizava às vezes mais, às vezes menos, nas diferentes épocas. Herder, ao contrário, explica que cada época da história tem um valor que lhe é peculiar e cada povo a sua forma especial de ser, sua própria “alma”. A questão seria saber se somos capazes de penetrar em outros tempos e em outras culturas para entendê-los, e como podemos fazer isto.
— Assim como às vezes temos de nos colocar no lugar de outra pessoa para entendê-la melhor, também precisamos “entrar” em outra cultura para entendê-la melhor.
— Hoje em dia, isto é uma coisa que se tornou praticamente evidente. Na época do Romantismo, porém, esta visão era nova. Desse ponto de vista, o Romantismo contribuiu para intensificar o sentimento de identidade própria de cada nação. Não é por acaso que, na Noruega, a luta pela independência nacional tenha eclodido exatamente em 1814.
— Entendo.
— Devido ao fato de o Romantismo ter trazido consigo uma reorientação em tantos setores, costumamos distinguir duas formas de Romantismo. Por Romantismo entendemos, de um lado, aquilo que podemos chamar de Romantismo universal. Nesse sentido, estamos pensando nos românticos que se preocupavam com a natureza, a alma do mundo e o gênio artístico. Esta forma de Romantismo veio primeiro e atingiu o seu apogeu por volta de 1800, sobretudo na cidade alemã de Iena.
— E a outra forma de Romantismo?
— Foi o chamado Romantismo nacional. Ele veio um pouco mais tarde e teve Heidelberg como centro. Os românticos nacionais interessavam-se sobretudo pela história do povo, sua língua e também pela assim chamada cultura “popular”. Pois o povo também era visto como um organismo preocupado em desenvolver as possibilidades que lhe eram inerentes. Exatamente como a natureza e a história.
— Diga-me onde moras e te direi quem és.
— O que unia essas duas vertentes do Romantismo era sobretudo a palavra-chave “organismo”. Todos os românticos consideravam um organismo vivo tanto uma planta quanto todo um povo e até mesmo uma obra poética. Por isto é que também não há um limite bem definido entre as duas vertentes. O espírito do mundo estava presente tanto no povo e na cultura popular, quanto na natureza e na arte.
— Entendo.
— Herder já havia recolhido canções populares de muitos países e dado à sua coletânea o eloqüente título de “As vozes dos povos em canções”. Ele chegou mesmo a chamar os contos populares de “a língua materna dos povos”. Em Heidelberg começou, então, um trabalho de coleta de canções e contos populares. Você na certa já ouviu falar dos contos dos irmãos Grimm, não ouviu?
— Claro: Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Gata Borralheira e João e Maria…
— E muitos, muitos outros. Na Noruega tivemos Asbjørnsen e Moe, que percorreram o país de ponta a ponta em busca de material para a sua coletânea dos “Contos do povo”. Realizar este trabalho era como colher em abundância um fruto suculento, cujo sabor delicioso e nutritivo acabasse de ser descoberto. E era preciso ser rápido: os frutos já estavam começando a cair das árvores. Landstad reuniu canções populares e Ivar Aasen reuniu, por assim dizer, a própria língua norueguesa. Os mitos e os poemas épicos da era pagã também foram redescobertos em meados do século XIX. E os compositores de quase toda a Europa passaram a usar em suas composições os temas de canções populares, entendidas aqui como canções folclóricas. Desta forma, eles tentavam construir uma ponte entre a chamada “música artística” e a música popular.
— Música artística?
— Estamos chamando de “música artística” aquela composta por determinado compositor, quer dizer, a música que era fruto da imaginação de um artista. A música de Beethoven, por exemplo. A música popular, por outro lado, não era criada por um compositor em particular, mas pelo povo inteiro, por assim dizer. Tratava-se, neste caso, de uma música cujo autor e data de composição não podiam ser identificados com precisão. Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos estabelecer a diferença entre os contos populares e os “contos artísticos”, também chamados por alguns de “contos fantásticos”.
— O que são esses “contos artísticos”?
— São contos que usam a estrutura dos contos populares, mas que são fruto da imaginação de determinado escritor. Por exemplo, os contos de Hans Christian Andersen. O gênero dos contos fantásticos foi cultivado com especial apreciação pelos românticos. Um dos mestres alemães nesse gênero foi E. T. A. Hoffmann.
— Acho que já ouvi falar dos “Contos de Hoffmann”.
— O conto fantástico era o ideal literário dos românticos, mais ou menos como o teatro foi a forma artística preferida do Barroco. Isto porque no conto o escritor podia usar livre e ludicamente toda a sua força criativa.
— Ele podia brincar de Deus num mundo de ficção.
— Exatamente. Bem, agora talvez fosse o caso de fazermos um resumo de tudo o que dissemos.
— Por favor.
— Os filósofos do Romantismo concebiam o que chamavam de “alma do mundo” como um “eu” capaz de criar todas as coisas do mundo num estado semelhante ao do sonho. O filósofo Johann Gottlieb Fichte disse que a natureza provinha de uma força imaginativa superior, inconsciente. Schelling afirmou expressamente que o mundo “era em Deus”. Para ele, Deus era consciente de alguma coisa, mas havia aspectos da natureza que representavam o inconsciente em Deus, pois Deus também teria um “lado obscuro”.
— Este pensamento é assustador e fascinante ao mesmo tempo. Ele me faz pensar em Berkeley.
— Mais ou menos semelhante era o modo como se concebia a relação entre o poeta e sua obra. O conto fantástico dava ao escritor a possibilidade de explorar ao seu bel-prazer a força de sua imaginação criativa; a força de uma imaginação que era capaz de criar mundos. E nem sempre o ato da criação acontecia de forma muito consciente. Não raro o escritor romântico tinha a sensação de que sua história nascia de uma força que estava além dele. Algo como escrever sob um estado de transe hipnótico, se você entende o que digo.
— É mesmo?
— Ao mesmo tempo, porém, o escritor também podia romper esta ilusão, intervindo na narrativa com breves e irônicos comentários endereçados ao leitor. Tudo isto para lembrá-lo de que o conto fantástico não passava de fantasia.
— Entendo.
— Assim procedendo, o escritor podia lembrar o leitor de que sua própria existência também era “fantástica”. Esta forma de se romper a ilusão é comumente chamada de ironia romântica. O escritor norueguês Hendrik Ibsen, por exemplo, colocou a seguinte frase na boca de uma das personagens de sua peça Peer Gynt: “Mas não se pode morrer no meio do quinto ato”.
— Acho que entendo o que há de estranho na fala desta personagem. Ela está dizendo claramente que não passa de imaginação.
— Esta afirmação é tão paradoxal, que acho que deveríamos usá-la para encerrar esta seção.
CAPÍTULO 27 (EXCERTO)
HEGEL
(Páginas 385-395.)
(…)
Alberto e Sofia sentaram-se nas poltronas junto à janela que dava vista para o lago.
— Georg Wilhelm Friedrich Hegel foi um legítimo filho do Romantismo — começou Alberto. — Poderíamos até dizer que ele seguiu fielmente a evolução do espírito alemão. Hegel nasceu em 1770, em Stuttgard, e aos dezoito anos começou a cursar teologia em Tübingen. A partir de 1799, começou a trabalhar com Schelling em Iena, justamente quando e onde o movimento romântico viveu seu período de crescimento mais explosivo. Depois de ter lecionado em Iena, Hegel passou a trabalhar como professor universitário em Heidelberg, centro do Romantismo nacional alemão. Por fim, em 1818, tornou-se professor em Berlim, exatamente na época em que esta cidade começou a se transformar no centro intelectual da Europa. Em novembro de 1831, Hegel morreu de cólera. A esta altura, porém, o “hegelianismo” já tinha muitos adeptos em quase todas as universidades alemãs.
— Quer dizer que ele presenciou quase tudo o que aconteceu de importante.
— Sim, e o mesmo vale também para a sua filosofia. Nela, Hegel reuniu e desenvolveu quase todos os pensamentos surgidos entre os românticos. Mas também foi um crítico severo; por exemplo, da filosofia de Schelling.
— O que ele criticou em Schelling?
— Schelling e os outros românticos viam a razão mais profunda da existência no chamado espírito do mundo. Hegel também emprega o conceito de “espírito do mundo”, mas lhe atribui outro sentido. Quando Hegel fala de espírito do mundo ou “razão do mundo”, ele está se referindo à soma de todas as manifestações humanas. Isto porque, a seu ver, só o homem possui um espírito. Nesse sentido, Hegel pode falar também da marcha do espírito do mundo através da história. Não devemos nos esquecer, porém, de que ele fala da vida do homem, dos pensamentos do homem e da cultura do homem.
— Quer dizer que este espírito de que ele fala é muito menos fantasmagórico. Não se trata, por exemplo, de uma espécie de consciência adormecida que está à espreita dentro de pedras e árvores…
— Muito bem. Na certa você se lembra de que Kant se referiu a um conceito que chamou de “a coisa em si”. Embora contestasse que o homem pudesse ter um conhecimento claro dos segredos mais recônditos da natureza, Kant acena para a possibilidade de existir uma espécie de verdade inatingível. Hegel dizia que a verdade era basicamente subjetiva e contestava a possibilidade de ainda haver uma verdade acima ou além da razão humana. Todo conhecimento é conhecimento humano, ele dizia.
— Ele teve de trazer a filosofia de volta à terra, não é?
— Sim. Talvez possamos formular a coisa com essas palavras. Bem, a filosofia de Hegel é tão diversificada e cheia de nuances, que neste curso vamos nos limitar a comentar apenas alguns de seus pontos mais importantes. Na verdade, há dúvidas sobre se podemos dizer que Hegel teve a sua própria filosofia. O que chamamos de filosofia de Hegel é, de fato, um método para se entender o curso da história. Na verdade, a filosofia de Hegel não nos ensina nada sobre “a natureza mais profunda da existência”, mas pode nos ensinar a pensar de uma forma extremamente frutífera.
— O que não deixa de ser muito importante.
— Todos os sistemas filosóficos anteriores a Hegel tinham tentado estabelecer critérios para o que o homem pode saber sobre o mundo. Isto vale para Descartes e Spinoza, Hume e Kant. Cada um deles se interessou por aquilo que constitui a base de todo o conhecimento humano. Só que todos eles falaram sobre premissas atemporais para o conhecimento do homem sobre o mundo.
— E não é esta a tarefa do filósofo?
— Hegel achava impossível encontrar tais pressupostos atemporais. Ele achava que as bases do conhecimento humano mudavam de geração para geração. Por conseqüência, também não existiam “verdades eternas” para ele. Não existe uma razão desvinculada de um tempo. O único ponto fixo a que a filosofia pode se ater é a própria história.
— Não, não… explique isto melhor. Se a história vive mudando, como ela pode ser um ponto fixo?
— Um rio também muda constantemente. Isto não significa, porém, que você não possa falar sobre este rio. Só que você não pode perguntar em que ponto do vale o rio é o rio “mais verdadeiro”.
— É verdade, pois o rio é o rio, não importa onde.
— Para Hegel, a história era como a corrente de um rio. O menor movimento na água num certo ponto do rio é determinado pela queda e pelo torvelinho das águas em algum outro ponto rio acima. Só que também são importantes as pedras e as curvas que existem no rio no ponto em que você se encontra e o observa.
— Acho que entendo.
— A história do pensamento, ou da razão, também é como a corrente do rio. Ela contém todos os pensamentos formulados por gerações de pessoas antes de você; e todos esses pensamentos determinam a sua maneira de pensar do mesmo modo como também o fazem as condições de vida do seu próprio tempo. Assim, não podemos afirmar que determinado pensamento está certo para sempre. Este pensamento pode estar correto no ponto em que você se encontra.
— Mas isto não quer dizer que todas as coisas são igualmente falsas, ou igualmente certas, quer?
— Não, só que uma coisa pode ser certa ou errada apenas em relação a um contexto histórico. Se em 1990 você faz todo um discurso defendendo a escravidão, na melhor das hipóteses você vai parecer ridícula. Mas há dois mil e quinhentos anos isto não era tão ridículo, embora naquela época algumas vozes progressistas já reivindicassem o fim da escravidão. Vamos citar um exemplo mais próximo. Há cerca de cem anos, não era tão insensato assim queimar extensas áreas de florestas para transformá-las em campos de cultivo. Hoje isto é de uma insensatez descabida. É que hoje possuímos outras, e melhores, premissas para este julgamento.
— Agora entendi.
— Hegel diz que a razão também é algo dinâmico, um processo. E a “verdade” não é outra coisa senão este processo. É que fora do processo histórico não existe qualquer critério capaz de decidir sobre o que é mais verdadeiro e o que é mais racional.
— Exemplos, por favor.
— Você não pode simplesmente pincelar alguns pensamentos da Antigüidade ou da Idade Média, do Renascimento ou do Iluminismo, e dizer que tais e tais estão certos e que tais e tais estão errados. Da mesma forma, você também não pode dizer que Platão se enganou ou que Aristóteles tinha razão; ou ainda que Hume estava totalmente enganado, enquanto Kant e Schelling tinham razão. Esta é uma forma “não histórica” de pensar.
— É… isto não me soa muito bem mesmo.
— Assim, para Hegel, não podemos separar uma filosofia ou um pensamento de seu contexto histórico. Mas, e agora estou me aproximando de outro ponto, a razão é “progressiva”, pois sempre se acrescenta algo de novo ao que já existia. Isto significa que o conhecimento humano progride cada vez mais e caminha com a humanidade toda em sua marcha “para a frente”.
— Pensando assim, a filosofia de Kant estava mesmo um pouco mais certa do que a de Platão, não é?
— É. Entre Platão e Kant o “espírito do mundo” desenvolveu-se, progrediu. Retomando a imagem do rio, podemos dizer que ele tem agora um volume maior de água. Entre um ponto e outro mais de dois mil anos se passaram. Mas Kant não deve achar que suas “verdades” ficarão como pedras irremovíveis à margem do rio. Os seus pensamentos também não são a derradeira expressão da sabedoria e serão expostos às severas críticas da geração subseqüente. E foi assim mesmo que aconteceu.
— Mas este rio de que você fala…
— Sim?
— Para onde ele corre?
— Hegel dizia que o espírito do mundo progredia rumo a uma consciência cada vez maior de si mesmo. Os rios também ficam cada vez mais largos, à medida que se aproximam do mar. Para Hegel, a história descreve a saga do espírito do mundo, que pouco a pouco desperta para a consciência de si mesmo. O mundo sempre existiu, mas por meio da cultura e da evolução do homem o espírito do mundo se torna cada vez mais consciente de suas peculiaridades.
— Como ele podia ter tanta certeza?
— Ele achava isto um fato absolutamente demonstrável, e não apenas uma espécie de profecia. Hegel dizia que quem estuda história sabe muito bem que a humanidade caminha rumo a um autoconhecimento e um autodesenvolvimento cada vez maiores. A história, segundo ele, demonstra de forma inequívoca a evolução rumo a uma racionalidade e liberdade, maiores. É claro que às vezes ela dá umas cabriolas, mas o todo revela uma marcha inexorável para a frente. Para Hegel, portanto, a história persegue um objetivo definido.
— Quer dizer que evoluímos cada vez mais. Bom… isto significa que ainda há esperança.
— Para Hegel, a história é a única e longa cadeia de pensamentos, cujos elos não se unem ao acaso, mas segundo determinadas regras. Quem se dedica ao estudo sério da história percebe que geralmente um novo pensamento surge com base em outros formulados anteriormente. Uma vez formulado, porém, o novo pensamento será inevitavelmente contradito por outro. Aparecem, assim, duas formas de pensar que se opõem e entre elas há uma tensão. Esta tensão é quebrada quando um terceiro pensamento é formulado, dentro do qual se acomoda o que havia de melhor nos dois pontos de vista precedentes. É isto que Hegel chama de evolução dialética.
— Você teria um exemplo?
— Você talvez ainda se lembre de que os pré-socráticos discutiam a questão da substância primordial e das transformações.
— Mais ou menos.
— Depois os eleatas declararam impossível toda e qualquer transformação. Para tanto, tiveram de negar todas as transformações, ainda que as percebessem por meio de seus sentidos. Os eleatas defendiam uma proposição, e tal proposição Hegel a chama de posição.
— Sim?
— Entretanto, toda vez que se formula uma proposição clara, surge outra, que se opõe à primeira. Esta Hegel chama de negação. A negação da filosofia dos eleatas é a filosofia de Heráclito, segundo a qual “tudo flui”. Surge, então, uma tensão entre duas maneiras de pensar diametralmente opostas. Mas esta tensão é “abolida” quando Empédocles chama a atenção para o fato de que ambas estavam certas em alguns pontos e enganadas em outros.
— Estou começando a entender…
— Os eleatas tinham razão quando afirmavam que nada se transformava; mas não estavam certos quando diziam que não podemos confiar em nossos sentidos. Heráclito tinha razão quando dizia que podemos confiar em nossos sentidos, mas não estava certo quando afirmava que “tudo flui”.
— Isto porque existe mais do que apenas uma substância primordial. A composição se altera, mas não a substância em si.
— Exatamente. O pensamento de Empédocles, que estabelecia uma ponte entre os dois pontos de vista opostos, é chamada por Hegel de a negação da negação.
— Deus meu!
— Esses três estágios do conhecimento também foram chamados por Hegel de tese, antítese e síntese. Podemos chamar de tese o racionalismo de Descartes, depois contradito pela antítese empírica de Hume. Mas esta oposição, esta tensão entre duas formas de pensar diferentes, foi suprimida com a síntese de Kant. Kant deu razão de um lado aos racionalistas e de outro aos empíricos. Ele também mostrou que ambos estavam enganados em pontos importantes. Mas a história não termina com Kant. A síntese de Kant se transformou em ponto de partida para a nova cadeia tripartite de pensamento, também chamada de “tríade”. Pois a síntese também se transforma em tese, e a esta segue-se uma nova antítese.
— Tudo isso é horrivelmente teórico.
— Sim, é teórico. Mas ainda que soe tremendamente teórico, Hegel não quis moldar a história a um esquema preestabelecido. Ele acreditava poder derivar da própria história este modelo dialético. Hegel estava plenamente convencido de que tinha descoberto leis para a evolução da razão, ou para a marcha do “espírito do mundo” ao longo da história.
— Entendo.
— Mas a dialética de Hegel não se aplica apenas à história. Quando discutimos, também pensamos dialeticamente, pois tentamos identificar falhas em determinada forma de pensar. Hegel chamou isto de “pensamento negativo”. Só que ao detectarmos falhas em determinada forma de pensar, estamos ao mesmo tempo preservando o que ela tem de melhor.
— Exemplos!
— Se um socialista e um conservador sentam-se para tentar resolver um problema social, não demora muito para que surja uma tensão entre duas formas de pensar. Isto não significa, porém, que só um tem razão ou que só o outro está enganado. É perfeitamente possível que ambos tenham um pouco de razão e que ambos estejam errados em alguns pontos. No decorrer da discussão, se forem espertos, eles saberão conservar os melhores argumentos de ambos os lados.
— Tomara.
— Quando estamos no meio de uma discussão como essa, infelizmente nem sempre é fácil saber qual das duas posturas é a mais racional. Por esta razão é que, no fundo, a história é que decide o que está certo e o que está errado. Para Hegel, só o que é racional é viável.
— Quer dizer que o que sobrevive está certo?
— Ou o contrário: o que está certo sobrevive.
— Você não teria outro exemplo? Tudo isto soa tão abstrato…
— Há cento e cinqüenta anos, muitos lutavam pelos direitos das mulheres. E também havia muitos que lutavam energicamente contra eles. Se analisarmos hoje os argumentos de ambas as partes, não temos dificuldades em ver quem eram os mais racionais. Mas não podemos nos esquecer de que estamos analisando o assunto a posteriori. Ficou provado que os que defendiam a igualdade de direitos estavam certos. Muitas pessoas sem dúvida se sentiriam envergonhadas se lessem o que seus avós disseram a respeito deste tema.
— Sim, posso imaginar. E o que Hegel achava?
— Sobre a igualdade de direitos?
— Sim. Ou é melhor não falarmos sobre o assunto?
— Você quer ouvir uma citação?
— Com prazer.
— Vamos lá: “A diferença entre um homem e uma mulher é a mesma que existe entre um animal e uma planta. O animal corresponde mais ao caráter do homem, a planta mais ao da mulher, pois o seu desenvolvimento é mais tranqüilo, já que tem por princípio a unidade mais vaga do sentimento. Se as mulheres estão à frente do governo, o Estado está em perigo, pois elas não agem segundo as reivindicações do conjunto, mas segundo a inclinação e a opinião casuais. A formação das mulheres ocorre, não se sabe ao certo como, por meio da atmosfera das idéias, por assim dizer: mais pela vida do que pela aquisição de conhecimentos. Os homens, ao contrário, só chegam à sua posição às custas de muito pensar e de muitos esforços técnicos”.
— Obrigada, é o bastante. Prefiro não ouvir mais citações desse tipo.
— Mas a citação é um exemplo muito elucidativo de como se modificam nossas noções sobre o que é “racional”. Ela mostra que Hegel também era um autêntico produto de sua época, exatamente como nós somos. Muito daquilo que nos parece “evidente” hoje não passará no teste da história.
— Você teria um exemplo?
— Não, não tenho.
— Por que não?
— Pois não posso falar de uma coisa que está se transformando agora. Eu não poderia dizer, por exemplo, que andar de carro é uma coisa absolutamente idiota porque polui a natureza. Muitas pessoas já acham isto. Não seria, portanto, um bom exemplo. Mas a história vai mostrar que muito do que consideramos óbvio não resistirá ao teste da história.
— Entendo.
— E ainda é preciso acrescentar uma coisa: o fato de os homens na época de Hegel externarem enfaticamente seus julgamentos grosseiros sobre a inferioridade da mulher incentivou ainda mais o movimento das mulheres.
— Como assim?
— Para usar as palavras de Hegel, os homens propuseram uma tese. O motivo para eles considerarem isto absolutamente necessário foi o fato de as mulheres já terem começado a se articular em sua defesa. Afinal, não é necessário ter uma opinião tão decidida sobre algo em torno do qual todos estão de acordo. Contudo, quanto mais grosseira era a discriminação dos homens em relação às mulheres, mais forte foi se tornando a antítese, ou a negação.
— Acho que entendo.
— Podemos dizer, portanto, que os oponentes mais enérgicos são a melhor coisa que pode acontecer com uma idéia. Quanto mais enérgicos melhor, pois tanto mais forte será a negação da negação. Não é por acaso que existe a expressão “jogar lenha na fogueira”.
— Posso sentir o fogo da minha indignação ardendo em fortes labaredas.
— Do ponto de vista puramente lógico ou filosófico, freqüentemente existe uma tensão entre dois conceitos.
— Exemplos, por favor.
— Se reflito sobre o conceito de “ser”, não tenho como deixar de lado da minha reflexão o conceito oposto, ou seja, o “não ser”. É impossível pensarmos que somos, sem que no momento seguinte nos lembremos de que um dia não seremos mais. A tensão entre “ser” e “não ser” é resolvida pelo conceito de “transformar-se”. Pois o fato de uma coisa se transformar significa, de certa forma, que ela é e não é.
— Entendo.
— A razão de Hegel é, portanto, uma razão dinâmica. Como a realidade está impregnada de opostos e contradições, uma descrição da realidade tem necessariamente de ser cheia de opostos e contradições. Aqui vai um exemplo: diz-se que o físico atômico Niels Bohr mandou pendurar uma ferradura na porta de sua casa.
— Isto é para dar sorte.
— Mas isto não passa de superstição e Niels Bohr podia ser qualquer coisa, menos supersticioso. Um dia recebeu a visita de um amigo, que pensou a mesma coisa: “Quer dizer que você acredita nessas coisas”, observou o amigo. E Bohr respondeu: “Não. Mas me disseram que apesar disso a coisa funciona mesmo”.
— Sem comentários.
— Mas a resposta de Bohr foi bastante dialética. Muitos diriam até que foi uma resposta altamente contraditória. Niels Bohr, como também o poeta norueguês Vinje, era conhecido pela sua visão dialética do mundo. Certa vez, ele disse que havia dois tipos de verdades: as verdades superficiais, cujos opostos eram obviamente errados, e as verdades profundas, cujos opostos eram tão certos quanto elas mesmas.
— Que verdades seriam estas?
— Quando digo, por exemplo, que a vida é breve…
— Concordo com você.
— Em outra situação, porém, posso abrir os braços e dizer que a vida é longa.
— Você tem razão. De certa forma isto também é verdade.
— Para terminar, quero dar ainda um exemplo de como uma tensão dialética pode desencadear uma ação espontânea, que leva a uma subida mudança.
— Vamos lá!
— Imagine uma menina que só diz “Sim, mamãe”, “Está certo, mamãe”, “Como você quiser, mamãe”, “É para já, mamãe!”.
— Fico arrepiada só de pensar.
— Um belo dia, a mãe se enerva com o fato de sua filha ser sempre tão obediente e grita, nervosa: “Não seja tão obediente!”. E a filha responde: “Sim, mamãe”.
— Eu daria uma bofetada nela!
— É verdade. Mas o que você faria se, em vez disso, ela tivesse respondido: “Mas eu quero ser obediente”?
— Seria uma resposta muito esquisita. Acho que ainda assim ela levaria a bofetada.
— Em outras palavras, a situação chegou a um impasse. A tensão dialética chegou a ponto tal que é preciso acontecer uma transformação.
— A bofetada, você quer dizer.
— Precisamos mencionar ainda um último aspecto da filosofia de Hegel.
— Sou toda ouvidos.
— Você está lembrada de que chamamos os românticos de individualistas.
— O caminho do mistério aponta para dentro.
— Precisamente este individualismo encontra sua “negação” na filosofia de Hegel. É que Hegel atribui uma importância enorme àquilo que chamou de “forças objetivas”. Ele se refere com isto à família e ao Estado. Podemos dizer que, nesse sentido, Hegel não perde totalmente de vista o indivíduo, mas o vê sobretudo como uma parte orgânica de uma comunidade. Para Hegel, a razão ou o espírito do mundo só se tornam visíveis na interação das pessoas.
— Explique melhor.
— A razão se revela sobretudo através da língua. E a língua é o universo dentro do qual nascemos. A língua norueguesa pode muito bem sobreviver sem o senhor Hansen, mas o senhor Hansen dificilmente sobreviveria sem a língua norueguesa. Não é o indivíduo que cria a língua, mas a língua que cria o indivíduo.
— Acho que concordo com isto.
— Assim como o indivíduo nasce no interior de uma língua, ele também nasce no interior de um meio histórico. E ninguém tem uma relação “livre” com este meio. Quem não consegue seu lugar no Estado é, portanto, um ser “a-histórico”. Você deve se lembrar de que este pensamento foi muito importante para os grandes filósofos de Atenas. Um Estado sem cidadãos é tão inconcebível quanto um cidadão sem Estado.
— Entendo.
— Para Hegel, o Estado é “mais” do que o cidadão isolado. Ele é mais do que a soma de todos os cidadãos. Hegel acha impossível “desligar-se” da sociedade, por assim dizer. Para ele, quem dá as costas à sociedade em que vive e prefere “encontrar-se a si mesmo” é um louco.
— Não sei se concordo com ele, mas tudo bem.
— Para Hegel, não é o indivíduo que se encontra a si mesmo, mas o espírito do mundo.
— O espírito do mundo se encontra a si mesmo?
— Hegel tentou mostrar que o espírito do mundo retorna a si mesmo em três estágios. Com isto ele queria dizer que o espírito do mundo passa por três estágios rumo à conscientização de si mesmo.
— Quais são esses estágios?
— Em primeiro lugar, o espírito do mundo se conscientiza de si mesmo no indivíduo. Hegel chama isto de razão subjetiva. Depois, o espírito do mundo atinge um nível mais elevado de consciência na família, na sociedade e no Estado. Hegel chama isto de razão objetiva, pois trata-se de uma razão que surge na interação entre as pessoas. Mas há ainda um terceiro estágio…
— Agora estou ansiosa para saber.
— O espírito do mundo atinge a forma mais elevada do autoconhecimento na razão absoluta. E esta razão absoluta são a arte, a religião e a filosofia. Dentre elas, a filosofia é a forma mais elevada da razão, pois na filosofia o espírito do mundo reflete sobre seu próprio papel na história. Portanto, só na filosofia é que o espírito do mundo se encontra a si mesmo. Desse ponto de vista, a filosofia pode ser considerada o espelho do espírito do mundo.
— Isto soa tão místico que vou precisar de um tempo para conseguir digerir. Mas gostei desta última frase que você disse.
CAPÍTULO 28 (EXCERTO)
KIERKEGAARD
(Páginas 398-410.)
(…)
De repente, Sofia ouviu alguém batendo na porta. Alberto olhou para ela muito sério.
— Não queremos ser perturbados, queremos?
Bateram mais forte.
— Vamos falar agora sobre um filósofo dinamarquês, que ficou muito irritado com a filosofia de Hegel — disse Alberto.
Mas começaram a bater tão forte que a porta chegava a tremer.
— É claro que é o major nos enviando outra de suas personagens fantásticas, só para ver se consegue nos pegar de novo — disse Alberto. — Para ele isto não é problema.
— Mas se não abrirmos e vermos quem é, ele também não terá o menor problema em demolir a casa inteira.
— Talvez você tenha razão. Vamos abrir.
Foram até a porta. Pela força das batidas, Sofia estava esperando um gigante, no mínimo. Mas lá fora só havia uma menina com um vestido florido e longos cabelos loiros. Na mão ela segurava dois frascos: um era vermelho, o outro azul.
— Olá! — disse Sofia. — Quem é você?
— Meu nome é Alice — respondeu a menina enquanto fazia um gesto de cortesia meio envergonhada.
— Foi o que pensei — disse Alberto. — É Alice no País das Maravilhas.
— Mas como ela chegou até aqui?
A própria Alice explicou:
— O País das Maravilhas é um lugar sem fronteiras, o que significa que ele está por toda a parte. Mais ou menos como a ONU. Por isso o País das Maravilhas deveria se tornar membro honorário da ONU. Precisamos de um representante em cada comitê.
— Ah, o major! — disse Alberto, sorrindo satisfeito.
— E o que traz você aqui? — perguntou Sofia.
— Eu trouxe estes dois frascos da filosofia para você.
Entregou a Sofia os dois frascos; num deles havia um líquido vermelho e no outro um líquido azul. No frasco vermelho estava escrito “BEBA-ME!” e, no azul, “BEBA-ME TAMBÉM!”
No instante seguinte, um coelho branco passou correndo pela cabana. Ele corria sobre duas patas e usava um colete e um paletó. Quando passou na frente da cabana, tirou do bolso do colete um relógio e disse:
— É tarde! É tarde!
E continuou a correr. Alice fez menção de sair correndo atrás dele; antes, porém, voltou-se para Sofia e Alberto, fez uma reverência e disse:
— Vai começar tudo de novo!
— Mande um abraço para Diná e para a Rainha! — disse Sofia para Alice, que a esta altura já tinha saído atrás do coelho.
Pouco depois, Alice desapareceu na floresta. Alberto e Sofia ficaram parados à entrada da cabana olhando os dois frascos.
— “BEBA-ME!” e “BEBA-ME TAMBÉM!” — leu Sofia. — Não sei se devo. Pode ser veneno.
Alberto sacudiu os ombros.
— Esses vidros vêm do major e tudo o que vem do major é pura imaginação. Portanto, isso aí não passa de um suco imaginário.
Sofia tirou a rolha do vidro vermelho e encostou-o cautelosamente nos lábios. O suco tinha um gosto adocicado e estranho. Mas isto não era tudo. Imediatamente aconteceu algo à sua volta: primeiro, foi como se a imagem do lago, da floresta e da cabana se fundissem numa coisa só. Depois lhe pareceu que tudo o que ela via era apenas uma pessoa e que esta pessoa era ela mesma. Quando finalmente olhou para Alberto, ele também parecia ter se transformado numa parte dela mesma.
— Que coisa estranha — disse ela. — De repente, tudo o que vejo parece estar relacionado. Tenho a sensação de que tudo é apenas uma única consciência.
Alberto concordou com a cabeça, mas Sofia teve a sensação de que era ela mesma quem concordava.
— Isto é o panteísmo, ou a filosofia da unidade — disse Alberto. — É o espírito do mundo dos românticos, que experimentavam tudo como um único e grande “eu”. Mas é também Hegel, que, sem perder o indivíduo totalmente de vista, considerava tudo expressão de uma razão universal.
— Você acha que eu devo beber o líquido do outro vidro?
— É o que está escrito aí.
Sofia tirou a rolha do outro vidro e deu uma boa golada. O líquido azul tinha um gosto mais fresco e mais azedo do que o vermelho. Mas também desta vez tudo à sua volta se transformou de imediato: no mesmo instante passou o efeito do líquido vermelho e tudo voltou ao seu lugar. Alberto voltou a ser Alberto, as árvores da floresta voltaram a ser árvores da floresta e o lago voltou a ser lago. Mas isto também durou apenas um segundo, e então tudo o que Sofia via começou a se desmanchar. Para começar, a floresta deixou de ser floresta; era como se, de repente, a menor das árvores fosse um mundo em si, cada galho uma aventura sobre a qual podiam ser contados milhares de contos de fadas. O pequeno lago transformou-se para ela num oceano infinito, não porque fosse grande e profundo, mas por causa de seus milhares de detalhes cintilantes e por suas ondas de formas e tamanhos fascinantes. Sofia entendeu que poderia ficar observando este pequeno lago pelo resto de sua vida e ainda assim ele continuaria sendo um mistério indecifrável para ela.
Sofia olhou, então, para a copa de uma árvore. Ali, três pardais estavam entretidos numa brincadeira divertida. Eles já tinham pousado na árvore antes de Sofia beber o líquido vermelho, mas só agora é que ela realmente os tinha percebido. O líquido vermelho, que ela bebera da primeira vez, apagara todos os contrastes e todas as diferenças individuais.
Sofia levantou-se do degrau de pedra em que estava sentada, ajoelhou-se e observou a grama. E ali também encontrou um mundo à parte, mais ou menos como se tivesse dado um mergulho e abrisse os olhos pela primeira vez no fundo do mar. Entre os ramos e as folhinhas da grama, milhares de formas de vida movimentavam-se febrilmente. Sofia viu uma aranha que se movia segura e energicamente sobre o musgo, um pulgão subindo e descendo por um raminho de grama e um pequeno exército de formigas trabalhando em conjunto. E mesmo entre as formigas, cada uma tinha o seu jeito particular de levantar as pernas.
O mais curioso de tudo, porém, foi quando Sofia se levantou novamente e olhou para Alberto, que continuava de pé à soleira da porta. De repente ela viu nele um ser completamente fora do comum, uma espécie de homem de outro planeta, ou uma personagem saída de um conto de fadas diferente daquele que ela vivia no momento. Ao mesmo tempo, ela também se percebeu a si mesma de uma maneira completamente diferente; ela era uma pessoa especial, extraordinária, não apenas uma pessoa comum, não apenas uma jovem de quinze anos: ela era Sofia Amundsen e só ela era assim!
— O que você está vendo? — perguntou Alberto.
— Vejo que você é um pássaro muito esquisito.
— É mesmo?
— Acho que nunca vou entender como é ser outra pessoa. Não há duas pessoas iguais em todo o mundo.
— E a floresta?
— Ela não parece mais ser a mesma. Ela é como um universo de muitos contos fantásticos.
— Foi o que pensei. O vidro azul é o individualismo. Ele foi a reação de Søren Kierkegaard à filosofia da unidade do Romantismo. E não foi por acaso que o escritor de contos fantásticos Hans Christian Andersen foi contemporâneo de Kierkegaard. Ele tinha o mesmo olhar aguçado para a infinita riqueza de detalhes da natureza. Cem anos antes, este mesmo olhar já havia estado presente em Leibniz, que reagiu à filosofia da unidade de Spinoza do mesmo modo como Kierkegaard reagiu à de Hegel.
— Estou ouvindo o que você diz, mas você me parece tão estranho que tenho de me esforçar para não rir.
— Entendo. Então beba mais um golinho do vidro vermelho. Vamos nos sentar aqui na escada da entrada. Ainda temos de falar alguma coisa sobre Kierkegaard antes de terminarmos nosso encontro de hoje.
Sentaram-se e Sofia bebeu um golinho do vidro vermelho. No mesmo instante as coisas dispersas voltaram a se concentrar, só que um pouco demais, pois Sofia sentiu novamente que as diferenças haviam deixado de ser importantes. Tocou os lábios rapidamente no gargalo do frasco azul e o mundo ficou mais ou menos como era antes de Alice chegar trazendo aqueles frascos com líquidos estranhos.
— Mas qual é verdadeiro? — perguntou Sofia. — É o líquido vermelho ou o azul que nos permite experimentar o mundo como realmente ele é?
— Ambos, Sofia. Não podemos dizer que os românticos estavam enganados. Mas talvez eles tenham sido parciais demais.
— E o líquido azul?
— Acho que Kierkegaard deve ter tomado uns bons goles dele. De qualquer forma, ele tinha o olhar muito aguçado para a importância do indivíduo. Somos mais do que “filhos de nosso tempo”, dizia ele. Cada um de nós também é um indivíduo único, que só vive esta única vez.
— E parece que Hegel não se interessou muito por isto, não é?
— Exato. Hegel estava mais preocupado com as grandes linhas da história. E foi exatamente isto que deixou Kierkegaard irritado. Ele disse que a filosofia da unidade dos românticos e que o historicismo de Hegel tinham tirado do indivíduo a responsabilidade pela sua própria vida. Para Kierkegaard, Hegel e os românticos eram farinha do mesmo saco.
— É compreensível que ele tenha ficado furioso.
— Søren Kierkegaard nasceu em Copenhague em 1813 e foi criado por um pai muito severo, de quem herdou também certa melancolia religiosa.
— Isto não me parece nada bom.
— Não mesmo. Esta melancolia chegou mesmo a levar o jovem Kierkegaard a romper um noivado, fato que não foi bem recebido pela burguesia de Copenhague. Assim, desde muito cedo ele foi uma pessoa marginalizada e alvo de chacotas. Bem, a verdade é que logo ele passaria a dar o troco aos outros à sua volta e se tornaria paulatinamente aquilo que Ibsen chamou de “um inimigo do povo”.
— Tudo por causa do rompimento de um noivado?
— Não, não só por causa disso. No fim de sua vida, sobretudo, Kierkegaard se tornou um crítico severo de toda a cultura européia. Ele dizia que toda a Europa estava a caminho da bancarrota. Kierkegaard achava que os tempos em que vivia eram totalmente destituídos de paixão e engajamento, e criticava duramente a atitude tépida e frouxa da Igreja. Sua crítica à chamada “igreja de domingo” podia ser qualquer coisa menos sutil.
— Hoje em dia fala-se do “cristianismo da confirmação”. Isto porque muitas pessoas só passam pela confirmação para ganhar presentes.
— Sim, você tem razão. Para Kierkegaard, o cristianismo era ao mesmo tempo tão avassalador e tão adverso à razão que só podia ser “ou isto, ou aquilo”. Quer dizer, ele achava que não era possível ser “um pouco cristão”, ou então “cristão até certo ponto”. Pois ou Jesus Cristo tinha ressuscitado no domingo de Páscoa, ou não. E se ele realmente tivesse se levantado dos mortos, isto seria algo tão avassalador que teria necessariamente de marcar toda a nossa vida.
— Entendo.
— Mas Kierkegaard observava que a Igreja e a maioria dos cristãos de seu tempo tinham uma posição extremamente evasiva em relação às questões religiosas. E ele não aceitava isto de jeito nenhum. Religião e razão eram, para ele, como fogo e água. Kierkegaard achava que não bastava achar “verdadeiro” o cristianismo. Ter uma fé cristã significava seguir os passos de Jesus.
— E o que isto tinha a ver com Hegel?
— Opa! Talvez tenhamos começado pela ponta errada.
— Então sugiro que você engate marcha à ré e comece do começo.
— Aos dezessete anos, Kierkegaard começou a estudar teologia, mas logo foi se interessando cada vez mais por questões filosóficas. Doutorou-se aos vinte e oito anos com a tese “O conceito da ironia em Sócrates”. Nesta obra, Kierkegaard acerta as contas com a ironia romântica e com a forma descompromissada de os românticos brincarem com a ilusão. À ironia romântica Kierkegaard contrapõe a “ironia socrática”. Sócrates também fizera uso do recurso estilístico da ironia, mas só com o intuito de chamar a atenção de seus ouvintes para uma atitude mais séria em relação à vida. Sócrates era para Kierkegaard, ao contrário do que significa para os românticos, um pensador existencial, ou seja, alguém que transporta toda a sua existência para dentro de sua reflexão filosófica. Ao contrário dos românticos, que para Kierkegaard não tinham feito nada disso.
— Entendo.
— Depois de romper seu noivado, Kierkegaard viajou em 1841 para Berlim, onde assistiu a conferências de alguns filósofos, dentre eles Schelling.
— Ele chegou a se encontrar com Hegel em Berlim?
— Não. Hegel já havia falecido dez anos antes, embora continuasse a viver “em espírito” em Berlim e em muitas partes da Europa. Seu “sistema” era usado como uma espécie de explicação geral para todas as perguntas imagináveis. Kierkegaard assumiu uma posição radicalmente oposta e explicou que as “verdades objetivas”, com as quais se ocupava a filosofia hegeliana, eram totalmente irrelevantes para a existência do homem enquanto indivíduo.
— E que verdades seriam relevantes?
— Para Kierkegaard, mais importante do que a busca de uma VERDADE com letras maiúsculas era a busca por verdades que são importantes para a vida de cada indivíduo. Ele dizia que o importante era encontrar “a minha verdade”, a verdade de cada um. Ele opunha o indivíduo ao “sistema”, portanto. Kierkegaard dizia que Hegel também tinha se esquecido de que era apenas uma pessoa. Ele zombava do tipo do professor hegeliano que vivia no alto de uma torre de marfim e que, preocupado em explicar os mistérios da vida, esquecia o seu próprio nome, esquecia-se de que era uma pessoa, uma pessoa como outra qualquer, e não meia dúzia de parágrafos bem elaborados que de verbo tinham se tornado carne.
— E o que é o ser humano para Kierkegaard?
— Isto não dá para responder de uma maneira geral. Kierkegaard não está nem um pouco interessado numa descrição genérica da natureza ou do “ser” humano. Fundamental para ele é a existência de cada um. E o homem não experimenta sua existência atrás de uma escrivaninha. Somente quando agimos, e sobretudo quando fazemos uma escolha, é que nos relacionamos com nossa própria existência. Uma história que se conta sobre Buda pode ilustrar o que Kierkegaard quer dizer.
— Sobre Buda?
— Sim, pois a filosofia de Buda também tem como ponto de partida a existência humana. Certa vez, um monge disse a Buda que ele dava respostas pouco claras para perguntas importantes, tais como o que é o mundo ou o ser humano. Buda respondeu com o exemplo de uma pessoa que é ferida por uma seta envenenada. O ferido não tem qualquer interesse teórico em saber de que material a seta é feita, em que tipo de veneno ela foi embebida ou de que ângulo ela o atingiu.
— Provavelmente, o que ele quer é que alguém lhe extraia a seta envenenada e cuide do ferimento.
— Não é mesmo? Isto sim seria existencialmente importante para ele. Tanto Buda quanto Kierkegaard tinham plena consciência de que só viveriam por um curto período de tempo. E, como dissemos, nesse caso não dá para ficar sentado atrás de uma escrivaninha, especulando sobre o espírito do mundo.
— Entendo.
— Kierkegaard também disse que a verdade era “subjetiva”. Não no sentido de que é totalmente indiferente o que pensamos ou aquilo em que acreditamos. Kierkegaard só queria dizer que as verdades realmente importantes são pessoais. Somente tais verdades são “verdades para mim”, são verdades para cada um.
— Você poderia me dar um exemplo dessas verdades subjetivas?
— Uma questão importante, por exemplo, é a de se saber se o cristianismo é verdade. Para Kierkegaard, esta não é uma questão para ser encarada do ponto de vista teórico ou acadêmico. Para alguém que se entende como algo que existe, trata-se aqui de vida ou morte. E isto não se discute simplesmente porque se gosta de discutir. Trata-se de algo que deve ser abordado com absoluta paixão.
— Entendo.
— Quando você cai na água, você não fica teorizando sobre a questão de saber se vai ou não se afogar. Também não é interessante ou desinteressante saber se há crocodilos na água. Trata-se de uma questão de vida ou morte.
— Claro!
— É preciso distinguir, portanto, entre a questão filosófica de saber se Deus existe e a relação do indivíduo para com esta mesma questão. Trata-se aqui de questões com as quais cada um tem de se confrontar sozinho. Além disso, não podemos abordar estas questões através da fé. Kierkegaard não considera essencial aquilo que somos capazes de compreender com nossa razão.
— Não entendi.
— Oito mais quatro são doze, Sofia. Podemos estar absolutamente certos quanto a isto. Trata-se de um exemplo para as verdades racionais, sobre as quais falaram todos os filósofos desde Descartes. Mas nós as incluímos em nossas orações antes de dormir? E por acaso ficamos quebrando a cabeça sobre elas em nosso leito de morte? Não. Por mais “objetivas” ou “genéricas” que tais verdades sejam, é exatamente por isso que elas são tão pouco importantes para a existência de cada um.
— E a questão da fé?
— Você não pode saber se uma pessoa te perdoa quando você faz alguma coisa de errado para ela. Trata-se de uma questão com a qual você está profundamente envolvida. E exatamente por isso ela é existencialmente importante para você. Você só pode acreditar ou ter esperança de que assim seja. Apesar disso, essas coisas são mais importantes para você do que o fato incontestável de que a soma dos ângulos de um triângulo é cento e oitenta graus. Por fim, ninguém pensa na lei da causa e efeito ou nas “formas da sensibilidade” de Kant quando ganha o primeiro beijo.
— Não, isto seria uma loucura.
— E a fé assume importância maior quando se trata de questões religiosas. Kierkegaard acha que se quero entender Deus objetivamente, isto significa que eu não creio; e precisamente porque não posso entendê-lo objetivamente é que preciso crer. Assim, se quero preservar minha fé, preciso estar sempre atento para não me esquecer de que estou na incerteza objetiva “sobre setenta mil braças de água”, e ainda assim creio.
— Esta foi da pesada.
— Antes de Kierkegaard, muitos tinham tentado provar a existência de Deus ou então entendê-la racionalmente. Mas quando nos envolvemos com tais provas de existência de Deus ou com tais argumentos racionais, perdemos nossa fé e, com ela, nosso fervor religioso. Isto porque o fundamental não é saber se o cristianismo é verdadeiro, mas se é verdadeiro para mim. Na Idade Média expressava-se o mesmo pensamento com a fórmula “credo quia absurdum”.
— O quê?
— A expressão significa “Creio, porque é absurdo”. Se o cristianismo tivesse apelado à razão, e não ao nosso outro lado, ele não seria uma questão de fé.
— Agora entendi.
— Vimos, portanto, o que Kierkegaard entendia por “existência”, “verdade subjetiva” e “fé”. Kierkegaard chegou até esses conceitos por meio da crítica à razão filosófica, sobretudo a Hegel. Só que esses conceitos também expressam toda uma crítica da civilização. Para Kierkegaard, a sociedade urbana moderna transformou o homem em “público”, em “instância coletiva”, e a primeira característica da multidão é justamente este “palavrório” inconseqüente. Hoje talvez empregássemos a palavra “conformidade”, ou seja, o fato de que todos “acham” ou “defendem” uma mesma coisa, mas ninguém tem uma relação verdadeiramente apaixonada com o tema.
— Imagino o que Kierkegaard não teria dito aos pais de Jorunn!
— De fato, ele não foi muito indulgente com os outros. Foi um crítico mordaz, capaz de usar uma ironia cáustica. Ele escreveu, por exemplo: “A multidão é a inverdade”. Ou: “A verdade está sempre na minoria”. Kierkegaard disse também que a maioria das pessoas se relacionava de forma extremamente inconseqüente com a vida.
— Colecionar bonecas Barbie é uma coisa. Ser uma Barbie é ainda pior…
— Isto nos leva à teoria de Kierkegaard sobre os três estágios na trajetória da vida.
— O que você disse?
— Kierkegaard achava que havia três possibilidades diferentes de existência. Ele mesmo emprega a palavra “estágios”. A essas possibilidades ele dá o nome de “estágio estético”, “estágio ético” e “estágio religioso”. Quando emprega a palavra “estágio”, ele quer dizer que podemos estar vivendo num dos dois estágios inferiores e de repente conseguimos “saltar” para um estágio superior.
— Aposto que vem aí uma explicação. Eu mesma estou curiosa para saber em qual dos três estágios me encontro.
— Quem vive no estágio estético vive o momento e visa sempre ao prazer. Bom é aquilo que é belo, simpático ou agradável. Desse ponto de vista, tal pessoa vive inteiramente no mundo dos sentidos. O esteta acaba virando joguete de seus próprios prazeres e estados de ânimo. Negativo é tudo aquilo que aborrece, que “não é legal”, como se costuma dizer hoje em dia.
— Ah… Isso aí eu conheço muito bem.
— O romântico típico também é um esteta, pois não se trata aqui simplesmente de prazer sensorial. Uma pessoa que possui uma relação lúdica com a realidade, ou, por exemplo, com a arte ou a filosofia de que se ocupa, também vive num estágio estético. E mesmo diante da preocupação e do sofrimento é possível se adotar um comportamento estético ou “de mero observador”. Neste caso, é a vaidade que toma as rédeas de tudo. Peer Gynt, de Ibsen, é retrato do esteta típico.
— Acho que entendo o que Kierkegaard quer dizer.
— Você está se reconhecendo neste conceito?
— Não inteiramente. Mas acho que isto tudo lembra um pouco o major.
— Sim, sim, é possível, Sofia. Embora isto seja outro exemplo da ironia romântica kitsch que é peculiar a ele. Você deveria lavar a boca!!
— O que você disse?
— Bem… não foi sua culpa.
— Prossiga.
— Aquele que vive no estágio estético está sujeito a sentimentos de medo e a sensação de vazio. Mas se ele experimenta esses sentimentos, então também há esperança. Para Kierkegaard, o medo é uma coisa quase positiva. Ele é um sinal de que a pessoa se encontra numa “situação existencial”. O esteta pode então decidir se quer dar o salto para um estágio superior. Ou ele acontece, ou então não acontece. De nada ajuda estar na iminência de pular e depois não realizar o salto. Ou uma coisa ou outra. E também não é possível que outra pessoa dê o salto em seu lugar. Você mesma tem de decidir e você mesma tem que pular.
— É mais ou menos como quando alguém quer largar a bebida ou as drogas.
— Sim, talvez. Quando Kierkegaard fala dessa decisão, ele nos faz lembrar um pouco de Sócrates, para quem todo conhecimento verdadeiro vinha de dentro. A decisão que leva uma pessoa a saltar de uma visão de mundo estética para uma ética ou religiosa deve vir de dentro. É exatamente isto que Ibsen mostra em Peer Gynt. Outro exemplo magistral de uma escolha existencial nos é dado pelo romance Crime e castigo, do escritor russo Dostoievski. Quando terminarmos nosso curso de filosofia, você não pode deixar de ler este livro.
— Vamos ver. Quer dizer que Kierkegaard acha que quando a coisa fica séria para o lado de alguém, a pessoa escolhe outra forma de ver a vida.
— E talvez comece a viver num estágio ético. Este estágio é marcado pela seriedade e por decisões consistentes, tomadas segundo padrões morais. Você se recorda da ética do dever, de Kant, segundo a qual devemos tentar viver de acordo com a lei moral. Como Kant, Kierkegaard também dedica sua atenção neste assunto sobretudo ao temperamento humano. O essencial não é necessariamente o que se considera certo ou errado. O essencial é a decisão de se posicionar em relação ao que é certo e ao que é errado. O esteta se interessa apenas pelo que é divertido ou entediante.
— E não se corre o risco de se levar a vida um pouco a sério demais quando se vive assim?
— É claro que sim. Mas Kierkegaard ainda não está satisfeito com o estágio ético. Para ele, também chega o dia em que o homem zeloso se cansa de ser tão ordeiro e tão cônscio de seus deveres. Muitas pessoas passam bem tarde na vida por esta fase de tédio e de fadiga. E então é possível que algumas delas adotem uma atitude mais lúdica em relação à vida e retornem ao estágio estético. Outras, por sua vez, ousam mais um salto rumo ao próximo estágio, o estágio religioso. Elas ousam o grande salto rumo às “setenta mil braças de água” da fé. Elas preferem a fé ao prazer estético e aos mandamentos da razão. E embora possa ser desesperador “cair nas mãos do Deus vivo”, para usar uma expressão do próprio Kierkegaard, só nesse caso o homem pode se reconciliar com sua própria vida.
— Através do cristianismo, portanto.
— Sim. Para Kierkegaard, o estágio religioso era o cristianismo. Apesar disso, sua filosofia influenciou também muitos pensadores não-cristãos. Em nosso século [XX] surgiu uma chamada filosofia da existência, ou Existencialismo, fortemente inspirada em Kierkegaard.
Sofia olhou o relógio.
— São quase sete. Preciso voltar correndo para casa, senão minha mãe vai ficar louca comigo.
Despediu-se do seu professor de filosofia e desceu correndo rumo ao lago onde estava ancorado o barco a remo.
CAPÍTULO 29 (EXCERTO)
MARX
(Páginas 417-429.)
(…)
Mais uma vez sentaram-se à mesa próxima da janela que dava vista para o lago. Sofia ainda se lembrava muito bem de como tinha visto o lago depois de ter bebido o líquido azul. Agora os dois frascos estavam sobre o console da lareira. Sobre a mesa havia uma cópia em miniatura de um templo grego.
— O que é isto? — perguntou Sofia.
— Uma coisa de cada vez, minha cara.
E então Alberto começou a falar sobre Marx:
— Em 1841, quando Kierkegaard foi a Berlim, é provável que ele tenha se sentado ao lado de Karl Marx nas palestras de Schelling. Kierkegaard tinha escrito uma tese sobre Sócrates, e Karl Marx, na mesma época, tinha defendido o seu doutorado sobre Demócrito e Epicuro. Sobre o materialismo na Antigüidade, portanto. Nos trabalhos dos dois já estava embutido o rumo que suas reflexões filosóficas iriam tomar.
— Quer dizer, Kierkegaard se tornou um filósofo existencialista e Marx um materialista.
— Chamamos Marx de um materialista histórico. Voltaremos a isto mais adiante.
— Continue!
— Tanto Kierkegaard quanto Marx tomaram como ponto de partida a filosofia de Hegel. Ambos foram influenciados pela forma de pensar hegeliana, mas ambos também se distanciaram da noção hegeliana de espírito universal, ou daquilo que chamamos do idealismo de Hegel.
— Na certa Hegel era um tanto vago para eles.
— Exatamente. De modo muito geral, podemos dizer que a era dos grandes sistemas filosóficos terminou com Hegel. Depois dele, a filosofia toma um novo rumo. Os grandes sistemas especulativos dão lugar às “filosofias da existência” ou “filosofias da ação”, como também podemos chamá-las. É a isto que Marx se refere quando diz que até então os filósofos sempre tinham tentado interpretar o mundo, em vez de tentar modificá-lo. E são exatamente essas palavras que determinam uma virada importante na história da filosofia.
— Depois de ter me encontrado com Scrooge e com a menina da caixa de fósforos, posso entender tranqüilamente o que Marx quis dizer.
— O pensamento de Marx tem, portanto, um objetivo prático e político. É preciso salientar que ele não era apenas filósofo. Marx foi também historiador, sociólogo e economista.
— E ele foi pioneiro em todas essas áreas?
— De qualquer forma, nenhum outro filósofo foi mais importante para a prática política. Por outro lado, precisamos ter cuidado para não identificarmos com seu pensamento tudo o que depois dele se chamou de “marxista”. Dizem que o próprio Marx se tornou “marxista” por volta de 1845, mas que durante toda a sua vida ele manifestou seu desconforto quanto a esta designação.
— Jesus também não foi cristão?
— Também isto é discutível.
— Continue.
— Desde o início, seu amigo e colega Friedrich Engels contribuiu para o que mais tarde foi chamado de marxismo. No século passado, Lênin, Stalin, Mao e muitos outros reivindicaram o reconhecimento público por terem levado o marxismo mais adiante. Nos países do Leste, depois de Lênin, apareceu o conceito de “marxismo-leninismo”.
— Acho melhor a gente se concentrar no próprio Marx. Você o chamou de “materialista histórico”, não foi?
— Ele não foi um filósofo materialista como os atomistas da Antigüidade ou como os materialistas mecanicistas dos séculos XVII e XVIII. Mas ele achava que eram as condições materiais de vida numa sociedade que determinavam nosso pensamento e nossa consciência. Para ele, tais condições materiais eram decisivas também para a evolução da história.
— Isso soa verdadeiramente diferente de Hegel e de seu espírito universal.
— Hegel havia explicado que a evolução histórica surgia da tensão entre opostos, que eram resolvidos numa mudança repentina. Desaparecidos os opostos, desaparecia também a tensão, é claro. Marx concordava com este pensamento. Ele achava apenas que o pobre Hegel tinha colocado tudo de cabeça para baixo.
— Mas não o tempo todo, espero.
— Hegel chamava de “espírito universal” ou “razão universal” a força que impelia a história para frente. Marx achava que este ponto de vista colocava a realidade de cabeça para baixo. Ele queria mostrar que as condições materiais de vida eram decisivas para a história. Nesse sentido, Marx dizia que não eram os pressupostos espirituais numa sociedade que levavam a modificações materiais, mas exatamente o oposto: as condições materiais determinavam, em última instância, também as espirituais. Além disso, Marx achava que as forças econômicas numa sociedade eram as principais responsáveis pelas modificações em todos os outros setores e, conseqüentemente, pelos rumos do curso da história.
— Você poderia me dar um exemplo?
— A filosofia e a ciência na Antigüidade tinham sido cultivadas quase como algo completamente desvinculado da realidade prática. Os antigos filósofos não estavam muito interessados em saber se os seus conhecimentos teóricos poderiam modificar para melhor as coisas na prática.
— Não?
— Isto se explica pelo modo como eram organizadas as sociedades em que eles viviam. A vida e a produção de alimentos nas sociedades da Antigüidade tinham por base sobretudo o trabalho escravo. Por esta razão, os cidadãos não tinham a menor necessidade de melhorar a produção com novidades práticas. Temos aí um exemplo de como o pensamento pode ser influenciado pelas relações materiais numa sociedade.
— Entendo.
— As relações materiais, econômicas e sociais numa sociedade são chamadas por Marx de bases desta sociedade. O modo de pensar de uma sociedade, suas instituições políticas, suas leis e também sua religião, moral, arte, filosofia e ciência são por ele chamados de superestrutura.
— Base e superestrutura, portanto.
— E talvez agora você possa me passar o templo grego.
— Com todo o prazer.
— Isto é uma cópia em miniatura do antigo Partenon, na Acrópole. Você chegou a vê-lo como ele realmente é.
— Na fita de vídeo, você quer dizer.
— Observe que o templo possui um telhado realmente elegante e ricamente ornamentado. Talvez sejam o telhado e o frontão os dois elementos que mais nos chamam a atenção à primeira vista. E é exatamente isto que podemos chamar de superestrutura. Só que o telhado não pode pairar sozinho no ar.
— Ele é sustentado por colunas.
— A construção inteira precisa de um alicerce sólido, uma base que a sustenta como um todo. Para Marx, as condições materiais “sustentam”, por assim dizer, todos os pensamentos e idéias de uma sociedade. Isto significa que a superestrutura de uma sociedade é o reflexo de sua base material.
— Você está querendo dizer que a teoria das idéias de Platão era apenas um reflexo das olarias e da viticultura de Atenas?
— Não, não é tão simples assim. O próprio Marx chamou expressamente a atenção para isto. É claro que a base e a superestrutura de uma sociedade se condicionam reciprocamente. Se Marx tivesse negado isto, ele teria sido um “materialista mecanicista”. Mas por ele ter reconhecido que entre a base e a superestrutura de uma sociedade também existe uma interação, uma tensão, nós o chamamos de materialista dialético. Você deve estar lembrada do que Hegel entendia por uma evolução dialética. E, a propósito, é bom dizer que Platão não trabalhou nem como oleiro, nem como viticultor.
— Entendo. Você ainda vai falar mais um pouco sobre o templo?
— Sim. Observe cuidadosamente a base dele. Será que você poderia descrevê-la para mim?
— As colunas estão apoiadas numa fundação composta por três camadas, ou degraus.
— Da mesma forma, podemos distinguir numa sociedade três camadas. Embaixo de tudo está o que Marx chama de as condições naturais de produção de uma sociedade. Nela estão compreendidas as condições naturais, os recursos naturais que preexistem, por assim dizer, à própria sociedade: o tipo de vegetação, as matérias-primas, as riquezas do solo, entre outros. Tais condições constituem os verdadeiros muros de arrimo na fundação de uma sociedade; e estes muros de arrimo estabelecem claras restrições quanto ao tipo de produção possível e, por extensão, quanto ao próprio tipo de sociedade e de cultura que podem florescer em determinado lugar.
— Não se pode pescar arenque no Saara, nem plantar tâmaras na Lapônia.
— Isso mesmo. Numa cultura nômade, porém, as pessoas pensam de forma completamente diferente do que, por exemplo, num povoado de pescadores na Noruega. A próxima camada é formada, então, pelas forças de produção de uma sociedade. Aqui, Marx está pensando na força de trabalho do próprio homem, mas também nos tipos de equipamentos, ferramentas e máquinas, os chamados meios de produção.
— Antigamente, as pessoas saíam remando para apanhar os peixes. Hoje em dia eles são apanhados em traineiras gigantescas.
— E com isto você já está passando para a terceira camada da base de uma sociedade. A coisa aqui se complica um pouco, pois se trata de quem detém os meios de produção numa sociedade e de como o trabalho é organizado no interior da sociedade. Trata-se, portanto, das relações de posse e da divisão de trabalho. Marx chama isto de relações de produção de uma sociedade. Elas são, portanto, a terceira camada da base social.
— Entendo.
— Até aqui podemos concluir, portanto, que para Marx o modo de produção numa sociedade determina que relações políticas e ideológicas podemos encontrar nela. Não é por acaso que hoje em dia pensamos diferente, e possuímos uma moral diferente, das pessoas que viviam numa sociedade feudal antiga.
— Quer dizer que Marx não acreditava num direito natural válido para qualquer época.
— Não. Para Marx, a resposta à pergunta sobre o que é moralmente correto era um produto da base social. De fato, não é por acaso que nas antigas comunidades de camponeses os pais determinavam com quem seus filhos deviam se casar. Afinal, tratava-se também de saber quem herdaria as terras. Numa grande cidade moderna, as relações sociais são outras; conseqüentemente, também são outras as formas pelas quais as pessoas buscam seus parceiros. Podemos conhecer nossos companheiros ou companheiras numa festa, ou então numa discoteca, e, se nos sentirmos suficientemente apaixonados um pelo outro, podemos passar a dividir uma casa ou um apartamento.
— Eu não ia gostar nada se meus pais escolhessem meu futuro marido.
— Não, pois você é fruto de sua época. Marx também afirmava que em geral era a classe dominante numa sociedade que determinava o que é certo e o que é errado. Pois, para ele, toda a história era a história das lutas de classes, ou seja, das discussões sobre a quem deveriam pertencer os meios de produção.
— Mas os pensamentos e as idéias das pessoas também não contribuem para as mudanças da história?
— Sim e não. Marx tinha consciência de que as relações na superestrutura de uma sociedade tinham algum efeito sobre a sua base. Só que ele negava que a superestrutura tivesse uma história só sua, independente do resto. Para ele, o que tinha feito a história avançar da sociedade escravocrata da Antigüidade até a sociedade industrial eram sobretudo as modificações na base da sociedade.
— Sim, você já disse isso.
— Em todas as fases da história existe, segundo Marx, um conflito entre duas classes dominantes da sociedade. Na sociedade escravocrata da Antigüidade havia um conflito entre os cidadãos livres e os escravos; na sociedade feudal da Idade Média, um conflito entre os senhores feudais e os vassalos e, mais tarde, entre nobres e plebeus. Mas no tempo de Marx, numa sociedade burguesa ou, como dissemos, capitalista, ele via este conflito sobretudo entre capitalistas e trabalhadores, ou entre capitalistas e o proletariado, quer dizer, entre os que possuíam e os que não possuíam os meios de produção. E como a classe “que estava por cima” jamais abriria mão voluntariamente de sua posição de dominância, só uma revolução seria capaz de provocar uma modificação nesse estado de coisas.
— E a sociedade comunista?
— Marx dedicou-se especialmente à questão da transição de uma sociedade capitalista para uma sociedade comunista. Para tanto, ele fez uma análise detalhada do modo de produção capitalista. Só que antes de abordarmos esta questão, vamos falar um pouco sobre o que Marx pensava a respeito do trabalho humano.
— Vamos lá.
— Antes de se tornar comunista, o jovem Marx interessava-se pelo que realmente acontece com o homem quando ele trabalha. Hegel também analisou este aspecto e constatou uma relação de troca mútua, uma relação “dialética” entre o homem e a natureza. O jovem Marx chegou à mesma conclusão: quando o homem altera a natureza, ele mesmo também se altera. Ou, em outras palavras: quando o homem trabalha, ele interfere na natureza e deixa nela suas marcas; mas neste processo de trabalho também a natureza interfere no homem e deixa marcas em sua consciência.
— Diz-me com que trabalhas e te direi quem és.
— Exatamente. Marx dizia que o modo como trabalhamos marca a nossa consciência, mas a nossa consciência também marca o modo como trabalhamos. Podemos dizer que existe uma interação entre “mão” e “cabeça”. Desta forma, o conhecimento do homem está intimamente relacionado com seu trabalho.
— Então deve ser horrível ficar desempregado.
— Sim. De certa forma, quem não tem um trabalho está solto no ar. Hegel já havia dito isso. Para Hegel e Marx o trabalho é uma coisa positiva; uma coisa que pertence à condição humana.
— Então também deve ser positivo ser um trabalhador.
— Fundamentalmente, sim. Mas é exatamente sobre este ponto que Marx constrói sua crítica avassaladora do modo de produção capitalista.
— Estou curiosa!
— No sistema capitalista, o trabalhador trabalha para outra pessoa. Dessa forma, seu trabalho é algo externo a ele mesmo; em outras palavras, seu trabalho não lhe pertence. O trabalhador se aliena em relação a seu trabalho e, ao mesmo tempo, em relação a si mesmo. Ele perde sua dignidade humana. Usando uma expressão hegeliana, Marx fala de alienação.
— Entendo o que você está dizendo. Eu tenho uma tia que embrulha bombons há mais de vinte anos numa fábrica. Ela diz que odeia ir para o trabalho todos os dias.
— E se ela odeia seu trabalho, Sofia, de alguma forma ela também se odeia.
— De qualquer forma ela odeia bombons.
— Na sociedade capitalista, o trabalho é organizado de modo a que um trabalhador realize um trabalho escravo para outra classe social. Desta forma, o trabalhador “cede” não apenas sua própria força de trabalho, como também toda a sua existência humana.
— Mas é tão ruim assim mesmo?
— Estamos falando de como Marx via as coisas. Por isso precisamos tomar como ponto de partida as condições sociais vigentes na Europa por volta de 1850. E nesse caso, a resposta à sua pergunta é “SIM”, em alto e bom som. Na grande maioria dos casos, os trabalhadores cumpriam uma jornada de trabalho de catorze horas dentro de fábricas geladas. E o que ganhavam era tão pouco, que até crianças e mulheres grávidas tinham de trabalhar. Tudo isto levou a condições sociais indescritíveis. Muitas vezes, parte do salário era paga em forma de aguardente barata e muitas mulheres tinham de se prostituir. Seus clientes eram os respeitáveis cidadãos da cidade. Em poucas palavras: o trabalho, que deveria ser um símbolo da dignidade humana, transformara o trabalhador num verdadeiro animal.
— Fico furiosa com essas coisas.
— Marx também ficava. Ao mesmo tempo, os filhos dos burgueses podiam tocar violinos em salões amplos, aquecidos, depois de terem tomado um banho reconfortante. Ou então podiam sentar-se ao piano, antes de saborear um delicioso almoço com quatro pratos principais. Muitas vezes eles também tocavam violino ou piano à tardinha, depois de um longo passeio a cavalo.
— Que injustiça!
— Marx também achava. Em 1848, ele publicou junto com Friedrich Engels o famoso Manifesto comunista. A primeira frase desse manifesto é a seguinte: “Um fantasma ronda a Europa: o fantasma do comunismo”.
— Puxa… me dá até medo.
— Pois os burgueses sentiram a mesma coisa. E foi então que o proletariado começou a se rebelar. Você quer ouvir como termina o manifesto?
— Quero.
— Então vamos lá: “Os comunistas não se importam de revelar suas idéias e intenções. Eles declaram abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados por meio de uma violenta revolução de toda a ordem social existente. Que as classes dominantes tremam diante da revolução comunista. Os proletários não têm nada a perder além de seus grilhões. Eles têm um mundo a ganhar! Proletários de todo o mundo, uni-vos!”.
— Se as condições de vida eram tão ruins quanto você falou, eu também teria assinado este manifesto. Mas hoje em dia as coisas mudaram, não é mesmo?
— Na Noruega sim, mas não em todos os lugares. Ainda há milhões de pessoas vivendo em condições subumanas. Ao mesmo tempo, essas mesmas pessoas fabricam coisas que deixam cada vez mais ricos os capitalistas. É isto que Marx chama de exploração.
— Você poderia explicar um pouco melhor esta palavra?
— Quando o trabalhador fabrica uma mercadoria, ela tem certo valor de venda.
— Sim.
— Se você descontar do preço de venda da mercadoria o salário do trabalhador e outros custos de produção, sempre acaba sobrando certa quantia. Esta quantia Marx a chama de mais-valia, ou lucro. Isto significa que o capitalista toma para si um valor que na verdade foi gerado pelo trabalhador. E é isto que Marx chama de exploração.
— Entendo.
— Pode acontecer, então, de o capitalista aplicar uma parte do lucro em novo capital, por exemplo, na modernização das instalações de produção. Ele o faz porque quer produzir as mercadorias a preços mais baixos e espera que, com isto, seus lucros aumentem.
— Sim, isso é lógico.
— Sim, isso parece lógico. Mas Marx dizia que nesse caso, como em muitos outros, as coisas não aconteciam no longo prazo exatamente como o capitalista tinha imaginado.
— O que ele queria dizer com isso?
— Marx achava o modo de produção capitalista contraditório em si. Para ele, o capitalismo era um sistema econômico autodestrutivo, sobretudo porque lhe faltava um controle racional.
— Quer dizer que no fundo isto era bom para os oprimidos, não era?
— Podemos dizer que sim. Para Marx, em todo caso, era certo que o sistema capitalista acabaria perecendo vítima de suas próprias contradições. Ele considerava o capitalismo “progressivo”, isto é, algo que aponta para o futuro, mas só porque via nele um estágio necessário a caminho do comunismo.
— Você pode me dar um exemplo de como o capitalismo seria autodestrutivo?
— Sim. Dissemos que o capitalista fica com um excedente de dinheiro e aplica uma parte deste lucro na modernização de sua empresa. É claro que paralelamente a isto ele tem de pagar as aulas de violino e também arcar com os custos de certos hábitos caros de sua esposa.
— Sem dúvida.
— Mas isto não é tão importante nesse contexto. O capitalista se moderniza, portanto; quer dizer, compra novas máquinas e por isso não precisa mais de tantos empregados. E o faz para aumentar sua competitividade em relação às outras empresas.
— Entendo.
— Mas ele não é o único que pensa assim. Isto significa que toda a produção de um setor vai sendo aos poucos racionalizada e se tornando mais efetiva. As fábricas ficam cada vez maiores e vão caindo nas mãos de uns poucos. E o que acontece depois, Sofia?
— Hum…
— Cada vez se precisa de menos mão de obra e cada vez mais trabalhadores ficam desempregados. Em decorrência disso agravam-se os problemas sociais. Tais crises, nos diz Marx, seriam o sinal de que o capitalismo estaria se aproximando de seu fim. Mas Marx vê ainda outros traços autodestrutivos no capitalismo. Para aumentar a margem de lucro ligada aos meios de produção, sem diminuir a mais-valia que garante a produção a preços competitivos… o que faz o capitalista, hein? Será que você sabe me dizer?
— Não, não sei.
— Imagine que você possui uma fábrica, as finanças não vão muito bem e você corre perigo de abrir falência. O que você pode fazer para economizar dinheiro?
— Posso baixar os salários, por exemplo.
— Muito inteligente! Isto seria realmente a coisa mais inteligente que você poderia fazer. Mas se todos os capitalistas forem tão espertos quanto você, e eles são, os trabalhadores vão ficar tão empobrecidos que não terão dinheiro para comprar mais nada. Falamos, neste caso, de uma queda do poder aquisitivo de uma sociedade. E então entramos num círculo vicioso. Marx achava que a propriedade privada capitalista estava com os dias contados e que a situação descrita acima estava bem próxima de uma situação revolucionária.
— Entendo.
— Para resumir: Marx acreditava que, no fim, os proletários iam acabar se rebelando para tomar o poder sobre os meios de produção.
— E depois?
— Segundo Marx, o resultado disso seria o surgimento de uma nova sociedade de classes, na qual o proletariado subjugaria à força a burguesia. Esta fase de transição Marx a chama de ditadura do proletariado. Depois disso, acreditava ele, a ditadura do proletariado daria lugar a uma sociedade sem classes, o comunismo. E esta seria uma sociedade na qual os meios de produção pertenceriam “a todos”, isto é, ao povo. Em tal sociedade, “cada um trabalharia de acordo com sua capacidade e ganharia de acordo com suas necessidades”. O trabalho pertenceria ao próprio povo e terminaria, assim, a alienação.
— Isto soa muito bonito. Mas foi mesmo o que aconteceu? Não houve uma revolução?
— Sim e não. Os cientistas econômicos de hoje provam que Marx estava enganado em vários pontos importantes, inclusive em suas análises das crises do capitalismo. Marx também não prestou a devida atenção à exploração da natureza, que para nós é cada vez mais ameaçadora. Apesar disso…
— Sim?
— Apesar disso, o marxismo provocou grandes transformações. Não há dúvida de que o socialismo, que se baseia em Marx em sua luta pela igualdade social, apesar de não concordar com tudo o que ele disse e apesar de rejeitar a ditadura do proletariado, por exemplo, conseguiu a muito custo chegar a uma sociedade mais humana. Na Europa, pelo menos, vivemos hoje numa sociedade mais justa e mais solidária do que viviam as pessoas na época de Marx. E não podemos negar que devemos isso ao movimento socialista como um todo.
— Dá para explicar um pouco melhor este movimento socialista?
— Depois de Marx, o movimento socialista dividiu-se em duas correntes principais: de um lado, a democracia social; de outro, o leninismo. A democracia social, cujo objetivo era encontrar um caminho paulatino e pacífico para uma ordem social mais justa, prevaleceu na Europa ocidental. Podemos chamar o caminho por ela percorrido de uma lenta revolução. O leninismo, por sua vez, que continuou a acreditar que só uma revolução seria capaz de combater a antiga sociedade de classes, ganhou importância na Europa oriental, na Ásia e na África. Cada uma dessas ramificações procura lutar a seu modo contra a penúria e a opressão.
— Mas o resultado disso não acabou sendo uma nova forma de opressão? Por exemplo, na União Soviética e no Leste europeu?
— Sem dúvida. E aqui temos mais uma vez a prova de que tudo o que o homem toca se transforma numa mistura de bem e de mal. Seria totalmente errôneo responsabilizar Marx pelos descaminhos e pelo lado negro dos chamados países socialistas cinqüenta ou cem anos depois de sua morte. O que podemos dizer é que ele poderia ter pensado que até mesmo o comunismo, se é que um dia existiria, não poderia ser administrado senão por pessoas. E as pessoas cometem erros. Não é possível querer ter o céu na terra. As pessoas sempre criarão novos problemas.
— Com toda a certeza.
— Bem, acho que podemos ir colocando um ponto final por aqui, Sofia.
— Espere um pouco! Você não disse alguma coisa parecida com “só existe justiça entre iguais”?
— Não. Foi Scrooge quem disse isto.
— Como é que você sabe que foi ele quem disse isto?
— Bem, nós dois somos frutos da imaginação do mesmo autor. Deste modo estamos muito mais ligados um ao outro do que pode parecer à primeira vista.
— Você e sua ironia incorrigível!
— Ironia em dose dupla, Sofia.
— Mas vamos voltar um pouquinho a esta questão da injustiça. Você disse que Marx considerava o capitalismo uma sociedade injusta. Como você definiria uma sociedade justa?
— John Rawls, um filósofo da moral de inspiração marxista, sugeriu uma interessante situação hipotética para ilustrar este problema: imagine que você fosse membro de um Alto Conselho, cuja tarefa fosse elaborar todas as leis de uma sociedade do futuro.
— Eu bem que gostaria de fazer parte deste Conselho.
— Os membros do Conselho teriam de pensar em absolutamente tudo, pois assim que estivessem de acordo sobre todas as questões e assinassem as leis, cairiam mortos.
— Deus meu!
— E alguns segundos depois voltariam à vida exatamente na sociedade cujas leis tinham elaborado. E agora vem o mais importante: nenhum deles saberia onde acordaria nesta sociedade, quer dizer, ninguém saberia qual seria a posição que iria ocupar dentro dela.
— Entendo.
— Tal sociedade seria uma sociedade justa, pois cada um estaria entre seus iguais.
— E cada uma entre suas iguais!
— Claro. Isto porque no jogo proposto por Rawls ninguém saberia se acordaria homem ou mulher nesta nova sociedade. E como as chances seriam de cinqüenta por cento para cada probabilidade, a sociedade seria igualmente atrativa tanto para homens quanto para mulheres.
— Isto me soa muito atraente.
— Agora, diga-me: a Europa era uma sociedade assim nos tempos de Marx?
— Não!
— Talvez você possa me dar um exemplo de uma sociedade assim em nossos dias…
— Bem… boa pergunta.
— Pense sobre o assunto. Por ora chega de Marx.
— O que você disse?
— Próximo capítulo!
CAPÍTULO 30 (EXCERTO)
DARWIN
(Páginas 430-455.)
(…)
Nem bem Alberto tinha dito “fim do capítulo”, alguém bateu na porta da cabana.
— Que outra escolha nós temos? — perguntou Sofia.
— É verdade… — murmurou Alberto.
Lá fora havia um homem muito velho, com cabelos compridos e barba. Com a mão direita segurava um bordão e com a esquerda um cartaz que mostrava um navio apinhado de animais de todas as espécies e tamanhos.
— Quem é o senhor? — perguntou Alberto.
— Meu nome é Noé.
— Eu já podia imaginar.
— Sou o teu antecessor mais antigo, meu jovem. Será que já está fora de moda reconhecer o próprio antecessor?
— O que o senhor está segurando aí? — perguntou Sofia.
— Uma gravura que mostra todos os animais que foram salvos de um grande dilúvio. Tome, minha filha, é para você.
Sofia pegou o cartaz e o velho continuou:
— E agora preciso ir para casa regar as videiras.
Deu um pequeno salto, bateu os calcanhares no ar, e saiu pulando em direção à floresta como só um homem velho, mas de muito bom humor, seria capaz de fazer.
Sofia e Alberto fecharam a porta e sentaram-se. Sofia ficou olhando a gravura e ainda não tinha conseguido ver tudo, quando Alberto a arrancou de suas mãos.
— Primeiro vamos nos concentrar nas grandes linhas.
— Está certo.
— Esqueci de mencionar que Marx passou os últimos trinta e quatro anos de sua vida em Londres. Ele se mudou para lá em 1849 e morreu em 1883. Durante todo este tempo, Charles Darwin também morou nos arredores de Londres. Ele morreu em 1882 e foi sepultado com toda a pompa e circunstância na abadia de Westminster como um dos filhos mais ilustres da Inglaterra. Mas não é apenas no tempo e no espaço que os caminhos de Marx e Darwin se cruzam. Marx quis dedicar a Darwin a versão inglesa de sua grande obra, O capital, mas Darwin não aceitou. Quando Marx morreu, um ano depois de Darwin, seu amigo Friedrich Engels disse: “Assim como Darwin descobriu a lei da evolução da natureza orgânica, Marx descobriu a lei da evolução da história humana”.
— Entendo.
— Outro pensador importante, que também podemos relacionar com Darwin, foi o psicólogo Sigmund Freud. Mais de meio século mais tarde, Freud também passou seus últimos anos em Londres. Ele dizia que tanto a teoria da evolução, de Darwin, quanto sua própria psicologia do homem haviam ferido profundamente o “egoísmo ingênuo” do homem.
— São nomes demais. Vamos falar agora de Marx, Darwin ou Freud?
— Em termos bem gerais, podemos falar de uma corrente naturalista, que se estende de meados do século XIX até bem recentemente. Por “naturalismo” entende-se uma concepção de realidade que não aceita qualquer outra realidade a não ser a natureza e o mundo fenomenológico. Conseqüentemente, o naturalista considera o homem parte da natureza e o pesquisador natural parte exclusivamente de dados concretos da natureza, e não de especulações racionalistas ou de alguma outra forma de revelação divina.
— E isto vale tanto para Marx quanto para Darwin e Freud?
— Exatamente. As palavras-chave da filosofia e da ciência em meados do século passado [XIX] eram “natureza”, “meio ambiente”, “história”, “evolução” e “crescimento”. Marx havia dito que a consciência humana era um produto da base material de uma sociedade. Darwin mostrou que o homem era o produto de uma longa evolução biológica e o estudo de Freud sobre o inconsciente deixou claro que as ações dos homens freqüentemente são devidas a certos impulsos ou instintos “animais”, próprios de sua natureza.
— Acho que estou entendendo mais ou menos o que você está chamando de naturalismo. Mas não seria melhor falarmos de um de cada vez?
— Já falamos sobre Marx. Vamos falar agora sobre Darwin. Você certamente ainda se lembra de que os pré-socráticos queriam encontrar explicações naturais para os processos da natureza. Assim como através disso eles queriam se libertar das antigas explicações mitológicas, também Darwin precisava se libertar da doutrina cristã sobre a criação do homem e dos animais, vigente em sua época.
— Mas ele foi realmente um filósofo?
— Darwin era biólogo e pesquisador natural. Mas ele foi o cientista que, mais do que qualquer outro em tempos mais modernos, questionou e colocou em dúvida a visão bíblica sobre o lugar do homem na criação.
— Então seria bom você falar um pouco sobre a teoria da evolução de Darwin.
— Vamos começar pelo próprio Darwin. Ele nasceu em 1809 na cidadezinha de Shrewsbury. Seu pai, o doutor Robert Darwin, era um médico muito conhecido na cidade e educou seu filho de forma muito severa. Quando Charles entrou para o liceu de Shrewsbury, o reitor dizia que ele era um jovem que vivia disperso, não falava coisa com coisa, se gabava sem ter motivo para isto e não fazia nada de sensato. Para o reitor, “sensato” era ficar decorando vocábulos gregos e latinos. E quando falava em viver disperso, ele estava pensando, entre outras coisas, no fato de Charles colecionar besouros de várias espécies.
— Na certa ele acabou se arrependendo de suas palavras.
— Durante a época em que cursou teologia, Darwin interessou-se mais por aves e insetos do que pelas matérias de seu curso. Por esta razão, nunca tirava boas notas em suas provas do curso de teologia. Paralelamente ao curso de teologia, porém, ele conseguiu certo reconhecimento como pesquisador natural. Darwin também se interessava por geologia, provavelmente o ramo da ciência em fase de maior expansão naquela época. Em abril de 1831, depois de ter sido aprovado em seu exame de teologia, ele viajou pelo Norte do País de Gales a fim de estudar formações rochosas e pesquisar fósseis. Em agosto do mesmo ano, com apenas vinte e dois anos, recebeu uma carta que viria a determinar todo o seu futuro…
— O que estava escrito nesta carta?
— A carta vinha de John Steven Henslow, seu amigo e professor. Nela, Henslow dizia que lhe haviam pedido para indicar o nome de um pesquisador natural a um certo capitão Fitzroy, que, a mando do governo, partiria numa expedição com a incumbência de fazer o mapa cartográfico do extremo sul da América do Sul. Na carta, Henslow dizia que havia indicado o nome de Darwin, a seu ver a pessoa mais qualificada para tal missão; dizia, ainda, que não fazia a menor idéia de quanto pagariam para o tal pesquisador, mas que a viagem duraria dois anos…
— Como você consegue se lembrar de todos estes detalhes?
— Isso é fácil, Sofia.
— E Darwin concordou com a viagem?
— Ele ficou muito entusiasmado com a idéia, mas naquela época os jovens não podiam fazer nada sem o consentimento de seus pais. Darwin pediu a seu pai, que depois de muito vaivém acabou concordando e ainda teve de pagar a viagem do filho. Quanto ao salário, soube-se depois que não havia qualquer honorário previsto para o pesquisador…
— Oh…
— O navio era da Marinha e se chamava H. M. S. Beagle. Em 27 de dezembro de 1831, o Beagle zarpou de Plymouth com destino à América do Sul e só voltou para a Inglaterra em outubro de 1836. Os dois anos inicialmente previstos transformaram-se, portanto, em cinco. É que a viagem à América do Sul acabou se transformando numa volta ao mundo. E estamos falando aqui da mais importante viagem de pesquisa realizada em tempos mais modernos.
— Eles realmente viajaram o mundo todo?
— Sim, no sentido mais profundo da palavra “viagem”. Da América do Sul, o navio seguiu viagem pelo Pacífico até a Nova Zelândia, Austrália e Sul da África. De lá, passou novamente pela América do Sul e finalmente retornou à Inglaterra. O próprio Darwin se referiu à viagem com o Beagle como o acontecimento realmente mais importante de toda a sua vida.
— Não devia ser nada fácil ser pesquisador natural no mar…
— Sim, mas no primeiro ano da viagem o Beagle ficou viajando ao longo da costa da América do Sul. Isto proporcionou a Darwin muitas oportunidades de desembarcar e de se familiarizar com este continente. Muito importantes também foram as várias e rápidas visitas às ilhas Galápagos, no oceano Pacífico, a oeste da América do Sul. Darwin conseguiu reunir um farto material de pesquisa que, aos poucos, ia sendo enviado à sua terra natal. Suas reflexões sobre a natureza e sobre a história da vida, porém, ele as guardava para si. Quando voltou para casa, aos vinte e sete anos, já era um pesquisador famoso. E dentro de si já havia também uma clara noção daquilo que viria a ser a sua teoria da evolução. Apesar disso, muitos anos ainda se passaram até que ele publicou sua obra principal. Isto porque Darwin era um homem muito cauteloso, Sofia. E este é um traço característico de um bom pesquisador natural.
— Como se chamou esta sua obra principal?
— Bem, houve muitas. Mas o livro que suscitou na Inglaterra os mais calorosos debates foi Sobre a origem das espécies, publicado em 1859. Seu título completo é On the origin of species by means of natural selection or the preservation of favoured races in the struggle for life. Na verdade, este título longo resume a teoria de Darwin.
— Então você precisa traduzi-lo para mim.
— Isto não é uma coisa muito fácil, já que os conceitos que aparecem neste título foram traduzidos de formas diferentes desde então. Uma tradução feita hoje poderia ser a seguinte: “Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural ou A preservação de raças favorecidas na luta pela vida”. Alguns preferem falar em “sobrevivência” no lugar de “preservação”, outros em “esforço pela manutenção da vida”, em vez de “luta pela vida”, que teria um “tom bélico”.
— De qualquer forma, é um título muito rico em conteúdo.
— Vamos tomar cada parte separadamente. Em Origem das espécies, Darwin defendia duas teorias ou teses principais: em primeiro lugar, ele dizia que todas as espécies de plantas e animais que vivem hoje descendem de formas mais primitivas, que viveram em tempos passados. Ele pressupõe, portanto, uma evolução biológica. Em segundo, Darwin explica que esta evolução se deve à “seleção natural”.
— Só os mais fortes sobrevivem, não é isto?
— Vamos nos concentrar primeiro na sua reflexão sobre a evolução propriamente dita. Em si, esta idéia não tinha muito de original. Em alguns círculos de estudiosos, a suposição de uma evolução biológica já era bastante difundida por volta de 1800. O porta-voz desta idéia era o zoólogo francês Jean de Lamarck. Antes dele, o avô de Darwin, Erasmus Darwin, formulou uma teoria segundo a qual as plantas e os animais teriam evoluído a partir de poucas espécies primitivas. Só que nenhum deles tinha conseguido dar uma explicação aceitável para como essa evolução se processava. Por esta razão, a Igreja não os considerava rivais muito perigosos.
— O que não foi o caso com Darwin, não é mesmo?
— Sim, e não sem razão. Tanto os membros da Igreja quanto muitos cientistas eram partidários da teoria bíblica segundo a qual as diferentes espécies de plantas e animais eram imutáveis. Para eles, cada espécie animal tinha sido criada um dia, separadamente das outras e para todo o sempre, por um ato de criação especial. Além disso, esta visão cristã estava de acordo com as concepções de Platão e de Aristóteles.
— Como?
— A teoria das idéias de Platão tinha como ponto de partida a noção de que todas as espécies animais eram imutáveis, já que cada uma tinha sido criada a partir de um modelo correspondente a uma idéia ou forma eterna. O fato de as espécies animais serem imutáveis também é uma pedra fundamental na filosofia de Aristóteles. Na época de Darwin, porém, algumas observações e descobertas colocaram em dúvida esta concepção tradicional.
— Que observações e que descobertas?
— Em primeiro lugar, a descoberta de novos fósseis e, em segundo, a descoberta de restos de esqueletos de animais extintos. O próprio Darwin ficou surpreso com o fato de se encontrarem nas montanhas fósseis de animais marinhos. Na América do Sul, ele mesmo havia feito descobertas como essas no alto dos Andes. Mas o que animais marinhos estariam fazendo no alto dos Andes, Sofia? Será que você pode me responder?
— Não.
— Alguns achavam que eram os homens ou outros animais que os haviam deixado lá em cima. Outros diziam que Deus teria criado esses fósseis e restos de animais marinhos para confundir os incrédulos.
— E qual era a opinião da ciência?
— A maioria dos geólogos era adepta de uma “teoria das catástrofes”, segundo a qual a Terra teria sido castigada muitas vezes por inundações, terremotos e outras catástrofes, capazes de destruir todas as formas de vida. A Bíblia também faz referência a uma dessas catástrofes: o grande dilúvio que levou Noé a construir sua arca. Depois de cada cataclismo, pelo menos era o que se dizia, Deus renovava a vida na Terra criando plantas e animais novos, mais evoluídos.
— Quer dizer que os fósseis seriam “marcas impressas” de todas as formas anteriores de vida, que haviam sido extintas por essas catástrofes horríveis?
— Exatamente. Dizia-se, por exemplo, que os fósseis seriam marcas de animais que não haviam encontrado mais lugar na arca de Noé. Mas quando Darwin zarpou a bordo do Beagle, levou consigo o primeiro volume de Principles of geology, do geólogo inglês Charles Lyell. Lyell considerava a atual geografia da Terra, com seus picos elevados e vales profundos, o resultado de uma evolução interminavelmente longa e lenta. Ele dizia que qualquer alteração, por menor que fosse, era capaz de causar profundas transformações geográficas, se tais processos fossem considerados à luz de grandes intervalos de tempo.
— Em que tipo de alteração ele estava pensando?
— Ele estava pensando nas mesmas forças que continuam atuando até hoje: o clima, o vento, o degelo, os terremotos e as elevações do solo. Todo mundo sabe que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. E isto não acontece por causa da força da água, mas pela constância, pela insistência das gotas. Lyell acreditava que tais alterações, pequenas e graduais, eram capazes de alterar completamente a natureza em longo prazo. E Darwin pressentiu que esta idéia não explicaria apenas o porquê de ele ter encontrado fósseis de animais marinhos no alto dos Andes. Durante toda a sua vida como pesquisador, ele nunca se esqueceu de que alterações pequenas e graduais podiam levar a transformações dramáticas, se se considerasse o fator tempo.
— E então ele achou que uma explicação parecida poderia ser aplicada também à questão da evolução dos animais, não é?
— Sim, foi exatamente isso que ele pensou. Mas, como dissemos, Darwin era um homem cauteloso. Entre as perguntas que ele se fazia e as respostas que se aventurava a dar havia sempre um bom intervalo de tempo. Deste modo, ele usou o método de todos os verdadeiros filósofos, segundo o qual “perguntar é importante, mas não é preciso se apressar com uma resposta”.
— Entendo.
— Um fator decisivo na teoria de Lyell era a idade da Terra. Em muitos círculos de estudiosos na época de Darwin era corrente a suposição de que Deus teria criado a Terra havia cerca de seis mil anos. E as pessoas tinham chegado a este número contando todas as gerações desde Adão e Eva até o presente.
— Que coisa mais ingênua!
— Bem, é muito fácil ser mais inteligente depois. Darwin estimou a idade da Terra em trezentos milhões de anos. Isto porque uma coisa era certa: nem a teoria de Lyell sobre a evolução geológica gradual, nem a teoria da evolução do próprio Darwin faziam sentido, se não fossem consideradas à luz de intervalos de tempo extremamente dilatados.
— E qual é a idade da Terra?
— Sabemos hoje que a Terra tem alguns bilhões de anos.
— Isso é bastante…
— Até agora nós nos concentramos em um dos argumentos propostos por Darwin para a evolução biológica: os depósitos estratificados de fósseis em diferentes formações rochosas. Outro argumento era a distribuição geográfica das espécies vivas. Nesse sentido, a viagem de pesquisa de Darwin proporcionou-lhe um material novo e extremamente rico. Ele havia visto com seus próprios olhos que as diferentes espécies de animais de uma região distinguiam-se umas das outras por detalhes mínimos. Foi nas ilhas Galápagos, a oeste do Equador, que ele fez algumas observações muito interessantes.
— Conte!
— As ilhas Galápagos são um grupo de ilhas vulcânicas bem próximas umas das outras. Não havia, portanto, grandes diferenças na flora e na fauna. Mas Darwin estava interessado justamente nas pequenas diferenças. Em todas as ilhas ele encontrou tartarugas gigantes, mas de ilha para ilha elas eram um pouco diferentes. Será que Deus realmente tinha criado uma espécie de tartaruga gigante para cada uma daquelas ilhas?
— Muito pouco provável.
— Mais importante ainda foi o que Darwin observou nos pássaros das ilhas Galápagos. As espécies de tentilhões variavam de ilha para ilha, o que podia ser observado nas formas dos bicos desses pássaros. Darwin conseguiu demonstrar que essas diferenças estavam intimamente relacionadas com o modo como os tentilhões se alimentavam nas diferentes ilhas. Alguns deles viviam de comer sementes de pinhas; outros se alimentavam de insetos do chão; outros ainda viviam de comer insetos dos troncos e galhos de árvores… Cada uma dessas espécies tinha um bico que se adaptava perfeitamente ao seu tipo de alimento. Não seria possível que todos esses tentilhões tivessem descendido de uma mesma e única espécie de tentilhão? E será que esta espécie de tentilhão, ao longo dos anos, não tinha se adaptado ao meio ambiente das diferentes ilhas de tal modo que, no final, haviam surgido novas espécies de tentilhões?
— Esta foi a conclusão a que ele chegou mais tarde, não foi?
— Sim. É bem provável que Darwin só tenha se tornado um “darwinista” nas ilhas Galápagos. Ele observou também que a fauna deste pequeno arquipélago tinha grandes semelhanças com muitas espécies de animais que ele tinha visto na América do Sul. Será que Deus realmente tinha criado esses animais para todo o sempre com pequenas diferenças, ou será que os próprios animais tinham se modificado ao longo do tempo? Cada vez mais Darwin duvidava de que as espécies eram imutáveis. Só que ainda lhe faltava uma explicação convincente para o modo como se processava esta evolução, ou esta adaptação ao meio ambiente. O que ele tinha era um argumento para a suposição de que todos os animais da Terra eram parentes.
— Que argumento?
— A evolução dos embriões dos mamíferos. Se você comparar os embriões de um cachorro, de um morcego, de um coelho e de um homem em seus primeiros estágios, você quase não perceberá diferença entre eles. Só numa fase posterior do desenvolvimento do embrião é que se pode distinguir entre o embrião de um homem e o de um coelho. Isto não seria indicativo de que somos parentes distantes dos coelhos?
— Mas ele continuava sem explicar como se processava a evolução para as diferentes espécies…
— A toda hora Darwin pensava na teoria de Lyell sobre as minúsculas alterações capazes de provocar grandes transformações ao longo do tempo. Só que ele não conseguia encontrar uma explicação que pudesse valer como princípio universal. É claro que ele conhecia a teoria de Lamarck, segundo a qual as diferentes espécies de animais tinham desenvolvido exatamente aquilo de que precisavam. As girafas, por exemplo, teriam um pescoço tão comprido porque, ao longo das gerações, tiveram que esticá-lo cada vez mais para apanhar as folhas das árvores. Lamarck acreditava também que as características adquiridas pelo indivíduo por meio de seu próprio esforço eram herdadas depois por seus descendentes. Mas a teoria da “hereditariedade de características adquiridas” era rejeitada por Darwin, pois Lamarck não havia conseguido provar suas afirmações. Foi então que Darwin começou a pensar em outra coisa, muito mais próxima e evidente. Podemos dizer que o verdadeiro mecanismo da evolução das espécies estava bem diante do seu nariz.
— Estou curiosa.
— Só que você mesma vai descobrir que mecanismo é este. Responda-me a seguinte pergunta: se você possui três vacas, mas só tem comida para alimentar duas, o que você faz?
— Humm… posso abater a terceira, talvez?
— Exatamente… E qual delas você abateria?
— Certamente aquela que dá menos leite.
— Você acha isso mesmo?
— Sim, é uma coisa lógica.
— Pois isso é exatamente o que os homens vêm fazendo há milênios. Mas ainda não terminamos nossa reflexão sobre as duas vacas que sobraram. Vamos supor que você queira que uma delas se reproduza. Qual você escolheria para cruzar?
— Aquela que dá mais leite. É que sua cria provavelmente também seria uma boa vaca leiteira.
— Quer dizer que você prefere as vacas que dão mais leite às que dão menos leite, não é? Pois bem, só precisamos de mais uma pergunta. Se você gosta de caçar e tem dois cães farejadores, mas precisa dar um deles, qual dos dois você manteria em casa?
— Naturalmente aquele que tem o melhor faro para o tipo de caça que eu quero.
— Ou seja, você preferiria o melhor cão farejador. E é assim, Sofia, que os homens vêm criando animais domésticos há mais de dez mil anos. Nem sempre as galinhas botaram cinco ovos por semana, as ovelhas nem sempre tiveram tanta lã e os cavalos nem sempre foram tão fortes e tão rápidos. Só que os homens fizeram uma seleção artificial. O mesmo vale para a flora. Por que semear batatas estragadas, se podemos conseguir tanchões sadios? Ninguém quer se dar ao trabalho de colher espigas sem grãos. Darwin explica que não há duas vacas, duas espigas, dois cães nem dois tentilhões que sejam iguais. A natureza apresenta uma vasta gama de variações. Mesmo dentro de uma única espécie não há dois indivíduos rigorosamente iguais. E você já deve ter percebido isto quando bebeu o líquido azul.
— Sim, é verdade!
— Em vista disso, Darwin não pôde deixar de se perguntar se na natureza não haveria um mecanismo correspondente. Seria possível que também a natureza fizesse uma seleção, neste caso “natural”, dos indivíduos que pudessem se desenvolver? E ainda: este mecanismo não poderia, ao longo do tempo, provocar o surgimento de novas espécies de plantas e animais?
— Aposto que a resposta é sim.
— Darwin ainda não tinha conseguido entender muito bem qual seria tal seleção “natural”. Mas em outubro de 1838, exatamente dois anos depois de ter retornado com o Beagle, caiu-lhe às mãos casualmente um pequeno livro de Thomas Malthus, especialista em estudos populacionais. O livro se chamava Ensaio sobre o princípio de população. Malthus buscara inspiração para escrever este livro no americano Benjamin Franklin, que entre outras coisas inventou também o pára-raios. Franklin chamava a atenção para o fato de que na natureza devia haver fatores de limitação, pois se assim não fosse uma única espécie de planta ou de animal teria se espalhado por toda a Terra. E era o simples fato de haver diferentes espécies que as mantinha em equilíbrio.
— Entendo.
— Malthus desenvolveu esta idéia e a aplicou à situação populacional da Terra. Ele dizia que a capacidade de procriação do homem é tão grande que o número de nascimentos é sempre muito superior ao número de crianças que chegam a crescer. E como a produção de alimentos nunca consegue acompanhar o crescimento populacional, um grande número de pessoas está condenado a perecer na luta pela sobrevivência. Quem consegue sobreviver, e pode assim assegurar o sustento de sua família, está entre aqueles que melhor se saíram na luta pela sobrevivência.
— Isto parece lógico.
— E era exatamente este o mecanismo universal que Darwin vinha procurando. De repente, ele achou uma explicação para o modo como a evolução se processa. E a responsável por isso tudo é a seleção natural na luta pela vida: quem melhor se adapta ao meio ambiente sobrevive e pode garantir a continuidade de sua espécie. Esta era a segunda teoria que ele publicou em seu livro Sobre a origem das espécies. Ele escreve: “O elefante se reproduz mais lentamente que os demais animais e eu me dei ao trabalho de calcular o número mínimo provável de sua procriação natural. Podemos supor com certa margem de segurança que a fase reprodutora do elefante começa aos trinta anos e vai até os noventa. Podemos supor, ainda, que durante este período ele consegue gerar seis filhotes e que vive até os cem anos. Neste caso, após setecentos e quarenta ou setecentos e cinqüenta anos haveria cerca de dezenove milhões de descendentes de um único par”.
— Isto para não falarmos das milhares de ovas de um único bacalhau.
— Darwin também explicou que a luta pela sobrevivência entre as espécies mais próximas geralmente é a mais acirrada. É que elas precisam lutar pelo mesmo alimento. E nessa hora são as pequenas diferenças, ou seja, os pequenos desvios positivos da média, que mais contam. Quanto mais acirrada a luta pela sobrevivência, mais rápida a evolução de novas espécies. E nesse contexto sobrevivem apenas os que melhor se adaptaram; todos os outros perecem.
— Quer dizer que quanto menos alimento e quanto mais crescimento tanto mais rápida é a evolução?
— Mas a questão não é só de alimento. Outro dado importante é a capacidade de escapar das garras de outros animais. Por exemplo, pode ser muito vantajoso ter uma cor de pele que funciona como camuflagem, poder correr rapidamente, pressentir a presença de predadores ou, pelo menos, ter um sabor repelente. Um veneno capaz de matar os predadores também pode ser importante. Não é por acaso que muitos cactos são venenosos, Sofia. É que quase nada além dos cactos é capaz de crescer nos desertos. Por esta razão, estas plantas estão particularmente expostas a predadores vegetarianos.
— Além disso, muitas espécies de cactos possuem espinhos.
— Outra coisa de fundamental importância é, naturalmente, a capacidade de reprodução. Darwin dedicou-se intensamente ao estudo da polinização das plantas. As flores exibem suas lindas cores e exalam doces perfumes a fim de atrair insetos que ajudam na polinização. Pelo mesmo motivo, os pássaros gorjeiam seus lindos trinados. Um boi plácido e melancólico, que não se interessa por vacas, é totalmente irrelevante para a história de sua raça. Afinal, a única tarefa deste indivíduo é atingir a maturidade sexual e procriar, a fim de dar continuidade à raça. É como uma grande corrida de revezamento. Aquele que, por alguma razão, não consegue passar o que herdou será sempre colocado de lado. Desta forma, a raça está em constante processo de aperfeiçoamento. A resistência a doenças é, sobretudo, a característica preservada nas variantes que sobrevivem.
— Quer dizer que tudo sempre se modifica para melhor?
— A constante seleção cuida para que os que melhor se adaptaram a certo meio ambiente, ou a certo nicho ecológico, continuem sobrevivendo neste meio ambiente. Mas o que pode ser uma característica positiva em determinado meio talvez não tenha qualquer valia em outro. Para alguns tentilhões das ilhas Galápagos, sua capacidade de voar era muito importante. Só que não é muito importante saber voar quando se tem de arrancar o alimento do solo e não há predadores. E justamente porque na natureza existem tantos nichos diferentes é que tantas espécies de animais se desenvolveram ao longo dos tempos.
— Mas só há uma espécie humana.
— Sim, pois o homem possui a fantástica capacidade de se adaptar às mais diversas condições de vida. Darwin ficou admirado quando viu como os índios conseguiam sobreviver ao clima frio da Terra do Fogo. Se as pessoas que vivem no Equador têm a pele mais escura do que os habitantes dos países nórdicos, isto se deve ao fato de que a pele escura funciona como um protetor solar. As pessoas muito brancas que se expõem demais ao Sol têm probabilidades muito maiores de desenvolver câncer de pele.
— A pele branca também tem alguma vantagem para os que vivem nos países nórdicos?
— É claro que sim. Se não fosse assim, todo mundo teria pele escura. O tipo de pele branca tem mais facilidade para produzir vitaminas em contato com a luz do Sol; e isto é importante nos lugares em que o Sol não aparece com tanta freqüência. Hoje em dia isto não é mais tão importante, pois podemos suprir nossas necessidades de vitaminas por meio da ingestão de certos alimentos. Mas na natureza não existe nada por acaso. Tudo se deve a pequenas modificações, cujos efeitos se fazem sentir por várias gerações.
— De fato é uma coisa fantástica.
— Não é mesmo? Bem, acho que podemos resumir a teoria da evolução de Darwin…
— Vamos lá!
— …com as seguintes palavras: as constantes variações entre indivíduos de uma mesma espécie e as elevadas taxas de nascimento constituem a matéria-prima para a evolução da vida na Terra. A seleção natural na luta pela sobrevivência é o mecanismo, a força propulsora que está por trás desta evolução. A seleção natural é responsável pela sobrevivência dos mais fortes, ou dos que melhor se adaptam ao seu meio.
— Para mim isto é tão lógico quanto um problema de matemática. Como foi recebido o livro sobre a origem das espécies?
— O livro provocou um estardalhaço. A Igreja protestou veementemente e a ciência na Inglaterra se dividiu. Na verdade, isto já era de se esperar, pois Darwin sempre tinha contestado o fato de se atribuir a Deus o ato da criação. Alguns poucos fanáticos, porém, chegaram a afirmar que seria um feito ainda maior criar algo que já trouxesse dentro de si a possibilidade latente de evoluir, em vez de criar para todo o sempre alguma coisa preestabelecida em todos os seus detalhes.
De repente Sofia deu um pulo da poltrona.
— Olhe, ali! — gritou.
E apontou para fora da janela. Lá embaixo, um homem e uma mulher passeavam de mãos dadas às margens do lago. Eles estavam completamente nus.
— São Adão e Eva — disse Alberto. — Eles não têm outra saída senão aceitar o destino que os coloca junto com Chapeuzinho Vermelho e Alice no País das Maravilhas. Por isso é que eles apareceram por aqui.
Sofia foi até à janela e acompanhou com os olhos o casal, até que os dois desapareceram no meio das árvores.
— Isto porque Darwin também acreditava que os homens descendiam dos animais, não era?
— Em 1871, ele publicou um livro intitulado The descent of man, ou “A ascendência do homem”. Nele, Darwin aponta as enormes semelhanças entre os homens e os animais e explica que os homens e os macacos antropóides haviam tido os mesmos ancestrais. Nesse meio tempo haviam sido encontrados os primeiros fósseis de cérebros de tipos humanos extintos, primeiro numa pedreira no rochedo de Gibraltar e alguns anos mais tarde em Neandertal, na Renânia. Curiosamente, houve bem menos protestos em 1871 do que em 1859, quando da publicação de Sobre a origem das espécies. Mas o primeiro livro já tinha indicado que o homem descendia dos macacos. E, como já disse, quando Darwin faleceu em 1882, ele foi solenemente sepultado como um pioneiro da ciência.
— Quer dizer que no fim da vida ele conseguiu fama e reconhecimento?
— Sim, bem no fim. Primeiro, porém, ele foi considerado o homem mais perigoso de toda a Inglaterra.
— Deus meu!
— Diz-se que uma senhora da aristocracia teria dito o seguinte: “Vamos esperar que nada disso seja verdade. Mas se for, vamos esperar que ela não se espalhe por toda a parte”. Um cientista famoso disse algo parecido: “Uma descoberta humilhante, quanto menos se falar dela, melhor”.
— Dizendo isto eles estavam provando que o homem é mesmo parente das toupeiras!
— Você tem toda razão. Mas, como já disse, é fácil ser mais inteligente depois. De uma hora para a outra, muitos se sentiram obrigados a rever suas concepções sobre a gênese do mundo e do homem descrita na Bíblia. O jovem autor John Ruskin expressou-se assim: “Ah, se estes geólogos me deixassem em paz! Ao final de cada verso da Bíblia ouço o bater de seus martelos!”.
— E o bater dos martelos eram as dúvidas quanto às palavras de Deus?
— Foi isto que ele quis dizer. Pois não só a compreensão literal da gênese descrita na Bíblia tinha ido por terra. A teoria de Darwin também dizia que variações fundamentalmente casuais teriam produzido o homem. E mais ainda: Darwin transformara o homem no produto de uma fria “luta pela sobrevivência”.
— Darwin disse alguma coisa sobre como surgem estas variações casuais?
— Você tocou agora no ponto mais fraco de sua teoria. Darwin tinha apenas noções muito vagas sobre a hereditariedade. Para ele, alguma coisa acontece no cruzamento, pois um casal nunca gera dois filhos iguais. Só isto já representa certa variação. Por outro lado, é difícil produzir algo realmente novo. Além disso, existem plantas que se reproduzem por gemação e animais que se reproduzem por simples divisão celular. A questão de saber como surgem as variações só foi devidamente incorporada à teoria de Darwin pelo chamado neodarwinismo.
— Conte!
— Basicamente, toda a vida e toda a reprodução giram em torno da divisão celular. Quando uma célula se divide, o resultado são duas células iguais com o mesmo material genético. Por divisão celular entende-se, portanto, o fato de uma célula copiar-se a si mesma.
— E então?
— Acontece que às vezes ocorrem alguns pequenos erros neste processo. E o resultado é que a célula copiada não é exatamente igual à célula-mãe. A biologia moderna chama isto de mutação. Tais mutações podem ser totalmente irrelevantes, mas também podem levar a visíveis modificações nas características do indivíduo. Elas podem ser diretamente nocivas e, neste caso, os indivíduos “mutantes” serão continuamente eliminados da enorme prole de descendentes. Muitas doenças também são causadas basicamente por uma mutação. Mas pode acontecer de uma mutação transmitir ao indivíduo exatamente aquela característica positiva de que ele precisa para se sair melhor na luta pela sobrevivência.
— Um pescoço mais comprido, por exemplo?
— A explicação de Lamarck para o pescoço comprido da girafa era a de que as girafas sempre tiveram de esticá-lo para alcançar as folhas do alto das árvores. Para o darwinismo, porém, as características adquiridas não são transmitidas aos descendentes. Darwin considerava o pescoço comprido das girafas uma variação natural dos pescoços dos ancestrais desses animais. O neodarwinismo complementa esta idéia com a referência a uma nítida causa para o aparecimento de tais variações.
— Ou seja, as mutações.
— Sim. Algumas variações absolutamente casuais no material hereditário teriam determinado em alguns ancestrais das girafas um pescoço mais comprido do que a média. Nos períodos de escassez de alimentos, isto podia ser uma característica fundamental: quem conseguisse alcançar as folhas do alto das árvores saía-se melhor. Podemos até imaginar que algumas dessas girafas “primitivas” tenham desenvolvido a capacidade de cavoucar o solo para conseguir alimento. E assim, no decorrer de um longo espaço de tempo, uma espécie já extinta acabou se dividindo em duas espécies diferentes.
— Entendo.
— Vamos citar alguns exemplos mais recentes de como funciona a seleção natural. O princípio não é complicado.
— Vamos lá!
— Existe na Inglaterra determinada espécie de mariposa que vive nos troncos acinzentados das bétulas. Se voltarmos ao século XVIII, veremos que naquela época a maioria dos exemplares dessa espécie de mariposa era de cor acinzentada. Por que será, Sofia?
— Para que não fossem facilmente descobertos por pássaros famintos.
— De vez em quando, porém, nasciam alguns exemplares de cor escura, graças a mutações puramente casuais. E o que você acha que acontecia com estes exemplares mais escuros?
— Eles podiam ser identificados com maior facilidade e se transformavam em presas fáceis para os pássaros famintos.
— Pois neste meio ambiente, ou seja, nos troncos de cor clara das bétulas, a cor escura era uma característica que colocava o indivíduo em desvantagem em relação aos outros. Por esta razão, eram sempre as mariposas claras que se multiplicavam. Acontece, porém, que o meio se modificou. Como conseqüência da industrialização, em muitas regiões os troncos das bétulas, antes claros, escureceram. E o que você acha que aconteceu com as mariposas?
— As escuras é que passaram a levar a melhor.
— Isso mesmo. E não demorou muito até que começaram a se multiplicar. Entre 1848 e 1948 o número de exemplares escuros dessa espécie de mariposa cresceu cerca de 99% em algumas regiões. O meio ambiente havia se alterado e a cor clara ficou em desvantagem em relação à escura na luta pela sobrevivência. Antes tinha sido o contrário. Os indivíduos claros eram agora os “perdedores” e eram imediatamente eliminados pelos pássaros, pois se destacavam dos outros nos troncos escuros. Só que de novo ocorreu uma importante alteração. Nos últimos anos, à medida que a indústria passou a usar menos carvão e se aperfeiçoaram os sistemas de filtragem das chaminés, o meio ambiente conseguiu se recuperar sensivelmente.
— E os troncos das bétulas voltaram a ser acinzentados?
— Sim, e por isso as mariposas também voltaram a ter sua cor clara. Chamamos isto de adaptação. E estamos falando, neste caso, de uma lei natural.
— Entendo.
— Mas ainda há outros exemplos para a intervenção do homem no meio ambiente.
— Em qual você está pensando?
— Tentou-se, por exemplo, combater ervas daninhas com diferentes tipos de pesticidas. No começo, isto pode ter levado a resultados positivos. Mas quando se tenta eliminar insetos e ervas daninhas pulverizando-se uma plantação ou um pomar com agrotóxicos, o que se provoca na verdade é uma verdadeira ecocatástrofe para os insetos e ervas daninhas que se quer combater. E como resultado das constantes mutações surge um grupo de indivíduos resistentes ao agrotóxico aplicado. Estes indivíduos “vencedores” têm maiores chances de sobrevivência e, conseqüentemente, será cada vez mais difícil combatê-los. Podemos concluir, então, que justamente porque o homem tentou eliminá-los tão drasticamente é que eles sobreviveram. Afinal, são as espécies resistentes que sobrevivem.
— Isso é de meter medo.
— De qualquer forma, é um raciocínio muito importante. Também em nosso corpo tentamos combater parasitas nocivos. Estou pensando agora nas bactérias.
— A gente toma penicilina ou outros antibióticos.
— E um tratamento à base de penicilina também representa uma ecocatástrofe para esses pequenos diabos. Só que quanto mais penicilina tomamos, mais resistentes se tornam alguns tipos de bactérias. Dessa forma, já conseguimos criar um grupo de bactérias cujo combate é muito mais difícil do que há alguns anos. Precisamos tomar antibióticos cada vez mais poderosos, mas no fim…
— No fim as bactérias vão acabar saindo pela nossa boca e então talvez tenhamos de eliminá-las a tiros…
— Também não precisa exagerar. De qualquer forma, a medicina moderna criou um sério dilema. E tem mais: não foram só as bactérias que ficaram mais fortes. Antigamente, muitas crianças não chegavam à idade adulta porque sucumbiam às mais diversas doenças infantis. Não raro eram poucas as que conseguiam sobreviver. Esta seleção natural foi de certa forma eliminada pela medicina moderna. Mas o que ajuda um indivíduo a “vingar” pode, em longo prazo, enfraquecer a força de resistência de toda a humanidade. Quer dizer, em longo prazo, o potencial hereditário da humanidade de resistir a doenças graves pode se enfraquecer.
— Que perspectiva mais sombria!
— Mas é dever de um filósofo chamar a atenção para ela. Outra questão é saber que conseqüências podemos tirar de tudo isto. Vamos tentar resumir a coisa.
— Por favor…
— Podemos dizer que a vida é uma grande loteria da qual só conseguimos ver os números ganhadores.
— O que você quer dizer com isso?
— Aqueles que tombaram na luta pela sobrevivência já desapareceram. Por trás de cada espécie de planta e de animal existem milhões de anos, ao longo dos quais novas safras de vencedores foram surgindo. E os perdedores… bem, estes só aparecem por aqui uma vez. Portanto, não há hoje uma só espécie de planta ou de animal que não possa ser chamada de vencedora na grande loteria da vida.
— Isto porque só os melhores sobrevivem.
— Sim, é mais ou menos isso. E agora me dê a gravura que este… bem, que este guarda de zoológico lhe deu.
Sofia entregou-a a Alberto. De um lado, a imagem da arca de Noé. Do outro, uma árvore genealógica das diferentes espécies de animais. Era este o lado que Alberto queria mostrar a Sofia.
— Este esquema mostra a distribuição das diferentes espécies de plantas e animais. Você pode ver que as diferentes espécies pertencem a diferentes grupos, classes etc.
— Sim.
— Junto com os macacos, o homem pertence aos chamados primatas. Os primatas são animais mamíferos e todos os mamíferos pertencem aos vertebrados, que, por sua vez, pertencem aos animais pluricelulares.
— Isto me faz pensar em Aristóteles.
— Certo. Mas o esquema não nos revela apenas a distribuição das diferentes espécies, tal como ela se apresenta hoje. Dá para ver, por exemplo, que os pássaros em algum momento se separaram dos répteis, que os répteis em algum momento se separaram dos anfíbios e que os anfíbios em algum momento se separaram dos peixes.
— Sim, isto fica claro.
— Cada uma dessas linhas divisórias surgiu em decorrência de mutações que deram origem a novas espécies. Foi assim que, ao longo de milhões de anos, surgiram os diferentes grupos e classes de animais. Só que este esquema está extremamente facilitado. Na verdade, vivem na Terra hoje mais de um milhão de espécies animais e este milhão é apenas uma fração das espécies que existiram na Terra até hoje. Você pode ver, por exemplo, que uma classe como a dos trilobites está totalmente extinta.
— E embaixo de tudo estão os animais monocelulares.
— É possível que alguns deles não tenham se modificado em dois bilhões de anos. Dá para ver também que uma linha sai desses organismos monocelulares e vai para o reino vegetal. Pois é provável que até as plantas descendam da mesma célula original, como todos os outros animais.
— Estou vendo. E agora tenho uma pergunta.
— Sim?
— De onde veio esta primeira “célula original”? Será que Darwin tem uma resposta para isto?
— Já disse que Darwin era um homem muito cauteloso. Nesse ponto, porém, ele se permite especular um pouco. E escreve:
[…] se (e como é imenso este “se”!) pudermos imaginar um pequeno tanque aquecido, dentro do qual existam todo o tipo de sais de amônia e de fósforo, luz, calor, eletricidade etc. e se imaginarmos que lá dentro uma reação química dá origem a uma proteína que, por sua vez, é capaz de sofrer alterações mais complexas […]
— Sim, e daí?
— Darwin estava “filosofando” aqui sobre a possibilidade de a primeira célula viva ter surgido a partir de matéria inorgânica. E mais uma vez ele acerta na mosca. É que a ciência de hoje parte da premissa de que a primeira forma de vida surgiu mesmo num “tanque aquecido”, exatamente como Darwin imaginou um dia.
— Prossiga!
— Um esquema será suficiente. E não se esqueça de que estamos deixando Darwin para trás e saltando para as mais recentes pesquisas sobre a origem da vida no mundo.
— É isto que me deixa nervosa: será que ninguém sabe como a vida surgiu?
— Provavelmente não. A cada dia, porém, fragmentos vêm se juntar para formar uma imagem de como a vida poderia ter surgido.
— Continue!
— Primeiro, é preciso dizer que toda a vida na Terra, tanto plantas quanto animais, é constituída exatamente pelas mesmas substâncias. A definição mais simples de vida é aquela segundo a qual tudo o que vive possui um metabolismo e pode se reproduzir de forma autônoma. Nesse sentido, todas as formas de vida são governadas por uma substância que chamamos de DNA, ou ácido desoxirribonucléico. É dele que se constituem os cromossomos, ou o material genético encontrado em todas as células vivas. O DNA é uma molécula, ou macromolécula, como também é chamado, extremamente complexa. E a pergunta aqui seria a seguinte: como surgiu a primeira molécula de DNA?
— Sim?
— A Terra surgiu há alguns bilhões de anos, quando se formou o sistema solar. No início ela era uma massa de matéria incandescente, que aos poucos foi se esfriando até formar a crosta terrestre. Soma-se a isto o fato de a ciência moderna calcular que a vida surgiu provavelmente entre três e quatro bilhões de anos atrás.
— Isto parece absolutamente improvável.
— Espere para dizer isto depois de ouvir o resto da história. Em primeiro lugar é preciso atentar para o fato de a Terra ser completamente diferente naquela época do que é hoje. Ainda não havia vida e ainda não havia oxigênio na atmosfera. O oxigênio livre só surgiu a partir da fotossíntese das plantas. E o fato de naquela época não haver oxigênio é um dado muito importante, pois não se pode conceber que os elementos constitutivos da vida, que por sua vez podem formar o DNA, tenham surgido numa atmosfera oxigenada.
— Por que não?
— Porque o oxigênio é extremamente reativo. Os elementos constitutivos da molécula de DNA teriam se oxidado muito antes de uma molécula tão complexa quanto a do DNA ter tempo de se formar.
— Entendo.
— Pela mesma razão, podemos afirmar com certeza que hoje não é possível surgir nenhuma nova forma de vida, nem mesmo uma bactéria ou um vírus. Todas as formas de vida na Terra devem ter exatamente a mesma idade. Um elefante tem uma árvore genealógica tão longa quanto a da bactéria mais simples. Talvez pudéssemos dizer que um elefante, ou uma pessoa, não passa, na verdade, de uma colônia coerente de animais monocelulares. Pois em cada uma das células de nosso corpo temos exatamente o mesmo material genético. A receita completa de quem somos está dentro de cada uma das células de nosso corpo.
— Que pensamento mais curioso…
— Um dos grandes mistérios da vida é o fato de as células de um animal pluricelular possuírem a capacidade de se especializar para uma determinada função. Isto porque nem todas as diferentes características herdadas são ativadas em todas as células. Algumas dessas características, ou genes, são “ligadas” e outras “desligadas”. Uma célula do fígado produz proteínas diferentes das de uma célula nervosa ou de uma célula da pele. Mas tanto na célula do fígado, quanto na dos nervos ou da pele, encontramos a mesma molécula de DNA, dentro da qual estão contidas todas as informações referentes ao organismo em questão.
— Continue!
— Quando ainda não havia oxigênio na atmosfera, também não havia uma camada de ozônio protetora ao redor da Terra. Isto significa que nada detinha a radiação vinda do cosmo. Pois é possível que justamente esta radiação tenha sido muito importante para a formação da primeira molécula complexa. De fato, tal radiação cósmica foi a única energia que fez as diferentes substâncias químicas na Terra se combinarem para formar macromoléculas.
— Entendi.
— Para ser mais exato: para a formação das moléculas complexas de que se compõem todas as formas de vida, era preciso que duas condições fossem satisfeitas: não podia haver oxigênio na atmosfera e a radiação cósmica tinha de poder chegar até a Terra.
— Certo.
— Dentro do “pequeno lago aquecido”, ou “sopa primordial”, como muitos cientistas gostam de dizer hoje em dia, formou-se em algum momento uma macromolécula extremamente complexa, que tinha a estranha capacidade de reproduzir-se a si mesma. E foi assim que começou a longa evolução, Sofia. Simplificando um pouco as coisas, podemos dizer que estamos falando do primeiro material genético, da primeira molécula de DNA, ou da primeira célula viva. Ela foi se subdividindo, se subdividindo, mas desde o começo ocorrem mutações. Muito tempo depois, esses organismos monocelulares se combinam para formar organismos pluricelulares. É assim que também começa a fotossíntese das plantas e, na seqüência, temos a formação de uma atmosfera que contém oxigênio. Esta, por sua vez, foi duplamente importante. De um lado, o oxigênio da atmosfera foi responsável pelo surgimento dos animais que precisam respirar o ar para viver. De outro, ela passou a proteger a vida da radiação cósmica nociva. Pois esta mesma radiação, que um dia foi uma “centelha” importante para o surgimento da primeira célula, também é nociva para todas as formas de vida.
— Mas a atmosfera não se formou da noite para o dia, não é? E como é que as primeiras formas de vida fizeram quando ainda não existia o ar?
— A vida surgiu no mar primordial, que é o que chamamos de “sopa primordial”. Ali dentro ela estava a salvo da perigosa radiação cósmica. Só muito mais tarde, depois que a vida no mar tinha formado uma atmosfera, é que os primeiros anfíbios se arrastaram para a terra. E o resto nós já sabemos. Estamos aqui nesta cabana da floresta olhando retrospectivamente para um processo que já dura três ou quatro bilhões de anos. E é precisamente em nós que este processo se conscientizou de si mesmo.
— Você está dizendo que tudo não passou de mero acaso?
— Não, eu não disse isto. O esquema que você viu aí no cartaz também mostra que a evolução segue determinada direção. Ao longo dos milhões de anos foram surgindo animais com sistemas nervosos cada vez mais complexos e com cérebros cada vez maiores. Acho que isto não foi um mero acaso. O que você acha?
— O olho humano não pode ter sido resultado de um mero acaso. Você não acha que tem um sentido o fato de podermos enxergar o mundo à nossa volta?
— Esta história do olho também era uma coisa que deixava Darwin muito intrigado. Ele simplesmente não conseguia aceitar que um órgão tão refinado quanto o olho pudesse ser um mero produto da seleção natural.
Sofia ficou olhando para Alberto. Naquele momento passou pela sua cabeça o quanto era estranho ela estar vivendo justamente aquele instante; o quanto era estranho viver uma única vez e depois nunca mais voltar à vida. E então ela exclamou:
De que serve o eterno criar,
Se a criação em nada acabar?
Alberto olhou para ela com seriedade e reprovação.
— Não fale assim, filha. Essas palavras são do diabo!
— Do diabo?
— Ou de Mefistófeles, no Fausto, de Goethe. “De que serve o eterno criar, se a criação em nada acabar?”
— E qual o sentido dessas palavras?
— Quando Fausto está à morte, e revê toda a sua vida, ele diz triunfante àquele momento solene:
Fica mais, tu que és tão belo!
Os vestígios dos meus dias na Terra
Não vão se acabar em éons.
Ao pressentir tamanha felicidade,
Experimento agora o momento supremo.
— Que bonito…
— Mas então chega a vez do diabo. Nem bem Fausto está morto, o diabo diz:
Acabou! Palavra tola! Acabou por quê?
Acabou e depois nada, a indiferença plena!
De que serve o eterno criar,
Se a criação em nada acabar?
”Acabou!” O que ler desse verbo?
É como se não tivesse existido
E ainda assim gira em círculos, tivesse ele sido.
Pois o eterno vácuo eu teria preferido!
— Que coisa mais pessimista. Gostei mais da primeira citação. Embora sua vida estivesse acabando, Fausto encontrou um sentido para ela nas marcas de seus passos que ficavam para trás.
— Pois também não é uma conseqüência da teoria de Darwin o fato de fazermos parte de algo maior, de um todo para o qual tudo é importante, até a menor forma de vida? Somos um planeta vivo, Sofia! Somos um grande barco navegando ao redor de um sol incandescente no universo. Mas cada um de nós é um barco em si mesmo, um barco carregado de genes navegando pela vida. Se conseguirmos levar esta carga ao porto mais próximo, nossa vida não terá sido em vão. Bjørnsjerne Bjørnson expressou o mesmo pensamento em seu poema Psalm II:
Bendita a primavera da vida, breve,
Cujo sopro tudo atravessa!
A forma desaparece
Enquanto o ser para a vida desperta.
Gerações se sucedem
No esforço de evoluir;
Espécie produz espécie,
Em tempos que não têm fim;
Mundos inteiros se erguem e declinam!
Mergulha nos encantos da vida, ó flor,
Na ourela da primavera;
Louvando a bondade do Eterno,
Aproveita tua curta existência.
Acrescenta a ela, criativa,
Também o teu óbolo;
Breve e hesitante,
Sopra, o quanto agüentares,
A tua parcela de vida ao dia eterno!
— Lindo!
— E agora chega. Vou dizer simplesmente “fim do capítulo”!
— Pare com esta ironia!
— Fim do capítulo!, eu disse. Faça o que eu digo!
CAPÍTULO 31 (EXCERTO)
FREUD
(Páginas 458-473.)
(…)
Alberto e Sofia ficaram parados à porta da cabana. Por fim, Alberto disse:
— É melhor entrarmos. Hoje vou contar a você sobre Freud e sua teoria do inconsciente.
Sentaram-se à janela. Sofia olhou para o relógio e disse:
— Já são duas e meia e eu ainda preciso providenciar algumas coisas para a festa.
— Eu também. Vamos falar rapidamente sobre Sigmund Freud.
— Ele foi um filósofo?
— Podemos chamá-lo de um filósofo da cultura. Freud nasceu em 1856 e estudou medicina na Universidade de Viena. Passou a maior parte de sua vida naquela cidade, justamente durante um período em que a vida cultural vienense experimentou uma fase de apogeu. Desde cedo, Freud se especializou num ramo da medicina que chamamos de neurologia. De fins do século XIX até quase meados do século XX, ele trabalhou na elaboração de sua psicologia profunda ou psicanálise.
— Explique melhor.
— Por psicanálise entende-se tanto a descrição da mente, da psique humana em geral, quanto um método de tratamento para distúrbios nervosos e psíquicos. Não pretendo fazer uma explanação detalhada sobre Freud e sua obra, mas é preciso conhecer um pouco de sua teoria do inconsciente, se quisermos entender o que é o ser humano.
— Você já conseguiu despertar meu interesse. Vamos lá!
— Freud achava que sempre havia uma tensão entre o homem e o seu meio. Para ser mais exato, uma tensão, ou um conflito, entre o próprio homem e aquilo que seu meio exigia dele. Não seria exagerado dizer que Freud descobriu o universo dos impulsos que regem a vida do homem. E isto faz dele um legítimo representante das correntes naturalistas , tão importantes em fins do século XIX.
— O que se entende por “impulso” do homem?
— Nem sempre é a razão que governa nossas ações. Conseqüentemente, o homem não é apenas o ser racional tão defendido pelos racionalistas do século XVIII. Com freqüência, impulsos irracionais determinam nossos pensamentos, nossos sonhos e nossas ações. Tais impulsos irracionais são capazes de trazer à luz instintos e necessidades que estão profundamente enraizados dentro de nós. Tão básico quanto a necessidade que um bebê tem de mamar seria, por exemplo, o impulso sexual do homem.
— Entendo.
— Talvez tudo isto não tivesse nada de novo em si. Mas Freud mostrou que essas necessidades básicas podiam vir à tona disfarçadas e tão modificadas que não seríamos capazes de reconhecer sua origem. Assim disfarçadas, elas governariam nossas ações, sem que tivéssemos consciência disso. Além disso, Freud mostrou que as crianças também têm uma espécie de sexualidade. A afirmação da existência de uma sexualidade infantil causou repulsa entre os refinados cidadãos de Viena e fez de Freud um homem extremamente impopular.
— Não me surpreende.
— Estamos falando de uma época na qual tudo o que tinha a ver com a sexualidade era tabu. Freud chegara à conclusão da existência de uma sexualidade infantil por meio de sua prática como psicoterapeuta. Ele tinha, portanto, uma sólida base empírica para fundamentar suas afirmações. Freud também constatou que muitas formas de distúrbios psíquicos eram devidas a conflitos ocorridos na infância. Aos poucos, então, Freud foi desenvolvendo um método de tratamento que podemos chamar de “arqueologia da alma”.
— O que você quer dizer com isso?
— O psicanalista pode “cavoucar” a mente do paciente, com a ajuda dele, é claro, a fim de trazer à luz as experiências e vivências que, em algum momento da vida passada, provocaram seu distúrbio psíquico. Para Freud, portanto, guardamos bem no fundo de nós todas as lembranças do passado.
— Agora estou entendendo.
— E pode ser que neste processo o terapeuta encontre uma experiência ruim que o paciente sempre tentou esquecer, mas que está bem viva e presente dentro dele e lhe rouba as forças. No momento em que tal “experiência traumática” é trazida ao consciente e o paciente tem a chance de encará-la de frente, por assim dizer, ele pode “se entender” com ela e se curar.
— Isto parece lógico.
— Mas estou avançando rápido demais. Vamos ver primeiro como Freud descreve a psique humana. Você já viu um recém-nascido?
— Tenho um primo de quatro anos.
— Quando vêm ao mundo, os bebês satisfazem suas necessidades físicas e psíquicas de forma bastante direta e desinibida. Se estão com fome, choram. E também choram quando estão com a fralda molhada ou quando querem deixar bem claro que querem um pouco de calor humano e contato físico. Freud chama de id este “princípio do prazer” que existe em nós. Quando somos recém-nascidos, quase todo o nosso ser é apenas um id.
— Prossiga.
— O id continua conosco na idade adulta e nos acompanha a vida toda. Só que aos poucos vamos aprendendo a controlar nossos desejos a fim de nos adaptarmos ao nosso meio. Em outras palavras, aprendemos a afinar nosso princípio de prazer com o princípio da realidade. Freud diz que construímos um ego e que este ego assume esta função reguladora. A partir de certa idade, embora tenhamos prazer em alguma coisa, não podemos simplesmente sentar e abrir o berreiro até que nossos desejos ou necessidades sejam satisfeitos.
— É claro que não.
— Mas pode acontecer de nós desejarmos intensamente alguma coisa que nosso meio não aceita. O que acontece é que muitas vezes reprimimos nossos desejos. Quer dizer, tentamos colocá-los de lado e esquecê-los.
— Entendo.
— Mas Freud aponta também uma terceira instância na psique humana: ainda crianças, somos confrontados com os padrões morais de nossos pais e de nosso meio. Quando fazemos alguma coisa de errado, nossos pais dizem “Não faça isto!”, ou então “Que vergonha!”. E mesmo depois de adultos podemos ouvir o eco de tais repreensões e julgamentos morais. As expectativas de nosso meio no plano da moral parecem ter se alojado dentro de nós e passado a constituir uma parte de nós mesmos. É isto que Freud chama de superego.
— Superego seria para ele sinônimo de consciência?
— Numa passagem, Freud chega a dizer textualmente que o superego se opõe ao ego como uma espécie de consciência. Na verdade, porém, trata-se do seguinte: o superego nos informa, por assim dizer, quando nossos desejos são “sujos” ou “impróprios”, e isto vale especialmente para os desejos eróticos ou sexuais. Como eu já disse, Freud constatou que tais desejos surgem bem cedo na infância.
— Me explique melhor, por favor.
— Hoje em dia sabemos e vemos que os bebês gostam de brincar com seus órgãos genitais. Podemos ver isto, por exemplo, quando vamos à praia ou à piscina. Na época de Freud, a criança de dois ou três anos que fizesse isto na frente dos outros ganhava um belo tapa na mão. Naquela época, era comum as crianças ouvirem frases tais como: “Que coisa mais feia!”, ou, “Não faça isso!”, ou ainda “Deixe as mãos para fora das cobertas!”.
— Revoltante…
— Dessa forma, as pessoas desenvolvem um sentimento de culpa. E como este sentimento de culpa é armazenado no superego, para muitas pessoas, e Freud acreditava que para a maioria delas, ele fica indissociavelmente atrelado a tudo o que diz respeito ao sexo. Ao mesmo tempo, Freud chamava a atenção para o fato de os desejos e necessidades sexuais serem uma parte natural e importante da natureza humana. E assim, minha cara Sofia, temos aqui todos os elementos de que necessitamos para um conflito entre prazer e culpa que pode nos acompanhar por toda a vida.
— Você não acha que esse conflito diminuiu um pouco desde a época de Freud?
— Certamente. Mas muitos dos pacientes de Freud viviam este conflito de forma tão intensa que chegaram a desenvolver o que Freud chamou de neuroses. Uma de suas pacientes, por exemplo, apaixonou-se por seu cunhado. Quando sua irmã morreu ainda jovem, vítima de uma enfermidade, ela pensou junto ao leito de morte da irmã: “Agora ele está livre e pode se casar comigo!”. Este pensamento naturalmente entrou em conflito direto com o seu superego. Era um pensamento tão hediondo que ela o reprimiu, como Freud diz. Quer dizer, ela o enterrou no inconsciente. Depois, aquela jovem senhora ficou doente e passou a apresentar sérios sintomas de histeria. E quando Freud assumiu o tratamento dela, ficou claro que ela tinha se esquecido completamente da cena junto ao leito de morte de sua irmã e do desejo terrível, egoísta, que sentira vir à tona dentro de si. Durante o tratamento, a paciente voltou a se lembrar da cena, reviveu aquele momento que era a causa de sua enfermidade e ficou curada.
— Agora eu estou começando a entender o que você queria dizer com “arqueologia da alma”.
— Então vamos arriscar uma descrição bem genérica da psique humana. Após um longo período de experiência com pacientes, Freud chegou à conclusão de que a consciência humana era apenas uma pequena parte da psique. A consciência seria mais ou menos como a ponta de um iceberg que se eleva para além da superfície da água. Sob a superfície, ou sob o limiar da consciência, está o subconsciente, ou o inconsciente.
— Quer dizer que o inconsciente é tudo de que nós nos esquecemos, mas que continua dentro de nós?
— Não podemos ter presente em nossa consciência, o tempo todo, todas as experiências que vivemos. Mas tudo o que pensamos ou vivemos e tudo de que nos lembramos quando pomos a cabeça para funcionar Freud chama de “pré-consciente”. A expressão “inconsciente” significa, para Freud, tudo o que reprimimos. Quer dizer, tudo de que nós queremos nos esquecer a qualquer preço porque consideramos desagradável, indecoroso ou repulsivo. Quando temos desejos e prazeres que para nossa consciência, ou para nosso superego, são insuportáveis, nós simplesmente os enfiamos no porão do inconsciente e assim nos livramos deles.
— Entendo.
— Este mecanismo funciona em todas as pessoas sadias. Para algumas pessoas, porém, o ato de banir tais pensamentos desagradáveis ou proibidos é algo tão estressante que elas ficam doentes. É que aquilo que foi reprimido desta forma continua tentando emergir para o nível da consciência, de sorte que cada vez mais energia é despendida para se manter tais impulsos longe da crítica do consciente. Em 1909, quando Freud proferiu algumas palestras nos Estados Unidos sobre a psicanálise, ele ilustrou com um exemplo muito simples o funcionamento desse mecanismo de repressão.
— Que exemplo foi este?
— Ele pediu aos ouvintes que imaginassem que no auditório havia um indivíduo que perturbava a ordem e desconcentrava o orador rindo às gargalhadas, conversando com seus vizinhos e arrastando e batendo os pés no chão. Chegaria, então, um momento em que o orador não poderia continuar a falar. Nesse momento, alguns homens fortes provavelmente se levantariam e, depois de uma breve discussão, colocariam o elemento perturbador porta afora, no corredor. O indivíduo seria “reprimido”, portanto, e o orador poderia continuar com sua palestra. Mas para evitar que o elemento perturbador tentasse forçar sua entrada de novo no auditório, os mesmos homens que o tinham colocado para fora levariam suas cadeiras até a porta e funcionariam como uma espécie de resistência para garantir a repressão. Freud concluiu dizendo que se os ouvintes imaginassem o auditório como o “consciente” e o corredor como o “inconsciente”, teriam uma boa imagem de como funciona o processo de repressão.
— Também acho que a imagem é boa.
— Uma coisa é certa: o elemento perturbador vai querer entrar novamente na sala de conferências, Sofia. Em todo caso, é isto o que querem nossos pensamentos e impulsos reprimidos. Vivemos sob a constante pressão de pensamentos reprimidos, que tentam se libertar do inconsciente. Por isso é que muitas vezes dizemos e fazemos coisas que na verdade “não tínhamos a intenção de fazer”. Dessa forma, o inconsciente também pode guiar nossos sentimentos e ações.
— Você poderia me dar um exemplo?
— Freud descreve vários desses mecanismos. Um deles é o chamado ato falho, ou seja, algo que dizemos ou fazemos espontaneamente e que um dia tínhamos reprimido. Ele fala, por exemplo, de um empregado que foi escolhido para fazer um brinde ao seu chefe, de quem ninguém gostava.
— Sim?
— O empregado se levantou, ergueu o copo e disse: “Convido todos a arrotarem em homenagem a nosso chefe!”.
— Legal!
— Não foi o que o chefe achou. Ao dizer isto, o empregado simplesmente tinha expressado o que realmente achava de seu chefe. Talvez nunca tivesse ousado dizê-lo abertamente a ele. Você quer mais um exemplo?
— Sim.
— Certo dia, o bispo foi visitar a família de um pastor, que era pai de umas meninas adoráveis e muito comportadas. Este bispo tinha um nariz enorme, fora do comum. O pastor teve o cuidado, então, de pedir às suas filhas que não mencionassem nada a respeito do nariz do bispo. É que as crianças geralmente começam a rir quando percebem essas coisas, pois ainda não têm o mecanismo de repressão muito bem desenvolvido.
— E o que aconteceu?
— O bispo veio até a paróquia e as meninas, absolutamente deliciadas com a situação, faziam todo o esforço possível para não dizer nada a respeito do nariz. E mais: elas não podiam sequer ficar olhando para o nariz. Tinham de esquecê-lo completamente. Só que elas ficavam pensando no nariz do bispo o tempo todo. E quando chegou a hora de a menorzinha oferecer ao honorável bispo açúcar para o café, ela disse: “O senhor aceita um pouco de açúcar no nariz?”.
— Putz!
— Às vezes nós também racionalizamos, quer dizer, tentamos mostrar a nós mesmos, e aos outros, que temos outros motivos para fazer o que fazemos em certas situações, e não revelamos os reais motivos que nos levaram a agir de certa maneira, simplesmente porque eles são constrangedores demais.
— Um exemplo, por favor.
— Posso hipnotizar você e induzi-la a abrir a janela. Para tanto, ordeno a você que se levante e abra a janela quando eu tamborilar com os dedos sobre a mesa, por exemplo. Quando eu faço isto, você se levanta e abre a janela. Depois pergunto a você por que você abriu a janela. Talvez você me responda que o fez porque estava muito quente aqui dentro. Mas este não é o verdadeiro motivo. Você não quer admitir para si mesma que obedeceu à minha ordem enquanto estava hipnotizada. E o que você faz? Você “racionaliza”, Sofia.
— Entendo.
— Coisas como esta acontecem quase todos os dias quando nos relacionamos com os outros.
— Eu já disse a você que tenho um priminho de quatro anos. Acho que ele não tem muitos amigos para brincar, pois ele sempre fica muito contente quando eu vou visitá-lo. Certa vez eu disse que precisava voltar logo para casa, pois minha mãe estava me esperando. E sabe o que ele me disse?
— Não.
— “Sua mãe é uma chata”, foi isto o que disse.
— Sim, este é um bom exemplo para o que entendemos por racionalizar. O menino realmente não quis dizer que sua mãe é uma chata. Ele quis dizer que achava chato que você tivesse de ir embora. Só que para ele não era muito fácil verbalizar isto. Outra coisa que pode acontecer é que nós projetamos.
— Traduza, por favor.
— Quando projetamos alguma coisa estamos transferindo a outros as características que tentamos reprimir em nós mesmos. Uma pessoa avarenta, por exemplo, gosta de ficar dizendo que os outros são avarentos. Alguém que não quer admitir que pensa muito em sexo geralmente é o primeiro a se irritar quando encontra outras pessoas fissuradas por sexo.
— Entendo.
— Freud dizia que nossa vida cotidiana está repleta de tais ações inconscientes. Muitas vezes nos esquecemos do nome de certa pessoa, ficamos mexendo numa pontinha de nossa roupa enquanto estamos falando ou então ficamos mudando de posição objetos aparentemente sem importância. Ou podemos tropeçar em nossas próprias palavras e acabar trocando letras e nomes, que à primeira vista podem parecer totalmente inocentes, mas que na verdade não são. Freud pelo menos não considera essas coisas tão inocentes e casuais como podemos achar. Ele acha que elas deveriam ser encaradas como sintomas. Para ele, esses atos falhos podem nos revelar segredos os mais íntimos.
— Daqui para frente, vou prestar bastante atenção em cada palavra que disser.
— Mesmo assim, você não poderá escapar de seus impulsos inconscientes. O segredo está em não se desgastar demais ao se empurrar as coisas desagradáveis para o subconsciente. É como querer tapar o buraco de uma toupeira. Você pode até conseguir, mas com certeza ela virá à superfície em algum outro ponto. O mais sadio é deixar só encostada a porta entre o consciente e o subconsciente.
— Se trancarmos a porta à chave podemos provocar distúrbios psíquicos em nós mesmos?
— Sim. Um neurótico é justamente alguém que despende energia demais na tentativa de banir de seu consciente tudo aquilo que o incomoda. Com freqüência trata-se de reprimir experiências bem específicas. São as chamadas “experiências traumáticas”, que eu já mencionei no início de nossa conversa, talvez um pouco cedo demais. Freud as chama de traumas. A palavra “trauma” é grega e significa “ferida”.
— Entendo.
— Em seus tratamentos, às vezes Freud tentava abrir cuidadosamente estas portas trancadas; outras vezes, procurava abrir outra porta. Com a colaboração do paciente, ele tentava trazer à tona novamente as experiências reprimidas. Isto porque o paciente não tem consciência de que as reprimiu. Não obstante, ele deseja que o médico, ou o analista, como se diz em psicanálise, o ajude a encontrar um caminho que o leve a seus traumas escondidos.
— E como o médico procede neste caso?
— Freud chamava este procedimento de técnica da livre associação. Isto significa que ele deixava o paciente deitado, bem relaxado, falando apenas sobre coisas que lhe viessem à cabeça, por mais irrelevantes, casuais, desagradáveis ou penosas que elas lhe fossem. Para o analista, as associações do paciente no divã trazem indícios de seus traumas e das resistências que impedem a conscientização. Pois são exatamente os traumas que ocupam os pacientes o tempo todo, só que não de forma consciente.
— Quer dizer que quanto mais a gente se esforça para esquecer uma coisa, mais a gente pensa inconscientemente nela?
— Exatamente. Por isso é importante prestar atenção aos sinais do inconsciente. Para Freud, o “caminho real” que leva para o inconsciente passa pelos sonhos. Por esta razão, uma de suas mais importantes obras é o livro A interpretação dos sonhos, publicado em 1900. Nele, Freud mostra que nossos sonhos não são meros acasos. Por meio dos sonhos, nossos pensamentos inconscientes tentam se comunicar com nosso consciente.
— Continue.
— Após longos anos de experiências acumuladas no trabalho com seus pacientes, e também depois de ter analisado os seus próprios sonhos, Freud afirmou que todos os sonhos são a realização de desejos. Ele dizia que podemos observar isto claramente nas crianças: elas sonham com sorvetes e cerejas, por exemplo. Em adultos, porém, acontece com freqüência de os desejos a serem satisfeitos no sonho aparecerem disfarçados. Isto acontece porque mesmo quando estamos dormindo uma censura severa continua a determinar o que podemos nos permitir ou não. Quando estamos dormindo, esta censura, ou mecanismo de repressão, é mais fraca do que quando acordados, mas ainda é forte o bastante para desfigurar no sonho os desejos que não queremos confessar nem a nós mesmos.
— E é por isso que os sonhos têm de ser interpretados?
— Freud mostra que precisamos distinguir entre o sonho, tal como ele nos vem à lembrança na manhã seguinte, e o seu verdadeiro significado. As próprias imagens oníricas, quer dizer, o filme ou o vídeo a que assistimos quando sonhamos, ele as chamou de conteúdo manifesto do sonho. Mas o sonho também tem um significado mais profundo, que permanece inacessível ao consciente. E este significado, Freud o chamou de pensamentos latentes do sonho. As imagens oníricas e seus requisitos são geralmente tiradas do passado mais próximo, com freqüência dos acontecimentos que vivemos no dia anterior. Os pensamentos ocultos, porém, vêm de um passado mais remoto; por exemplo, das primeiras fases de nossa infância.
— Quer dizer que precisamos analisar o sonho para entender do que ele trata realmente.
— Sim. E os enfermos precisam fazer isto junto com um terapeuta. Mas não é o médico que interpreta os sonhos. Ele só pode fazer isto com a ajuda do paciente. O médico entra nessa situação apenas como uma parteira socrática que ajuda na interpretação.
— Entendo.
— O ato de reformular, de converter os “pensamentos latentes do sonho” em “conteúdo manifesto do sonho” é chamado por Freud de trabalhar o sonho. Podemos falar de um “mascaramento” ou de uma “codificação” da verdadeira ação que se desenrola no sonho. Na interpretação do sonho, temos de passar por um processo inverso. Temos de desmascarar ou decodificar o verdadeiro “motivo” do sonho, a fim de podermos descobrir o verdadeiro “tema” do sonho.
— Você poderia me dar um exemplo?
— Os livros de Freud estão cheios desses exemplos. Mas nós mesmos podemos inventar um exemplo bem simples e bem freudiano. Quando um rapaz sonha que sua prima lhe deu dois balões de ar…
— Sim?
— Não espere que eu continue. Você mesma deve tentar interpretar esse sonho agora.
— Hum… Neste caso, o “conteúdo manifesto do sonho” é exatamente isto que você disse: a prima dele lhe dá dois balões de ar.
— Continue.
— E você também disse que os requisitos de nossos sonhos geralmente são tirados das experiências vividas no dia anterior. Portanto, ele deve ter ido a um parque de diversões no dia anterior, ou então viu no jornal a foto de dois balões de ar.
— Sim, pode ser. Mas também pode ser que ele tenha apenas ouvido a palavra “balão” ou visto alguma coisa que o tenha feito lembrar de um balão.
— Mas o que são os “pensamentos latentes do sonho”? Eles não são aquilo de que o sonho realmente trata?
— Quem está interpretando sonhos aqui é você.
— Será que ele simplesmente não estaria querendo dois balões?
— Não, isto é pouco provável. Num ponto, porém, você tem razão: ele quer satisfazer um desejo no sonho. Só que dificilmente um rapaz adulto desejaria assim tão ardentemente dois balões de ar. E, se quisesse, não seria necessário sonhar com isso.
— Então… acho que na verdade ele deseja a sua prima. E os dois balões são os seios dela.
— Sim, esta é uma explicação provável, sobretudo porque este desejo lhe causa certo embaraço, de modo que ele não gosta de admiti-lo quando está acordado.
— Quer dizer que nossos sonhos dão umas voltas e passam por coisas como balões etc.?
— Sim. Freud considerava o sonho a realização disfarçada de desejos disfarçados. Pode ser que o que disfarçamos tenha se modificado consideravelmente desde que Freud conversava com seus pacientes em seu consultório em Viena. Apesar disso, é possível que o mecanismo de disfarce continue intacto.
— Entendo.
— Nos anos 20, a psicanálise de Freud se tornou muito importante, sobretudo no tratamento das neuroses. Além disso, sua teoria do inconsciente foi muito importante para a arte e a literatura.
— Você está querendo dizer que os artistas passaram a se ocupar mais da vida mental inconsciente do homem?
— Exatamente, embora isto já estivesse presente na literatura da última década do século XIX, quando a psicanálise de Freud ainda não era conhecida. Só estou querendo dizer que não é por acaso que a psicanálise de Freud surgiu exatamente nesta época.
— Você quer dizer que ela já estava embutida no espírito da época?
— Freud não acreditava ter descoberto, por assim dizer, fenômenos como a repressão, os atos falhos ou a racionalização. Mas ele foi o primeiro a trazer para dentro da psiquiatria tais experiências humanas. Ele também soube ilustrar muito bem sua teoria com exemplos extraídos da literatura. Mas, como eu disse, a psicanálise de Freud passou a influenciar diretamente a arte e a literatura a partir dos anos 20.
— De que forma?
— Escritores e pintores passaram a tentar aplicar as forças inconscientes em seus trabalhos de criação. E isto vale sobretudo para os chamados surrealistas.
— O que significa isto?
— A expressão “surrealismo” é francesa e significa algo como “aquilo que está além do realismo”. Em 1924, André Breton publicou seu Manifesto surrealista. Nele, Breton declara que a arte deveria ser criada a partir do inconsciente, pois só assim a inspiração do artista estaria livre para produzir suas imagens oníricas e o artista poderia buscar um “super-realismo”, no qual as barreiras entre sonho e realidade fossem abolidas. De fato, pode ser muito importante para um artista eliminar a censura do consciente, a fim de que palavras e imagens possam fluir livremente.
— Entendo.
— De certa forma, Freud tinha dado a prova de que todas as pessoas são artistas. Afinal, um sonho é uma pequena obra de arte e a cada noite criamos novos sonhos. Para interpretar os sonhos de seus pacientes, Freud freqüentemente tinha de abrir caminho através de um denso emaranhado de símbolos, mais ou menos como fazemos quando interpretamos um quadro ou um texto literário.
— E nós sonhamos todas as noites?
— Pesquisas recentes demonstraram que vinte por cento do tempo que passamos dormindo é preenchido por sonhos. Isto significa que sonhamos de duas a três horas por noite. Quando somos perturbados durante essas fases, reagimos com nervosismo e irritação. Isto significa nada mais e nada menos que todas as pessoas têm uma necessidade inata de dar à sua situação existencial uma expressão artística. O sonho trata de nós mesmos. Somos nós quem dirigimos este “filme”, juntamos tudo o que compõe os seus cenários e requisitos e desempenhamos todos os papéis. As pessoas que dizem que não entendem nada de arte são pessoas que se conhecem mal.
— Entendo.
— Além disso, Freud deu uma prova impressionante de como é fantástica a mente humana. Seu trabalho com pacientes convenceu-o de que guardamos no fundo de nossa mente tudo o que vimos e vivemos. E todas essas impressões podem ser trazidas à tona novamente. Todas as vezes que nos dá “um branco” e, pouco depois, ficamos com o que queremos lembrar “na ponta da língua”, e quando, um pouco mais tarde ainda, a coisa “subitamente nos ocorre”, estamos falando de algo que estava no inconsciente e, de repente, encontrou uma porta entreaberta e conseguiu escapar para o consciente.
— Mas às vezes isto demora muito.
— Sim, todos os artistas sabem disso. Só que de repente todas as portas e gavetas do arquivo parecem se abrir. Tudo flui espontaneamente e então podemos escolher exatamente as palavras e as imagens de que precisamos. Isto acontece quando deixamos a porta do inconsciente entreaberta. Podemos chamar isto de inspiração, Sofia. E então temos a sensação de que aquilo que desenhamos ou escrevemos não veio de nós.
— Deve ser um sentimento maravilhoso.
— Mas com certeza você mesma já o experimentou. Podemos observar facilmente este estado inspirado em crianças que estão supercansadas. Neste estado, as crianças parecem mais acordadas do que nunca e começam a falar sem parar, tirando da memória palavras que elas ainda nem aprenderam. Só que é claro que elas já aprenderam. Acontece que essas palavras estavam “latentes” no seu consciente e só agora, quando o cansaço relaxa o policiamento e abole a censura, elas podem vir à tona. Para o artista, a situação é diferente. Mas também para ele pode ser importante que a razão e a reflexão não exerçam um controle tão rigoroso sobre aquilo que melhor pode se desenvolver espontânea, livre e inconscientemente. Posso contar uma fábula que ilustra muito bem o que estou dizendo?
— Claro!
— É uma fábula muito séria e muito triste.
— Pode começar.
— Era uma vez uma centopéia que sabia dançar excepcionalmente bem com suas cem perninhas. Quando ela dançava, os outros animais da floresta reuniam-se para vê-la e ficavam muito impressionados com sua arte. Só um bicho não gostava de assistir à dança da centopéia: uma tartaruga.
— Na certa porque tinha inveja.
— “Como será que eu posso conseguir fazer a centopéia parar de dançar?”, pensava ela. Ela não podia simplesmente dizer que a dança da centopéia não lhe agradava. E também não podia dizer que sabia dançar melhor que a centopéia, pois ninguém iria acreditar. Então ela começou a bolar um plano diabólico.
— Que plano era esse?
— A tartaruga pôs-se, então, a escrever uma carta endereçada à centopéia: “Oh, incomparável centopéia! Sou uma devota admiradora de sua dança singular e gostaria muito de saber como você faz para dançar. Você levanta primeiro a perna esquerda número 28 e depois a perna direita número 59, ou começa a dançar erguendo a perna direita número 26 e depois a perna esquerda número 49? Espero ansiosa por sua resposta. Cordiais saudações, a tartaruga”.
— Que coisa de doido!
— Quando a centopéia recebeu esta carta, refletiu pela primeira vez na sua vida sobre o que fazia de fato quando dançava. Que perna ela movia primeiro? E qual perna vinha depois? E você sabe, Sofia, o que aconteceu?
— Acho que a centopéia nunca mais dançou.
— Foi isso mesmo. E é exatamente isto que pode acontecer quando o pensamento sufoca a imaginação.
— É triste mesmo esta história.
— Para um artista, portanto, pode ser muito importante “se deixar levar”. Os surrealistas tentavam se aproveitar disso e buscavam um estado em que tudo parecia brotar espontaneamente. Eles sentavam-se à frente de uma folha de papel em branco e começavam a escrever, sem pensar no que estavam escrevendo. Era isto o que chamavam de escrita automática. Na verdade, a expressão vem do espiritismo, em que um “médium” acredita que o espírito de alguém que já morreu está dirigindo sua mão ao escrever… Mas acho melhor continuarmos falando amanhã sobre essas coisas.
— Tudo bem.
— O artista surrealista também é, de certa maneira, um médium. Ele é um médium de seu próprio subconsciente. Contudo, é possível que haja uma pontinha de inconsciente em todo processo criativo. Pois o que seria isto que chamamos de “criatividade”?
— Ser criativo não significa criar algo de novo e de único?
— Mais ou menos. E isto ocorre por meio de uma delicada interação entre imaginação e razão. Na maioria das vezes, a razão sufoca a imaginação; e isto é ruim, pois sem imaginação não é possível produzir nada de novo. Eu vejo a imaginação como um sistema darwinista.
— Desculpe, mas esta eu não entendi.
— O darwinismo explica que a natureza produz um mutante atrás do outro. Mas a natureza só precisa de alguns poucos desses mutantes. Só alguns poucos têm a chance de viver.
— E então?
— O mesmo acontece quando pensamos, quando estamos inspirados e temos muitas e novas idéias. Nesse caso, nossa cabeça produz um “pensamento mutante” atrás do outro. Quer dizer, isto se nós não nos impusermos uma censura muito severa. Acontece que só vamos usar realmente alguns desses pensamentos. E é aqui que entra a razão, pois ela também tem uma função importante. Quando temos sobre a mesa o resultado da pesca, não podemos esquecer de escolher os peixes.
— Esta é uma ótima comparação.
— Imagine se tudo o que nos “ocorre”, se cada lampejo de pensamento tivesse autorização para sair da nossa boca! Ou então para saltar do bloco de apontamentos ou sair das gavetas da escrivaninha! O mundo se afogaria bem depressa num mar de idéias e lembranças casuais. E não haveria uma “seleção”, Sofia.
— E a razão escolhe as melhores entre todas as idéias e lembranças?
— Sim, ou você não acha? A imaginação pode criar coisas novas, mas não é ela que realmente escolhe. Não é a imaginação que “compõe”. Uma composição, e toda obra de arte é uma composição, surge de uma admirável interação entre imaginação e razão, ou entre sentimentos e pensamentos. O processo artístico tem sempre um elemento de casualidade. Em certa fase pode ser importante não represar essas idéias e lembranças casuais. As ovelhas precisam ser soltas primeiro para só depois o pastor poder vigiá-las.
(…)
CAPÍTULO 32 (EXCERTO)
NOSSO PRÓPRIO TEMPO
(Páginas 482-501.)
(…)
Na manhã seguinte, Sofia foi acordada por sua mãe, que queria lhe desejar um bom dia antes de ir para o trabalho. Ela entregou a Sofia uma pequena lista de coisas que deveriam ser compradas na cidade para a festa.
Nem bem ela tinha saído de casa, o telefone tocou. Era Alberto. Ele sabia muito bem quando Sofia estava sozinha em casa.
— Como vai o plano secreto?
— Psiu! Nenhuma palavra! Não podemos dar a ele a menor chance de pensar a respeito disso.
— Acho que consegui direitinho desviar a atenção dele ontem.
— Ótimo.
— E quanto à filosofia?
— É justamente por causa disso que estou ligando. Já chegamos ao nosso século [XX] e daqui para a frente você vai ter de se virar sozinha. As bases para isto você já tem, mas ainda vamos nos encontrar mais uma vez para falarmos um pouco sobre o nosso próprio tempo.
— Preciso ir até a cidade…
— Tanto melhor. Eu acabei de dizer que vamos conversar sobre o nosso tempo.
— E daí?
— Seria bom, portanto, estarmos bem no meio da agitação, por assim dizer.
— E vamos nos encontrar na sua casa?
— Não, aqui não. A casa está toda revirada porque estou procurando microfones escondidos.
— Ah…
— Na praça do mercado tem um café que foi inaugurado há pouco tempo. É o Café Pierre. Você conhece?
— Conheço. A que horas vamos nos encontrar?
— Ao meio-dia.
— Então até meio-dia, no Café Pierre.
— Até lá.
Dois minutos depois do meio-dia, Sofia entrou no Café Pierre. Era um desses cafés que estão na moda, com mesinhas redondas, cadeiras pretas e garrafas viradas de cabeça para baixo sobre dispositivos para dosagem automática de bebidas.
Não era um local muito grande e a primeira coisa que Sofia percebeu foi que Alberto ainda não tinha chegado. Quase todas as mesas estavam ocupadas, mas Sofia olhou cada um daqueles rostos e viu que nenhum deles era de Alberto.
Ela não estava acostumada a ir sozinha a esses lugares. Não seria melhor simplesmente dar meia-volta e voltar um pouco mais tarde para procurar Alberto?
Foi até ao balcão de mármore e pediu uma xícara de chá com limão. Depois pegou a xícara de chá e foi até uma mesa que estava desocupada. De lá ficou olhando a porta de entrada do café. As pessoas entravam e saíam, e tudo que Sofia via era que Alberto não chegava.
Se pelo menos ela tivesse trazido um jornal!
Finalmente, começou a olhar para os que estavam à sua volta. Por vezes seu olhar foi retribuído e por um instante ela se sentiu uma pessoa adulta. É certo que só tinha quinze anos, mas podia tranqüilamente passar por dezessete – ou pelo menos por dezesseis e meio.
O que será que aquelas pessoas sentadas no café pensavam sobre suas vidas? Sofia teve a impressão de que eles estavam ali por estar e que tinham ido ao café apenas para quebrar a rotina. Todos falavam muito e gesticulavam bastante, mas não parecia que estivessem falando sobre alguma coisa importante.
Sofia pensou em Kierkegaard, para quem o burburinho de vozes era o sinal mais evidente das multidões. Será que todas aquelas pessoas viviam no estágio estético? Ou será que havia alguma coisa que fosse existencialmente importante para elas?
Numa das primeiras cartas, Alberto escrevera que os filósofos se parecem com as crianças. E de novo Sofia teve medo de se transformar em adulto. E se ela também passasse a viver confortavelmente lá no fundo da pelagem do coelho que tinha sido tirado da cartola preta do universo?
Enquanto pensava sobre tudo isto, Sofia olhava de vez em quando para a porta do café. E de repente Alberto entrou apressado. Mesmo em pleno verão ele usava uma boina preta. Fora isto, usava também um casaco cinza “espinha de peixe” até a altura do quadril. Ele a viu imediatamente e veio até à mesa. Sofia pensou que se encontrar com ele em público era uma coisa absolutamente nova.
— Já é meio-dia e quinze! Você está atrasado!
— Isto se chama o quarto de hora acadêmico. Posso convidá-la para almoçar?
Sentou-se e olhou-a nos olhos. Sofia sacudiu os ombros, indiferente.
— Para mim, tanto faz. Um sanduíche, talvez.
Alberto foi até ao balcão. Pouco depois voltou com uma xícara de café e duas baguetes enormes recheadas de queijo e presunto.
— Foi caro?
— Não, Sofia.
— Será que você não tem pelo menos uma desculpa por ter se atrasado tanto?
— Não, não tenho, pois foi de propósito que me atrasei. Já vou explicar por quê.
Deu umas mordidas com vontade na sua baguete e depois disse:
— Vamos falar hoje sobre o nosso século [XX].
— Aconteceu alguma coisa de filosoficamente interessante nele?
— E como! Tanto que há correntes seguindo em todas as direções. Primeiro vou contar alguma coisa sobre o existencialismo. O termo designa um conceito “guarda-chuva”, sob o qual se acomodam diversas correntes filosóficas que têm como ponto de partida a situação existencial do homem. Costumamos falar também da filosofia existencialista do século XX. Alguns filósofos existencialistas seguiram a tradição de Kierkegaard; outros, a de Hegel e Marx.
— Certo.
— Um filósofo muito importante para o século XX foi o alemão Friedrich Nietzsche, que viveu de 1844 a 1900. Nietzsche também reagiu à filosofia de Hegel e ao “historicismo” alemão que dela resultou. Ele atribuía a Hegel e a seus sucessores um interesse anêmico pela história e confrontava este interesse com a própria vida. É muito conhecida a sua reivindicação por uma “revalorização de todos os valores”, sobretudo da moral cristã, que ele chamava de “moral escrava”, para que o curso da vida dos fortes não fosse mais obstruído pelos fracos. Para Nietzsche, o cristianismo e a tradição filosófica tinham se afastado do mundo e se voltado para o “céu” ou para o “mundo das idéias”. Esses dois últimos teriam se transformado no “verdadeiro mundo” e, na verdade, não passavam de aparência. “Sede fiéis à Terra”, ele dizia, “e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças além deste mundo!”
— Bem…
— Um filósofo que foi influenciado tanto por Kierkegaard quanto por Nietzsche foi o existencialista alemão Martin Heidegger, que não vamos abordar aqui, porque queremos nos concentrar no existencialista francês Jean-Paul Sartre. Sartre viveu de 1905 a 1980 e foi o filósofo existencialista por excelência, pelo menos para o grande público. Foi nos anos 40, logo depois da guerra, que ele desenvolveu a sua filosofia. Mais tarde aliou-se ao movimento marxista na França, mas nunca chegou a se filiar a um partido.
— Por isso é que estamos nos encontrando num café francês?
— De qualquer forma, não é por mero acaso que estamos aqui. Aliás, o próprio Sartre era um assíduo freqüentador de cafés. E foi num café como este que ele conheceu Simone de Beauvoir, companheira de toda a sua vida. Ela também era uma filósofa existencialista.
— Puxa! Até que enfim uma filósofa!
— Exatamente.
— Sinto um alívio ao ver que a humanidade finalmente começa a se civilizar.
— Mas nossa época também é uma época de muitas e novas preocupações.
— Você falava do existencialismo…
— Sartre disse: “O existencialismo é humanismo”. Com isto ele queria dizer que o existencialismo tem como ponto de partida única e exclusivamente o homem. Talvez possamos acrescentar que o humanismo de Sartre vê a situação do homem de uma maneira diferente e mais sombria do que o humanismo que conhecemos do Renascimento.
— E por quê?
— Kierkegaard e outros filósofos existencialistas de nosso século [XX] eram cristãos. Sartre, ao contrário, representava aquilo que podemos chamar de existencialismo ateu. Podemos considerar sua filosofia uma análise impiedosa da situação humana quando “Deus está morto”. A famosa expressão “Deus está morto” é de Nietzsche.
— Continue.
— Como em Kierkegaard, o conceito-chave por excelência na filosofia de Sartre é a palavra existência. Aqui, existência não significa simplesmente “estar vivo”. As plantas e os animais também “existem” no sentido de que estão vivos, mas são poupados da indagação sobre o que isto significa. O ser humano é o único ser vivo consciente de sua existência. Sartre diz que as coisas físicas só são “em si”, ao passo que o homem também é “para si”. Ser uma pessoa é, portanto, diferente de ser uma coisa.
— Concordo plenamente.
— Sartre afirma ainda que a existência do homem precede todo e qualquer sentido desta mesma existência. Em outras palavras, o fato de que sou é anterior à questão de saber o que sou. “A existência precede a essência”, ele dizia.
— Isto parece um tanto complicado.
— Entendemos por “essência” aquilo que uma coisa realmente é, a “natureza” dessa coisa. Para Sartre, porém, o homem não possui tal natureza. O homem precisa primeiro criar-se a si mesmo. Ele precisa criar sua própria natureza, sua própria essência, já que ela não lhe é dada de antemão.
— Acho que entendo o que você quer dizer.
— Por toda a história da filosofia, os filósofos tentaram responder à pergunta sobre o que o homem é, ou o que é a natureza humana. Sartre, ao contrário, acha que o homem não possui esta “natureza” eterna a que se apegar. Por isso é que, para Sartre, não faz sentido perguntar pelo sentido da vida em geral. Em outras palavras, estamos condenados à improvisação. Somos como atores que são colocados num palco sem termos decorado um papel, sem um roteiro definido e sem um “ponto” para nos sussurrar ao ouvido o que devemos dizer ou fazer. Nós mesmos temos de decidir como queremos viver.
— De alguma forma isto também está certo. Se folhearmos a Bíblia, ou um livro de filosofia, teríamos dificuldade em encontrar uma fórmula sobre como devemos viver.
— Pronto, você já entendeu. Mas Sartre diz que quando o homem percebe que existe e que um dia terá de morrer, e sobretudo quando não vê qualquer sentido nisto tudo, ele passa a experimentar o medo. Você deve se lembrar ainda de que o medo também era muito importante na descrição que Kierkegaard fez do homem numa situação existencial.
— Sim.
— Sartre também diz que o homem se sente alienado num mundo sem sentido. Quando descreve a “alienação” do homem, Sartre retoma os pontos centrais do pensamento de Hegel e de Marx. O sentimento do homem de ser um estranho no mundo, diz Sartre, leva a uma sensação de desespero, tédio, náusea e absurdidade.
— É muito comum a gente ouvir que fulano está “deprê”, ou então que acha tudo “um saco”.
— Sim. Sartre descreve o homem urbano do século XX. Você se recorda de que os humanistas do Renascimento tinham propagado em tom de triunfo a liberdade e a independência do homem. Para Sartre, a liberdade do homem era como uma maldição. “O homem está condenado à liberdade”, ele dizia. Condenado porque não se criou e, não obstante, é livre. E uma vez atirado ao mundo, passa a ser responsável por tudo o que faz.
— Sim. Afinal, não pedimos a ninguém para sermos criados como indivíduos livres.
— É exatamente este o ponto central em Sartre. Acontece que somos indivíduos livres e nossa liberdade nos condena a tomarmos decisões durante toda a nossa vida. Não existem valores ou regras eternas, a partir das quais podemos nos guiar. E isto torna mais importantes nossas decisões, nossas escolhas. Sartre chama a atenção precisamente para o fato de o homem nunca poder negar sua responsabilidade pelo que faz. Por esta razão, não podemos simplesmente colocar de lado nossa responsabilidade e dizer que “temos” de ir trabalhar, ou então que “temos” de nos pautar por certas expectativas burguesas quanto ao modo como devemos viver. Aquele que assim procede mescla-se a uma massa anônima e se transforma em parte impessoal dela. Ele foge de si mesmo e se refugia na mentira. De outra parte, a liberdade do homem nos obriga a fazer de nós alguma coisa, a ter uma existência “autêntica” ou verdadeira.
— Entendo.
— O mesmo vale para as nossas decisões éticas. Nunca podemos responsabilizar a natureza e a fraqueza humanas, ou qualquer outra coisa, pelas decisões que tomamos. Muitas vezes acontece de homens já bem crescidinhos se comportarem como porcos e colocarem a culpa no “velho Adão” que pretensamente trazem dentro de si. Mas este “velho Adão” não existe. Ele não passa de uma figura de que nos valemos para fugir à responsabilidade por nossos próprios atos.
— Apesar disso, deve haver limites para toda essa culpa que recai sobre os ombros do homem.
— Embora Sartre afirme que a vida não possui um sentido inato, isto não significa que para ele nada importa. Sartre não é um niilista.
— O que é isto?
— Alguém que acha que nada tem um sentido e que tudo é permitido. Sartre diz que a vida deve ter um sentido. Isto é um imperativo. Só que nós mesmos é que temos de criar este sentido para a nossa própria vida. Existir significa criar a sua própria vida.
— Você poderia explicar isso um pouco mais?
— Sartre tentou mostrar que a consciência não é nada até que perceba alguma coisa. Pois a consciência é sempre consciência de alguma coisa. E depende de nós, e também de nosso meio, o que seja esta “alguma coisa”. Nós mesmos contribuímos para o que sentimos e percebemos, pois somos nós que escolhemos aquilo que nos é importante.
— Você teria um exemplo?
— Duas pessoas podem estar presentes num mesmo recinto e percebê-lo de maneira totalmente diversa. Isto porque deixamos nossa opinião ou nossos interesses agirem quando estamos percebendo o mundo à nossa volta. Uma mulher grávida, por exemplo, pode ter a sensação de ver mulheres grávidas por toda a parte. Isto não significa que antes não havia mulheres grávidas, mas a gravidez tem agora um novo sentido para ela. Pessoas doentes vêem ambulâncias por toda a parte…
— Entendo.
— Talvez a nossa própria vida influencie o modo como percebemos as coisas num recinto. Se uma coisa não me é importante, é provável que eu nem a perceba. E agora posso explicar por que cheguei tão atrasado.
— Você não disse que tinha sido de propósito?
— Primeiro me conte o que você viu quando entrou no café.
— A primeira coisa que eu vi foi que você não estava.
— Não é estranho que a primeira coisa que você viu neste local tenha sido justamente algo que não estava aqui?
— Pode ser, mas nós tínhamos combinado o encontro.
— Sartre usa justamente a ida a um café para explicar como nós “eliminamos” aquilo que não tem importância para nós.
— E você chegou atrasado só para me mostrar isto?
— Sim. Eu queria que você entendesse este ponto importante da filosofia de Sartre. Meu atraso pode ser considerado, portanto, parte de uma tarefa.
— Que loucura…
— Quando você está apaixonada e esperando o telefonema de seu namorado, pode ser que você “ouça” a noite inteira que ele não telefona para você. O fato de ele não telefonar é exatamente o que você registra o tempo todo. Se você vai buscar seu namorado na estação ferroviária e está numa plataforma tão cheia de gente que não consegue encontrá-lo, pode estar certa de que você não enxerga todas essas pessoas. Elas incomodam, mas são irrelevantes para você. Você pode achá-las antipáticas, ou mesmo repugnantes. Elas tomam tanto espaço… Mas a única coisa que você registra é que ele não está ali.
— Entendo.
— Simone de Beauvoir tentou aplicar o existencialismo à análise dos papéis sexuais. Sartre já havia dito que o homem não possui uma natureza eterna a que possa recorrer. Somos nós que criamos aquilo que somos.
— Sim?
— O mesmo vale para a questão dos papéis sexuais. Simone de Beauvoir mostrou que não existe uma “natureza feminina” ou uma “natureza masculina” eternas, ao contrário do que tradicionalmente rezava o senso comum. Sempre se afirmou, por exemplo, que a natureza do homem seria uma natureza “transcendente”, ou seja, algo que o leva a ultrapassar fronteiras. Isto explicaria por que o homem sempre se sentiu impelido a buscar um sentido e um objetivo fora de casa. Da mulher, por outro lado, sempre se disse que sua vida se orienta no sentido exatamente oposto. A natureza da mulher seria uma natureza “imanente”, o que significa que ela teria uma tendência a continuar no mesmo lugar em que já se encontra. Conseqüentemente, à mulher caberia cuidar da família, do meio ambiente e das coisas à sua volta. Hoje em dia costuma-se dizer que as mulheres estão mais aptas a lidar com os chamados “valores suaves” do que os homens.
— Simone de Beauvoir quis mesmo dizer isto?
— Não. Desta vez, excepcionalmente, você parece não ter ouvido direito o que eu disse. Simone de Beauvoir disse exatamente que não existe nem uma natureza feminina, nem uma natureza masculina. Ao contrário: ela acreditava que as mulheres e os homens tinham de se libertar impreterivelmente desses preconceitos e ideais fortemente arraigados.
— Concordo com ela de todo o coração.
— Seu livro mais importante foi publicado em 1949 e tinha o título de O segundo sexo.
— O que ela queria dizer com isto?
— Ela estava pensando na mulher. Na nossa cultura, a mulher tinha sido transformada num “segundo sexo”. Só o homem aparecia como sujeito desta cultura. A mulher, ao contrário, fora transformada em objeto do homem. Dessa forma, lhe haviam tirado a responsabilidade por sua própria vida.
— E então?
— Para Simone de Beauvoir, a mulher precisa reconquistar esta responsabilidade. Ela precisa se reencontrar consigo mesma e não pode simplesmente aliar sua identidade à de seu marido. Isto porque não é só o homem que reprime a mulher. A própria mulher se reprime quando não assume a responsabilidade por sua própria vida.
— Quer dizer que somos nós mesmas que decidimos até que ponto podemos ser livres e independentes?
— Isso mesmo. A partir dos anos 40, o existencialismo passou a influenciar a literatura européia, sobretudo o teatro. O próprio Sartre escreveu romances e peças de teatro. Outros autores importantes são o francês Albert Camus, o irlandês Samuel Beckett, o romeno Eugène Ionesco e o polonês Witold Gombrowicz. Um elemento característico de todos eles, e também de muitos outros autores modernos, é a representação do absurdo. Na certa você já ouviu falar no teatro do absurdo.
— Sim.
— E você entende o que a palavra “absurdo” significa?
— Significa alguma coisa sem sentido ou irracional, não é?
— Exatamente. O “teatro do absurdo” está preocupado em mostrar a falta de sentido da vida. O que se espera é que o público não apenas assista à peça, mas também reaja a ela. Não era objetivo deste teatro, portanto, fazer uma apologia da falta de sentido da vida. Ao contrário: por meio da representação e da exposição às claras do absurdo, em cenas do cotidiano, por exemplo, o público era levado a refletir sobre a possibilidade de uma vida mais verdadeira, mais essencial.
— Continue.
— Freqüentemente, o “teatro do absurdo” aborda situações absolutamente triviais. O homem é representado exatamente como é. Mas quando você leva para o palco de um teatro o que acontece, por exemplo, dentro do banheiro de uma casa como todas as outras, numa manhã como todas as outras, o público acaba rindo. Este riso pode ser entendido como um mecanismo de defesa contra o fato de as pessoas se verem representadas sem rodeios no palco.
— Entendo.
— Mas o “teatro do absurdo” também pode ter traços surrealistas. Freqüentemente, as personagens são enredadas em devaneios e em situações as mais improváveis. E quando elas aceitam essas situações sem o menor sinal de surpresa, quando as aceitam sem qualquer reação, então é a vez de o público reagir a esta falta de reação. A propósito, o mesmo vale para os filmes mudos de Charlie Chaplin. O elemento cômico nestes filmes geralmente é a falta de surpresa com que Carlitos encara o absurdo das situações que vive. O expectador ri do que vê, mas acaba cismado com sua própria capacidade de se surpreender com as coisas e de reagir a elas.
— Às vezes é constrangedor ver tudo o que as pessoas engolem sem reagir.
— Sim, e às vezes é certo pensar que se tem de sair de determinado lugar, mesmo que não se saiba para onde ir.
— Se a casa está pegando fogo, a gente tem de sair, mesmo que não tenha outro lugar para ficar.
— É verdade. Você quer outra xícara de chá? Ou talvez um refrigerante?
— Um refrigerante. Mas continuo achando você um chato por ter se atrasado.
— Posso perfeitamente conviver com isso.
Pouco depois, Alberto já estava de volta com uma xícara de café e o refrigerante. Nesse meio tempo, Sofia começou a achar agradável estar num café. Ela já não tinha tanta certeza de que eram totalmente vazias as conversas nas outras mesas.
Ao colocar a garrafa de refrigerante sobre a mesa, Alberto fez barulho. Algumas pessoas de outras mesas olharam.
— E com isto chegamos ao fim de nossa jornada — disse ele.
— A filosofia termina com Sartre e o existencialismo?
— Não, seria um exagero afirmar uma coisa dessas. A filosofia existencialista foi de grande importância para muitas pessoas no mundo inteiro. Como vimos, suas raízes remontam a Kierkegaard e até a Sócrates. Do mesmo modo, outras correntes filosóficas do passado experimentaram um novo apogeu e uma renovação em nosso século.
— Você pode me dar alguns exemplos?
— O neotomismo retoma pensamentos e idéias que se ligam à tradição de são Tomás de Aquino. A chamada filosofia analítica ou empirismo lógico retoma o pensamento de Hume e do empirismo britânico e também a lógica de Aristóteles. E é claro que o século XX também é marcado pelo chamado neomarxismo e todas as suas correntes. Já falamos também do neodarwinismo e já chamamos a atenção também para a importância da psicanálise.
— Entendo.
— Uma última corrente, que talvez devêssemos mencionar, é o materialismo, cujas raízes também estão num passado remoto da história. A ciência moderna em muito nos lembra os esforços dos pré-socráticos. Continua-se buscando, por exemplo, a “partícula elementar” indivisível, a partir da qual toda a matéria se constitui. E também ainda não apareceu ninguém que nos pudesse explicar exatamente o que é a “matéria”. As ciências naturais modernas, como a física nuclear e a bioquímica, são tão fascinantes, que se tornaram um componente essencial da cosmovisão de muitas pessoas.
— Novo e velho convivendo lado a lado, não é isto?
— Podemos dizer que sim. Pois as perguntas com as quais começamos este curso ainda não foram respondidas. Sartre fez uma observação importante quando disse que as questões existenciais não podem ser respondidas de uma vez e para todo o sempre. Uma questão filosófica é per definitionem uma questão que cada nova geração, que cada ser humano, tem de se colocar novamente.
— Este pensamento não é dos mais consoladores.
— Não sei se concordo plenamente com você. Não é justamente quando nos fazemos essas perguntas que nos sentimos vivos? Além do mais, não é na busca de respostas para as “grandes” perguntas que o homem tem encontrado respostas claras e definitivas para as “pequenas” perguntas? A ciência, a pesquisa, a tecnologia, todas elas surgiram em algum momento a partir da reflexão filosófica. Afinal, não foi a estupefação do próprio homem diante da vida que o acabou levando à Lua?
— Sim, é verdade.
— Quando o astronauta Armstrong pisou na Lua, ele disse: “Um pequeno passo para o homem, um grande passo para a humanidade”. E com estas palavras incluiu na emoção de ser o primeiro homem a pisar na Lua todos os que já haviam vivido antes dele. Afinal, o fato de ele poder estar ali naquele momento não era mérito exclusivo seu, nem de seus contemporâneos.
— Claro que não.
— Mas a nossa época também teve de encarar muitos problemas novos. Os grandes problemas ambientais são um exemplo disso. Por esta razão, uma importante corrente filosófica do século XX é a ecofilosofia. Muitos ecofilósofos do Ocidente defendem o ponto de vista de que nossa civilização tomou o caminho errado e se encontra em rota de colisão com o que este planeta é capaz de agüentar. Esses filósofos tentaram pesquisar mais a fundo e não apenas discutir as conseqüências concretas da poluição e da destruição ambientais. Para eles, alguma coisa não está certa em todo o pensamento ocidental.
— Acho que eles têm razão.
— Os ecofilósofos questionaram, por exemplo, a noção de evolução, que se baseia na suposição de que o homem está “no topo” da natureza; ou seja, que somos os senhores da natureza. E é precisamente este pensamento que pode colocar em risco toda a vida do planeta.
— Fico furiosa quando penso nessas coisas.
— Em sua crítica a este ponto de vista, os ecofilósofos foram buscar apoio no pensamento e nas idéias de outras culturas, por exemplo na Índia. Eles também estudaram o pensamento e o modo de vida dos chamados “povos nativos”, ou “populações primitivas”, a fim de, quem sabe, encontrar algo que há muito tempo perdemos.
— Entendo.
— Nos últimos anos, muitos têm afirmado dentro de círculos científicos que todo o nosso pensamento científico está diante de uma mudança de paradigma, ou seja, de uma mudança radical. Em diversas áreas específicas, esta discussão já tem dado seus frutos. Não nos faltam exemplos dos chamados “movimentos alternativos”, que dão particular importância para um pensamento holístico e defendem um novo estilo de vida.
— Isso é muito bom.
— Ao mesmo tempo, como em tudo o que o homem faz, também aqui é preciso saber separar o joio do trigo. Muitos têm afirmado que nos aproximamos de uma nova era, a “New Age”. Só que nem tudo o que é novo é necessariamente bom, e nem tudo o que é velho deve ser descartado. Foi por isso que fizemos este curso de filosofia. Agora que você conhece o pano de fundo histórico de nosso pensamento, você terá mais facilidade para separar o joio do trigo. E quem é capaz de fazer isto também tem mais facilidade em se nortear na vida.
— Sou grata a você por tamanha consideração.
— Estou certo de que verá que muito do que se diz “New Age” não passa de mero disparate. Nas últimas décadas, a influência do que chamamos de “nova religiosidade”, “neo-ocultismo” ou “moderna superstição” sobre o mundo ocidental deu origem a uma verdadeira indústria. À medida que o cristianismo foi perdendo terreno, novas ofertas surgiram aos montes no mercado de visões de mundo.
— Você poderia me dar um exemplo?
— A lista é tão longa que não sei nem por onde começar. De qualquer forma, não é fácil descrever o próprio tempo. Sugiro que a gente dê uma volta pela cidade. Quero mostrar uma coisa a você.
Indiferente, Sofia sacudiu os ombros.
— Não tenho muito tempo. Você não se esqueceu da festa de amanhã, não é?
— Claro que não. Afinal, é nessa festa que vai acontecer uma coisa maravilhosa. Só precisamos terminar o curso de filosofia de Hilde. Sabe, o major não pensou numa continuação depois de concluído o curso. E é nesse ponto que ele perde parte de sua força.
Mais uma vez Alberto ergueu a garrafa de refrigerante, agora vazia, e bateu na mesa fazendo um ruído.
Saíram do café. As pessoas, apressadas, pareciam formigas correndo de lá para cá dentro de um formigueiro. Sofia se perguntava o que Alberto queria mostrar para ela.
Passaram, então, por uma grande loja de produtos eletroeletrônicos. Ali se vendia de tudo: de aparelhos de televisão, videocassetes e antenas parabólicas até telefones celulares, computadores e aparelhos de fax.
Alberto parou diante da vitrine e disse:
— Aqui está o século XX, Sofia. A partir do Renascimento, o mundo começou a explodir, por assim dizer. A começar pelos grandes descobrimentos, pelas grandes viagens dos europeus por todo o planeta. Em nossos dias, o que se verifica é uma explosão ao contrário.
— Como assim?
— Estou querendo dizer que o mundo inteiro está sendo ligado e se unindo numa única rede de comunicação. Há não muito tempo, os filósofos ainda levavam muitos dias no lombo de um cavalo ou no interior de um coche para observar o mundo, ou então para encontrar outro pensador. Hoje em dia, em qualquer parte deste planeta, podemos nos sentar diante de um computador e trazer até nós informações sobre toda a experiência humana.
— Isto é uma coisa fantástica e, ao mesmo tempo, um tanto amedrontadora.
— A questão é saber se a história se aproxima de seu fim, ou se estamos no limiar de um novo tempo. Não somos mais apenas habitantes de uma cidade ou de um país específico. Vivemos uma civilização planetária.
— É mesmo.
— Nos últimos trinta ou quarenta anos, a evolução tecnológica, sobretudo no que se refere aos meios de comunicação, foi mais dramática do que em toda a história até então. E o que estamos vivendo hoje pode ser apenas o começo…
— Era isto o que você queria me mostrar?
— Não. O que eu queria mostrar está ali atrás da igreja.
(…)
Atravessaram a praça da igreja e chegaram à nova rua principal. Alberto estava levemente irritado. Caminharam um pouco e ele parou diante de uma livraria chamada Libris, a maior da cidade.
— Você quer me mostrar alguma coisa aqui?
— Vamos entrar.
Dentro da livraria, Alberto apontou para a maior estante de livros. Ela estava subdividida em três partes, assim designadas: NEW AGE, MODOS DE VIDA e MISTICISMO.
Nas prateleiras havia livros com muitos títulos intrigantes: Existe vida após a morte?, Os segredos do espiritismo, Tarô, O fenômeno UFO, Curas, O retorno dos deuses, Você já passou por aqui…, O que é astrologia? e muitos, muitos outros. Na parte de baixo da estante havia pilhas de outros livros semelhantes.
— Isto é o século XX, Sofia. Este é o templo da nossa era.
— Você acredita nessas coisas?
— O que importa é que muitos desses livros não passam de bobagem. E ainda assim vendem tanto quanto livros pornográficos. Aliás, muitos deles poderiam ser chamados de pornografia. Aqui, a geração que está crescendo agora pode comprar os livros que mais lhe interessam. Só que a relação entre a verdadeira filosofia e esses livros é mais ou menos a mesma que existe entre o amor verdadeiro e a pornografia.
— A comparação não é um tanto grosseira?
— Bem, vamos nos sentar ali na praça.
E saíram da livraria. Na frente da igreja, encontraram um banco vazio. Debaixo das árvores, algumas pombas disputavam uns grãozinhos de alimento. E no meio delas havia um ou outro pardal muito entusiasmado.
Sentaram-se e Alberto começou:
— Parapsicologia, telepatia, clarividência, psicocinética, espiritismo, astrologia, ufologia. A criança tem muitos nomes.
— Mas, diga-me com franqueza: você acha que tudo não passa de besteira?
— Naturalmente, não seria de bom tom para um filósofo de verdade colocar tudo isso num mesmo saco. Mas não quero excluir a hipótese de que todas essas palavras que acabei de mencionar esboçam o mapa detalhado de uma paisagem que não existe. Seja como for, muitas dessas coisas não passam do que Hume chamou de “fantasmagoria e ilusão” e quis atirar ao fogo. Em muitos desses livros não encontramos uma única experiência verdadeira.
— Mas então por que se escrevem tantos livros sobre essas coisas?
— Porque isto é simplesmente o melhor negócio do mundo. Muitas pessoas querem ter essas coisas.
— E por que você acha que elas querem essas coisas?
— Porque anseiam por algo “místico”, por “outra” coisa que aponte para além da monotonia de sua vida cotidiana. Só que infelizmente acabam exagerando.
— Como assim?
— Aqui estamos nós no meio de uma aventura fantástica. O milagre da criação se desenrola diante de nossos olhos. E em plena luz do dia, Sofia! Não é incrível?
— Sem dúvida.
— Para que, então, procurar tendas ciganas ou os pátios das academias para experimentar algo de “excitante” ou “transcendente”?
— Você está querendo dizer que os autores desses livros são todos uns incompetentes e mentirosos?
— Não, eu não disse isto. Deixe-me explicar “darwinianamente” o que quero dizer.
— Estou ouvindo.
— Pense em tudo o que acontece no decorrer de um único dia. Concentre-se num único dia de sua própria vida e pense em tudo o que você vê e experimenta.
— Certo.
— Às vezes ocorrem coincidências estranhas. Por exemplo, você entra numa loja e compra uma coisa que custa vinte e oito coroas. Pouco depois chega Jorunn e traz a você as vinte e oito coroas que você emprestou para ela não sei quando. Daí você vai ao teatro e a sua poltrona é de número vinte e oito.
— Sem dúvida, seriam coincidências misteriosas.
— Mas não deixariam de ser coincidências. Acontece que muitas pessoas colecionam coincidências como essas. Elas colecionam experiências misteriosas ou inexplicáveis, extraídas da vida de alguns milhões de pessoas, que depois são reunidas num livro e apresentadas ao leitor como farto material de prova. E este material cresce a cada dia. Só que, mesmo neste caso, trata-se de uma loteria, da qual não passamos de números premiados.
— Quer dizer que não existem clarividentes ou “médiuns”?
— Existem sim, e se deixarmos de lado os embustes encontraremos outra explicação importante para as experiências supostamente místicas que eles vivem.
— E qual é esta explicação?
— Você ainda deve se lembrar do que falamos sobre a teoria do inconsciente de Freud.
— Quantas vezes eu vou ter de dizer que não sou do tipo de pessoa que se esquece facilmente das coisas?
— Freud já tinha chamado a atenção para o fato de nós sermos uma espécie de “médium” de nosso próprio inconsciente. De repente pode acontecer de nos flagrarmos fazendo ou pensando coisas sem entender bem o porquê. Isto se explica pelo fato de o número das nossas experiências, pensamentos e vivências ser muito maior do que o nosso consciente é capaz de armazenar.
— Continue.
— Algumas vezes as pessoas falam ou então andam enquanto dormem. Podemos chamar isto de um “automatismo mental”. Também sob hipnose as pessoas podem dizer coisas “sem querer”. E você se lembra dos surrealistas, que tentavam escrever e pintar “automaticamente”, transformando-se, assim, em “médiuns” de seus próprios inconscientes.
— Lembro-me disso também.
— Em nosso século [XX], e com alguma regularidade, temos notícias de pessoas, de “médiuns” que seriam capazes de entrar em contato com os mortos. Este “médium” receberia mensagens de pessoas que, por exemplo, viveram há muitos anos. E, então, ou o “médium” fala com a voz do morto, ou então escreve “automaticamente”, “psicografando”, como se costuma dizer, o que o morto tem a dizer. Para muitas pessoas, isto tem sido visto como prova da existência de uma vida após a morte, ou da existência de muitas vidas.
— Entendo.
— Não estou querendo dizer que todos estes “médiuns” sejam uns charlatões. Alguns deles, ao que parece, agem de boa-fé. Eles até podem ser “médiuns”, mas só de seu próprio inconsciente. Existem vários exemplos de experimentos envolvendo “médiuns” que, numa espécie de transe, mostraram conhecimentos e habilidades que nem eles, nem as outras pessoas podiam explicar de onde vinham. Uma mulher que não sabia hebraico, por exemplo, de repente começou a falar nesta língua. E nesse caso a explicação foi a seguinte: ou ela já tinha vivido uma vez, ou então realmente tinha entrado em contato com um espírito que falava hebraico. E então, Sofia?
— O que você acha?
— Descobriu-se, depois, que ela tivera uma babá judia quando criança.
— Ah…
— Você ficou desapontada, Sofia? Pois não deveria. Afinal, não é fantástico descobrir como uma só pessoa é capaz de armazenar em seu inconsciente tantas experiências já vividas?
— Entendo o que você quer dizer.
— Muitas das curiosidades de nossa vida cotidiana também podem ser explicadas pela teoria do inconsciente de Freud. Por exemplo, quando recebo o telefonema de um amigo que não vejo há muitos anos, justamente no momento em que estou procurando o telefone dele para ligar…
— Fico até arrepiada!
— O motivo desta aparente coincidência pode ser, por exemplo, o fato de nós dois termos ouvido no rádio uma velha canção; uma canção que ouvimos da última vez em que nos encontramos, por exemplo. Acontece que simplesmente não percebemos a ligação entre as coisas.
— Quer dizer que tudo isto não passa ou de charlatanismo, ou então do efeito “número premiado de loteria”, ou ainda de manobras do inconsciente?
— De qualquer forma, estou querendo dizer que é sempre mais saudável olhar com certo ceticismo para essas estantes de livros. E isto é importante também para um filósofo. Na Inglaterra, os céticos têm a sua própria associação. Há muitos anos eles ofereceram uma elevada soma em dinheiro ao primeiro que lhes trouxesse uma pequena prova que fosse de algum evento sobrenatural. E não precisava ser nada de espetacular; um simples caso de telepatia bastava. Até hoje ninguém se apresentou.
— Entendo.
— Outra coisa, completamente diferente, é o fato de existirem muitas coisas que nós, seres humanos, não entendemos. É possível até que não conheçamos ainda todas as leis da natureza. No século passado [XIX], muitos consideravam magia fenômenos como o magnetismo ou a eletricidade. Acho que minha bisavó ficaria de olhos arregalados se eu falasse com ela sobre televisão ou computadores.
— Mas você não acredita mesmo em nada de sobrenatural?
— Já falamos sobre isso. A simples palavra “sobrenatural” já me soa estranha. Não, não… acredito que existe apenas uma natureza. Mas que, em compensação, ela é absolutamente fabulosa.
— Isto significa que o sobrenatural só existe nos livros que você me mostrou?
— Todos os verdadeiros filósofos devem ter os olhos bem abertos. Mesmo que nós nunca tenhamos visto uma gralha branca, jamais podemos desistir de procurar por uma. E poderá chegar o dia em que até um cético como eu tenha de aceitar um fenômeno no qual não quis acreditar até então. Se eu não considerasse essa possibilidade, seria um dogmático. E não seria, portanto, um filósofo de verdade.
Durante algum tempo, Alberto e Sofia ficaram sentados no banco da praça sem dizer nada. Orgulhosas, as pombas arrulhavam e passavam por eles de pescoço empinado. De vez em quando algumas voavam, espantadas por um movimento brusco ou por uma bicicleta que passava.
— Preciso ir para casa preparar a festa — disse Sofia quebrando o silêncio.
— Só que antes de nos despedirmos quero lhe mostrar uma gralha branca. Ela está mais perto do que a gente pensa.
Alberto levantou-se e fez um sinal para que ela o acompanhasse de novo à livraria.
Desta vez deixaram de lado todos os livros sobre fenômenos sobrenaturais. Alberto parou diante de uma pequena estante que ficava no fundo da livraria. Sobre a estante havia uma pequena placa em que estava escrito: FILOSOFIA.
Alberto apontou para um dos livros e Sofia levou um tremendo susto quando leu o título: O MUNDO DE SOFIA.
— Posso comprá-lo para você?
— Não sei se ouso responder que sim.
Pouco depois, porém, ela já voltava para casa com o livro numa das mãos e a sacola de compras para a festa na outra.
(...)
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